sexta-feira, 7 de junho de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (VIII)


                                                             V I I I    

  

        Meu mui prezado Amigo Pedro,

      

        obtido o assentimento do Dr. Brito em que a correspondência relativa à abertura da conta passe por seu endereço – e afastada objeção de última hora do amigo Arlindo (x), quanto à  propriedade desse modus faciendi – as coisas ficaram mais fáceis. Pude dar  a luz verde tanto para o Secretário NN, quanto para o Arlindo, com vistas à remessa dos formulários, assim como indiquei-lhes o endereço do procurador virtual da Thérèse, que retivera até que tudo se esclarecesse, para ter o procedimento sob controle. De teu secreto amigo – incansável nas suas idas para Petrópolis – recebi a informação de que, já de posse  do papelório da Secretaria de Estado, subiria a serra para colher as assinaturas de Therezinha. Em seguida, ele vai restituí-los a Brasília. De lá a papelada será  remetida oficialmente para o Escritório Financeiro, com a instrução de mandar abrir conta especial na agência em Miami do Banco do Brasil.

        Com paciência e determinação, meu caro Pedro, e graças ao respeito que o teu servidor soube granjear, estou em vias de restabelecer aquilo que de forma algo apressada tinhas cancelado com uma simples penada. Em carta dirigida ao Dr. Brito, e que deve por ora estar recebendo, encareci que o dinheiro do seguro, uma vez depositado na conta, seja transformado em um time deposit. Com isso, a Therezinha, além de não dilapidar o capital, disporá de rendimento bimestral ou trimestral (depende do prazo da inversão). Como o Federal Reserve Bank se acha preocupado com a atual tendência inflacionária nos Estados Unidos, a taxa de juros sofreu pronunciado aumento, o que torna ainda mais vantajoso o presente investimento.

        Esperemos que a Thérèse siga tais conselhos, e que não malbarate esse pecúlio. Terás notado que tenho cuidado de que tudo se faça por intermédio do Dr. Manoel Brito. Hás de convir que a tua esposa não terias condições de tomar essas providências sozinha, nem é conveniente que o encaminhamento seja feito pela rua Visconde do Uruguai, 128. Por aquelas bandas voejam muitas aves de rapina, que convém manter à distância. Temos, por isso, de colocar as fichas nesse médico, que privou de tua confiança e cujo convívio mantiveste sob sigilo por tantos anos.

        Como corre depressa o tempo ! Anteontem completou-se o segundo mês em que nos deixaste. Em meados do terceiro, a Therezinha começará a receber regularmente a pensão. Salvo o auxílio-funeral, ela não teria nenhum outro recurso se não fora a providencial presença do Dr. Brito.

        Pensando no porvir, sinceramente não sei se terá a viúva condições de arcar com as despesas acarretadas pela mansão da Visconde do Uruguai. Suspeito que a manutenção desse trem de vida se tornava progressivamente mais árduo para ti. Os quatro criados, inclusive o inútil Hermes (x), representaram um peso que somado  às demais obrigações te forçou a retirar dinheiro da poupança. Outra explicação não atino para a soma de dez mil a que se limitavam os teus fundos a quatorze de maio. E, para mim, terá sido menos pelos livros de que por causa de Thérèse a tua resolução de aferrar-te a uma situação que te consumia os parcos recursos.

        Estarei invadindo seara alheia ? Creio que não. A morte, meu bom Amigo,se nos livra das contingências materiais, confere a terceiros a vênia de levantar questões que jamais considerariam se vivo estivesses. Ao fazê-lo, o meu propósito visa obviamente à tua esposa, eis que, se com o teu ordenado já se afigurava difícil, muito mais o será o custeio da residência e dos empregados com a pensão estatal, decerto bastante inferior ao que recebias mensalmente.

        Mas deixemos de lado, por enquanto, tais ponderações. Mente generosas, hás de acreditar ainda ser possível mantê-la onde está. Melhor será esperar mais um pouco. O tempo, que tudo resolve, talvez permita o que eu julgo pouco provável. Por isso, convém silenciar.

