Meu mui prezado Amigo Pedro,
obtido o assentimento
do Dr. Brito em que a correspondência relativa à abertura da conta passe por
seu endereço – e afastada objeção de última hora do amigo Arlindo (x), quanto
à propriedade desse modus faciendi – as coisas ficaram mais fáceis. Pude dar a luz verde tanto para o Secretário NN, quanto
para o Arlindo, com vistas à remessa dos formulários, assim como
indiquei-lhes o endereço do procurador virtual da Thérèse, que retivera até que
tudo se esclarecesse, para ter o procedimento sob controle. De teu secreto
amigo – incansável nas suas idas para Petrópolis – recebi a informação de que,
já de posse do papelório da Secretaria
de Estado, subiria a serra para colher as assinaturas de Therezinha. Em
seguida, ele vai restituí-los a Brasília. De lá a papelada será remetida oficialmente para o Escritório
Financeiro, com a instrução de mandar abrir conta especial na agência em Miami
do Banco do Brasil.
Com paciência e
determinação, meu caro Pedro, e graças ao respeito que o teu servidor soube
granjear, estou em vias de restabelecer aquilo que de forma algo apressada
tinhas cancelado com uma simples penada. Em carta dirigida ao Dr. Brito, e que
deve por ora estar recebendo, encareci que o dinheiro do seguro, uma
vez depositado na conta, seja transformado em um time deposit. Com isso,
a Therezinha, além de não dilapidar o capital, disporá de rendimento bimestral
ou trimestral (depende do prazo da inversão). Como o Federal Reserve Bank se
acha preocupado com a atual tendência inflacionária nos Estados Unidos, a taxa
de juros sofreu pronunciado aumento, o que torna ainda mais vantajoso o
presente investimento.
Esperemos
que a Thérèse siga tais conselhos, e que não malbarate esse pecúlio. Terás
notado que tenho cuidado de que tudo se faça por intermédio do Dr. Manoel
Brito. Hás de convir que a tua esposa não terias condições de tomar essas
providências sozinha, nem é conveniente que o encaminhamento seja feito pela
rua Visconde do Uruguai, 128. Por aquelas bandas voejam muitas aves de rapina,
que convém manter à distância. Temos, por isso, de colocar as fichas nesse
médico, que privou de tua confiança e cujo convívio mantiveste sob sigilo por tantos
anos.
Como corre depressa o tempo ! Anteontem
completou-se o segundo mês em que nos deixaste. Em meados do terceiro, a
Therezinha começará a receber regularmente a pensão. Salvo o auxílio-funeral,
ela não teria nenhum outro recurso se não fora a providencial presença do Dr.
Brito.
Pensando no porvir, sinceramente não
sei se terá a viúva condições de arcar com as despesas acarretadas pela mansão
da Visconde do Uruguai. Suspeito que a manutenção desse trem de vida se tornava
progressivamente mais árduo para ti. Os quatro criados, inclusive o inútil
Hermes (x), representaram um peso que somado
às demais obrigações te forçou a retirar dinheiro da poupança. Outra
explicação não atino para a soma de dez mil a que se limitavam os teus fundos a
quatorze de maio. E, para mim, terá sido menos pelos livros de que por causa de
Thérèse a tua resolução de aferrar-te a uma situação que te consumia os parcos
recursos.
Estarei
invadindo seara alheia ? Creio que não. A morte, meu bom Amigo,se nos livra das
contingências materiais, confere a terceiros a vênia de levantar questões que
jamais considerariam se vivo estivesses. Ao fazê-lo, o meu propósito visa
obviamente à tua esposa, eis que, se com o teu ordenado já se afigurava
difícil, muito mais o será o custeio da residência e dos empregados com a
pensão estatal, decerto bastante inferior ao que recebias mensalmente.
Mas
deixemos de lado, por enquanto, tais ponderações. Mente generosas, hás de
acreditar ainda ser possível mantê-la onde está. Melhor será esperar mais um
pouco. O tempo, que tudo resolve, talvez permita o que eu julgo pouco provável.
Por isso, convém silenciar.
Lá
por 1996, confidenciara a ti e a Rezende do meu desejo de ser transferido para
Atenas. Imerso, em meio ao deserto argelino, nos estudos do grego clássico, me
pareceu justa a aspiração de um terceiro
posto como Embaixador em solo helênico. Vários colegas meus no corpo
diplomático acreditado na Argélia corroboraram a propriedade desse anseio
funcional. Assim, tanto o alemão, quanto o espanhol, ao cabo de três anos em Alger la blanche, receberam o prêmio da destinação ateniense.