        Lá por 1996, confidenciara a ti e a Rezende do meu desejo de ser transferido para Atenas. Imerso, em meio ao deserto argelino, nos estudos do grego clássico, me pareceu justa a aspiração  de um terceiro posto como Embaixador em solo helênico. Vários colegas meus no corpo diplomático acreditado na Argélia corroboraram a propriedade desse anseio funcional. Assim, tanto o alemão, quanto o espanhol, ao cabo de três anos em Alger la blanche, receberam o prêmio da destinação ateniense.

        Não contava com a atitude de quem Fernando Henrique Cardoso colocara como administrador do Itamaraty. Malgrado os falsos elogios – do gênero ‘Você tem sido um herói, etc.’- em realidade ignorava o meu sacrifício, ou mesmo dele escarnecia, comprazendo-se em oferecer-me destinos que, na sua peculiar esperteza, sabia que rejeitaria. Sem conhecer os detalhes, vocês dois acompanharam a minha luta, deplorando não lograsse alcançar o posto que me prefixara como culminação da própria carreira.

       Ao entrar o ano de 1999, viemos ao Rio ainda lotados em Argel. A desvalorização do real, em função da crise cambial que se abateu sobre a economia brasileira, me deu condições de adquirir o apartamento que há cousa de um ano tínhamos visitado. Achava-se, então, fora do alcance de nossa bolsa. Pelos desmandos financeiros do neoliberalismo que Fernando Henrique abraçara, ora se nos afigurava possível, o que antes não era.

       Nesse tempo, recordo-me de almoço a que compareci, apesar de convalescente de crise de coluna. Já para o fim da refeição, que terá sido no bar Monteiro, a argumentação te empolgou e com teu gestual descontrole, largaste o braço sobre o copázio de chope. O movimento repentino, que pontuava alguma esquecida afirmação, o jogou, com o basto conteúdo, na minha direção, me empapando a calça jeans. Nada disso teria importância, senão pelo subitâneo repelão, com que, instintivamente, procurei evitar ser atingido pelo imprevisto jorro.

       A única coisa que consegui, com a brusquidão da vã esquiva, foi reavivar a afecção. Jamais esquecerei a expressão, não contrafeita mas culpada, com que contemplaste a tua involuntária obra.  Parecias antes um menino colhido em traquinagem, do que um provecto senhor que de muito ultrapassara os setenta.

        Nunca um encontro terminaria de forma mais abrupta e melancólica. Tenho diante  de mim a imagem dos dois – eis que, talvez por hábito, Rezende se associou à tua postura – a olhar-me, desconsolados, enquanto a custo lograva conter a irritação, alimentada pela certeza dos dias que teria de passar acamado por força daquela disritmia que, por vezes, te acometia.

        Em fins de 1998, recebera de Samuel Pinheiro Guimarães a encomenda de redigir, sob o prisma político-diplomático a contribuição sobre a visao externa dos Estados Unidos da América, de 1945 até 1998. Tive um ano para apresentar o trabalho, que seria analisado por dois seminários (novembro de 1999, em São Paulo e no Rio de Janeiro). A ideia seria aproveitar eventuais observações e/ou correções feitas pelos debatedores, para entõ o trabalho ser editado em livro do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais (IPRI). O meu estudo, aprovado sem emendas, com as suas 180 páginas, veio a representar mais de metade do volume publicado. Infelizmente, a crise cambial inviabilizou a reunião, igualmente programada, de seminário em New York, com a participação de brasilianistas, assim como a tradução do tomo em inglês.

        Já regressara ao Brasil quando recebi os cinco exemplares do livro, a que fazia jus. Destinei dois à dupla, e de ti não tardaria em colher comentários em que demonstraste não só a tua apreciação da monografia, senão minudente e cuidadosa leitura do texto. Infunde não pequeno prazer ao autor a percepção de que o próprio escrito foi lido e avaliado com atenção, boa vontade e interesse.

       Não era do teu feitio dispensar encômios fáceis e vazios. Se não regateavas elogios, caso visses que o trabalho fazia  por merecê-lo, não deixavas tampouco de apontar as lacunas, nem de questionar aqueles tópicos com que não estarias de acordo.

        Sempre valorizaste as minhas produções com análise fundada no teu saber, assim como em oportunos e pertinentes comentários. E tal atenção não reservaste apenas àqueles volumes que de mim recebias graciosamente. Quando a revista Vozes publicou no ano seguinte contribuição minha sobre a Revolução Guatemalteca, trataste logo de adquirir um exemplar, para poder ler o artigo do amigo.             

       Antes que nos aventuremos pelo terceiro milênio, tenho de referir uma aquisição livresca, feita quando ainda estava em Argel. Parece-me importante assinalá-la,porque de algum modo, repercutiria em nossas relações.

       Desde muito perseguia a obra de I. Düring intitulada “Aristotle in the Ancient Biographical Tradition”. Datada de 1957, e publicada em Gotemburgo, semelhava inacessível, eis que em todas as pesquisas precedentes esbarrara na sua condição de esgotada.

      Lembrei-me então do meu antigo parceiro de pôquer, Luis Felipe Teixeira Soares, que nessa época era embaixador em Estocolmo. Conseguiu ele que do exemplar existente na Biblioteca Real se fizesse uma cópia-xerox.

     Não obstante a relevância do livro, o meu programa de aprendizado só me permitiu enfrentá-lo já transferido para o Rio. Logo me daria conta de peculiar característica dessa douta análise da biografia aristotélica vista através da tradição antiga, seja favorável, seja hostil. Escrita em inglês, na sua maior parte se compunha de citações dos velhos manuscritos, em grego clássico. Havia, igualmente, mas em percentagem assaz inferior, transcrições em latim. Acresce notar partir o autor do pressuposto que o leitor também dominava essas duas línguas. Somente em parcos e isolados comentários, dignava-se Düring a traduzir umas tantas frases.

        Encetei a leitura dessa obra de Düring quando o meu conhecimento do grego era bastante mais precário. Sem as facilidades das edições bilíngues da Loeb, muita vez lidava com passagens sem sequer a possibilidade de cotejar a minha interpretação com trecho de autor clássico conhecido a cuja tradução pudesse ter acesso. Por assim dizer, perlustrava muitas páginas sem qualquer rede de segurança.

       Não me atreverei a afirmar que haja compreendido corretamente todas as 455 páginas com citações de fontes da Antiguidade clássica, helenística, e dos primeiros séculos da era cristã, porém se o meu exercício do grego há de ter experimentado progressos, pude aí servir-me de manancial de informações indisponível alhures acerca da tradição biográfica aristotélica.

        Nesses primeiros anos de estada carioca, ou na minha temporada em Limoges, como já o referi acima, embora relutasse em pedir a aposentadoria, essa perspectiva, diante do desfavor dos ministros neoliberais de FHC, começava a ser por mim considerada. Nesse período, além dos encontros da trinca, surgira um outro grupo, que se reunia irregularmente em restaurante no Largo do Machado.

        Os almoços aconteciam quando da passagem de Maria Eugênia McDowell, que vinha semestralmente do Recife para exames médicos. Participavam, igualmente, Ilda (x)  e um padre. Conquanto as duas te conhecessem, a conexão era dada pelo Rezende. A convite dos meus dois amigos, mas sobretudo do Rezende, associei-me a esse programa.

       No entanto, bastaram umas duas ou três vezes para que mudasse de ideia. A mudez do sacerdote seria uma razoável indicação quanto à substância dos temas aí tratados. Por outro lado, Ilda, malgrado a idade, além de gostar de beber, entra na categoria das alcoolizadas cuja convivência se torna inconveniente senão desagradável.

       Como em tantas outras coisas, a nossa reação quanto ao grupo foi bastante similar.  A despeito de conhecê-las desde os bancos acadêmicos, não hesitaste em eludir novos convites transmitidos pelo Rezende. Para tanto, facilitou a absurda pretensão de Ilda de que nos encontrássemos no Leme. Se descer de Petrópolis para conversas sem propósito no Largo do Machado não constituía o mais atraente dos programas, muito menos enfrentar o desconforto de ir para um local bastante fora de mão.

       Alacremente, concordamos em tirar o corpo fora, com desculpas adrede combinadas. A nossa preocupação maior seria a de não magoar o Rezende. As escusas, tanto tuas, quanto minhas, sempre se fundariam em motivos episódicos, e nunca na verdadeira razão da negativa. Rezende, que tolo não é, acabou por entender a mensagem, e nunca mais nos convidou para as reuniões do tal grupo.