Não
contava com a atitude de quem Fernando Henrique Cardoso colocara como
administrador do Itamaraty. Malgrado os falsos elogios – do gênero ‘Você tem
sido um herói, etc.’- em realidade ignorava o meu sacrifício, ou mesmo dele
escarnecia, comprazendo-se em oferecer-me destinos que, na sua peculiar
esperteza, sabia que rejeitaria. Sem conhecer os detalhes, vocês dois
acompanharam a minha luta, deplorando não lograsse alcançar o posto que me
prefixara como culminação da própria carreira.
Ao
entrar o ano de 1999, viemos ao Rio ainda lotados em Argel. A desvalorização do
real, em função da crise cambial que se abateu sobre a economia brasileira, me
deu condições de adquirir o apartamento que há cousa de um ano tínhamos
visitado. Achava-se, então, fora do alcance de nossa bolsa. Pelos desmandos
financeiros do neoliberalismo que Fernando Henrique abraçara, ora se nos
afigurava possível, o que antes não era.
Nesse tempo, recordo-me de almoço a que
compareci, apesar de convalescente de crise de coluna. Já para o fim da
refeição, que terá sido no bar Monteiro, a argumentação te empolgou e com teu
gestual descontrole, largaste o braço sobre o copázio de chope. O movimento
repentino, que pontuava alguma esquecida afirmação, o jogou, com o basto
conteúdo, na minha direção, me empapando a calça jeans. Nada disso teria importância, senão pelo subitâneo repelão,
com que, instintivamente, procurei evitar ser atingido pelo imprevisto jorro.
A única coisa que consegui, com a
brusquidão da vã esquiva, foi reavivar a afecção. Jamais esquecerei a
expressão, não contrafeita mas culpada, com que contemplaste a tua involuntária
obra. Parecias antes um menino colhido
em traquinagem, do que um provecto senhor que de muito ultrapassara os setenta.
Nunca um encontro terminaria de forma
mais abrupta e melancólica. Tenho diante
de mim a imagem dos dois – eis que, talvez por hábito, Rezende se
associou à tua postura – a olhar-me, desconsolados, enquanto a custo lograva
conter a irritação, alimentada pela certeza dos dias que teria de passar
acamado por força daquela disritmia que, por vezes, te acometia.
Em fins de 1998, recebera de Samuel
Pinheiro Guimarães a encomenda de redigir, sob o prisma político-diplomático a
contribuição sobre a visao externa dos Estados Unidos da América, de 1945 até
1998. Tive um ano para apresentar o trabalho, que seria analisado por dois
seminários (novembro de 1999, em São Paulo e no Rio de Janeiro). A ideia seria
aproveitar eventuais observações e/ou correções feitas pelos debatedores, para
entõ o trabalho ser editado em livro do Instituto de Pesquisas de Relações
Internacionais (IPRI). O meu estudo, aprovado sem emendas, com as suas 180
páginas, veio a representar mais de metade do volume publicado. Infelizmente, a
crise cambial inviabilizou a reunião, igualmente programada, de seminário em
New York, com a participação de brasilianistas, assim como a tradução do tomo
em inglês.
Já regressara ao Brasil quando recebi
os cinco exemplares do livro, a que fazia jus. Destinei dois à dupla, e de ti
não tardaria em colher comentários em que demonstraste não só a tua apreciação
da monografia, senão minudente e cuidadosa leitura do texto. Infunde não
pequeno prazer ao autor a percepção de que o próprio escrito foi lido e
avaliado com atenção, boa vontade e interesse.
Não era do teu feitio dispensar encômios
fáceis e vazios. Se não regateavas elogios, caso visses que o trabalho
fazia por merecê-lo, não deixavas
tampouco de apontar as lacunas, nem de questionar aqueles tópicos com que não
estarias de acordo.
Sempre
valorizaste as minhas produções com análise fundada no teu saber, assim como em
oportunos e pertinentes comentários. E tal atenção não reservaste apenas
àqueles volumes que de mim recebias graciosamente. Quando a revista Vozes
publicou no ano seguinte contribuição minha sobre a Revolução Guatemalteca,
trataste logo de adquirir um exemplar, para poder ler o artigo do amigo.
Antes que nos aventuremos pelo terceiro
milênio, tenho de referir uma aquisição livresca, feita quando ainda estava em
Argel. Parece-me importante assinalá-la,porque de algum modo, repercutiria em
nossas relações.
Desde muito perseguia a obra de I.
Düring intitulada “Aristotle in the Ancient Biographical Tradition”. Datada de
1957, e publicada em Gotemburgo, semelhava inacessível, eis que em todas as
pesquisas precedentes esbarrara na sua condição de esgotada.
Lembrei-me então do meu antigo parceiro
de pôquer, Luis Felipe Teixeira Soares, que nessa época era embaixador em
Estocolmo. Conseguiu ele que do exemplar existente na Biblioteca Real se
fizesse uma cópia-xerox.
Não obstante a relevância do livro, o meu
programa de aprendizado só me permitiu enfrentá-lo já transferido para o Rio.
Logo me daria conta de peculiar característica dessa douta análise da biografia
aristotélica vista através da tradição antiga, seja favorável, seja hostil.
Escrita em inglês, na sua maior parte se compunha de citações dos velhos
manuscritos, em grego clássico. Havia, igualmente, mas em percentagem assaz
inferior, transcrições em latim. Acresce notar partir o autor do pressuposto
que o leitor também dominava essas duas línguas. Somente em parcos e isolados
comentários, dignava-se Düring a traduzir umas tantas frases.
Encetei a leitura dessa obra de Düring
quando o meu conhecimento do grego era bastante mais precário. Sem as
facilidades das edições bilíngues da Loeb, muita vez lidava com passagens sem
sequer a possibilidade de cotejar a minha interpretação com trecho de autor
clássico conhecido a cuja tradução pudesse ter acesso. Por assim dizer,
perlustrava muitas páginas sem qualquer rede de segurança.
Não me atreverei a afirmar que haja
compreendido corretamente todas as 455 páginas com citações de fontes da
Antiguidade clássica, helenística, e dos primeiros séculos da era cristã, porém
se o meu exercício do grego há de ter experimentado progressos, pude aí
servir-me de manancial de informações indisponível alhures acerca da tradição
biográfica aristotélica.
Nesses primeiros anos de estada carioca, ou na
minha temporada em Limoges, como já o referi acima, embora relutasse em pedir a
aposentadoria, essa perspectiva, diante do desfavor dos ministros neoliberais
de FHC, começava a ser por mim considerada. Nesse período, além dos encontros
da trinca, surgira um outro grupo, que se reunia irregularmente em restaurante
no Largo do Machado.
Os almoços aconteciam quando da passagem de
Maria Eugênia McDowell, que vinha semestralmente do Recife para exames médicos.
Participavam, igualmente, Ilda (x) e um padre. Conquanto as duas te conhecessem, a
conexão era dada pelo Rezende. A convite dos meus dois amigos, mas sobretudo do
Rezende, associei-me a esse programa.
No entanto, bastaram umas duas ou três
vezes para que mudasse de ideia. A mudez do sacerdote seria uma razoável
indicação quanto à substância dos temas aí tratados. Por outro lado, Ilda,
malgrado a idade, além de gostar de beber, entra na categoria das alcoolizadas
cuja convivência se torna inconveniente senão desagradável.
Como
em tantas outras coisas, a nossa reação quanto ao grupo foi bastante
similar. A despeito de conhecê-las desde
os bancos acadêmicos, não hesitaste em eludir novos convites transmitidos pelo
Rezende. Para tanto, facilitou a absurda pretensão de Ilda de que nos
encontrássemos no Leme. Se descer de Petrópolis para conversas sem propósito no
Largo do Machado não constituía o mais atraente dos programas, muito menos
enfrentar o desconforto de ir para um local bastante fora de mão.
Alacremente, concordamos em tirar o
corpo fora, com desculpas adrede combinadas. A nossa preocupação maior seria a
de não magoar o Rezende. As escusas, tanto tuas, quanto minhas, sempre se
fundariam em motivos episódicos, e nunca na verdadeira razão da negativa.
Rezende, que tolo não é, acabou por entender a mensagem, e nunca mais nos
convidou para as reuniões do tal grupo.
Por volta do lusco-fusco da gestão no
Itamaraty de um senhor que se assinalara pela proeza de descalçar os sapatos
por três vezes no mesmo dia para comprazer aos inspetores do amo hegemônico,
resolvi requerer a aposentadoria. Acerca do pedido, decerto intempestivo, nada
disse para ti. Talvez por ser a circunstância dolorosa para mim. A displicência
dos que partiam me proporcionaria a ocasião rara de ter a pretensão tacitamente
denegada pela nova Administração. Tanto Celso Amorim, na qualidade de Ministro,
quanto Samuel, na de Secretário-Geral, para surpresa do Ministro Eduardo Prisco
Paraíso, Chefe do Departamento do Serviço Exterior, acharam que era hora de ter
a minha colaboração e não de dispensá-la. Não são muitos, meu caro Amigo, de
quem a vida funcional registre tão nobre e dignificante recusa.
O
ano de 2003 seria divisor de águas em mais de um sentido. Tenho à minha
cabeceira fotografia em que sorridente pouso mão carinhosa na bela criança que
é meu neto Frederico, alçado pelos braços de Ana. Tímida presença nos meus
retratos, aqui a felicidade se mostra sem negaças. E, não obstante, hoje para
mim representa também memento de quão fugazes podem ser tais instantes. Em dois
meses e meio, a dezoito de março, estava sendo operado da próstata no hospital
Albert Einstein por mãos hábeis e competentes. Seguiu-se convalescença de cerca
três meses, a princípio, em São Paulo, na forçada companhia de uma sonda.
Depois, no Rio de Janeiro, até que estivesse em condições de viajar a Brasília,
e aceitar o encargo de chefiar o Ererio.
Poucas
pessoas foram informadas de minha operação. Em almoço no restaurante Urich eu
inteirara a Rezende e a ti da intervenção cirúrgica a que me submeteria. Por
iniciativa de Rezende, ambos me telefonaram para o leito do hospital, onde,
ainda meio grogue, me aprestava a atravessar uma longa noite, em que careci de
transfusão de plasma sangüineo. Nesta hora difícil, tive a meu lado o filho
Raphael – que veio de Buenos Aires – e minha companheira Ana.
A
21 de agosto de 2003 assumi a chefia do Escritório do Itamaraty no Rio de
Janeiro, então a triste sombra do ministério que partira para Brasília em 1970.
Encontrei uma casa muito mal cuidada, tanto no aspecto funcional, quanto no
material. Ao realizar o desafio que se me deparava, destituído de gente e de
meios, sob o impacto do recente furto na Mapoteca, não posso olvidar a previsão
de um colega de que não aguentaria mais de dois meses à testa daquele monstro
de incúria, negligência e desorganização.
À exceção de Ana, que partilhou as
angústias e me deu o necessário e indispensável apoio, a ninguém dei
conhecimento da real situação no Ererio e das imensas dificuldades e
tribulações a enfrentar.
Se até hoje ainda sofro as consequências
de haver aceito ser o titular desse Escritório de Representação, jamais
hesitarei, ao me perguntarem da maior provação e êxito experimentados na carrière, em responder – Ererio ! Foram
dois anos, dois meses e uns dez dias em que nem tudo pude consertar, mas nos
quais deixei um próprio estatal em estado incomparavelmente melhor daquele
recebido.
Recordo-me de uma das minhas primeiras
providências, sentado na enorme sala, reminiscente da azáfama do antigo
departamento econômico, com desproporcional e incongruente pintura de um Simon
Bolivar a cavalo. Encaminhei para ti atualizada Lista de Ramais da Secretaria
de Estado, para agilizar os teus periódicos contatos com as instâncias de
pessoal, nos telefonemas relativos a dúvidas quanto a determinados ítens do teu
contracheque. Verifiquei, outrossim, se o teu endereço estava corretamente
registrado e te mandei alguma outra publicação, que o tempo já apagou da
lembrança.
No próximo almoço me agradeceste pelas remessas e me prometeste fazer
uma visita. Sabia que não virias mas, assim mesmo, te disse o meu muito
obrigado. Ir ao Palácio Itamaraty, para quê ? Tinha eu na memória as imagens do
colega, seja sentado em mesa da prestigiosa Divisão Política, seja no balcão da
Biblioteca entre consultando acerca de um livro e namoriscando a futura esposa,
seja atravessando, no teu passo estugado, o pátio defronte da Sala dos Índios.
Porque então afanar-se por uma rua Larga
hoje decadente, desperdiçando preciosos quartos de hora, para estar com um
amigo encastelado em velho casarão ? Porque todo esse esforço, se temos
encontro marcado no restaurante de costume, na companhia do Rezende, lá por
volta de uma hora ?
Bem vês, meu bom Amigo, que não é preciso
levar a sério esta promessa. Vamos nos rever daqui a pouco, na mesinha do
Urich, trocar as nossas figurinhas de sempre.
Com profundo, indescritível apreço,
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