         Por volta do lusco-fusco da gestão no Itamaraty de um senhor que se assinalara pela proeza de descalçar os sapatos por três vezes no mesmo dia para comprazer aos inspetores do amo hegemônico, resolvi requerer a aposentadoria. Acerca do pedido, decerto intempestivo, nada disse para ti. Talvez por ser a circunstância dolorosa para mim. A displicência dos que partiam me proporcionaria a ocasião rara de ter a pretensão tacitamente denegada pela nova Administração. Tanto Celso Amorim, na qualidade de Ministro, quanto Samuel, na de Secretário-Geral, para surpresa do Ministro Eduardo Prisco Paraíso, Chefe do Departamento do Serviço Exterior, acharam que era hora de ter a minha colaboração e não de dispensá-la. Não são muitos, meu caro Amigo, de quem a vida funcional registre tão nobre e dignificante recusa.

        O ano de 2003 seria divisor de águas em mais de um sentido. Tenho à minha cabeceira fotografia em que sorridente pouso mão carinhosa na bela criança que é meu neto Frederico, alçado pelos braços de Ana. Tímida presença nos meus retratos, aqui a felicidade se mostra sem negaças. E, não obstante, hoje para mim representa também memento de quão fugazes podem ser tais instantes. Em dois meses e meio, a dezoito de março, estava sendo operado da próstata no hospital Albert Einstein por mãos hábeis e competentes. Seguiu-se convalescença de cerca três meses, a princípio, em São Paulo, na forçada companhia de uma sonda. Depois, no Rio de Janeiro, até que estivesse em condições de viajar a Brasília, e aceitar o encargo de chefiar o Ererio.

        Poucas pessoas foram informadas de minha operação. Em almoço no restaurante Urich eu inteirara a Rezende e a ti da intervenção cirúrgica a que me submeteria. Por iniciativa de Rezende, ambos me telefonaram para o leito do hospital, onde, ainda meio grogue, me aprestava a atravessar uma longa noite, em que careci de transfusão de plasma sangüineo. Nesta hora difícil, tive a meu lado o filho Raphael – que veio de Buenos Aires – e minha companheira Ana.

       A 21 de agosto de 2003 assumi a chefia do Escritório do Itamaraty no Rio de Janeiro, então a triste sombra do ministério que partira para Brasília em 1970. Encontrei uma casa muito mal cuidada, tanto no aspecto funcional, quanto no material. Ao realizar o desafio que se me deparava, destituído de gente e de meios, sob o impacto do recente furto na Mapoteca, não posso olvidar a previsão de um colega de que não aguentaria mais de dois meses à testa daquele monstro de incúria, negligência e desorganização.

       À exceção de Ana, que partilhou as angústias e me deu o necessário e indispensável apoio, a ninguém dei conhecimento da real situação no Ererio e das imensas dificuldades e tribulações a enfrentar.

       Se até hoje ainda sofro as consequências de haver aceito ser o titular desse Escritório de Representação, jamais hesitarei, ao me perguntarem da maior provação e êxito experimentados na carrière, em responder – Ererio ! Foram dois anos, dois meses e uns dez dias em que nem tudo pude consertar, mas nos quais deixei um próprio estatal em estado incomparavelmente melhor daquele recebido.

        Recordo-me de uma das minhas primeiras providências, sentado na enorme sala, reminiscente da azáfama do antigo departamento econômico, com desproporcional e incongruente pintura de um Simon Bolivar a cavalo. Encaminhei para ti atualizada Lista de Ramais da Secretaria de Estado, para agilizar os teus periódicos contatos com as instâncias de pessoal, nos telefonemas relativos a dúvidas quanto a determinados ítens do teu contracheque. Verifiquei, outrossim, se o teu endereço estava corretamente registrado e te mandei alguma outra publicação, que o tempo já apagou da lembrança.

        No próximo almoço me agradeceste pelas remessas e me prometeste fazer uma visita. Sabia que não virias mas, assim mesmo, te disse o meu muito obrigado. Ir ao Palácio Itamaraty, para quê ? Tinha eu na memória as imagens do colega, seja sentado em mesa da prestigiosa Divisão Política, seja no balcão da Biblioteca entre consultando acerca de um livro e namoriscando a futura esposa, seja atravessando, no teu passo estugado, o pátio defronte da Sala dos Índios. Porque  então afanar-se por uma rua Larga hoje decadente, desperdiçando preciosos quartos de hora, para estar com um amigo encastelado em velho casarão ? Porque todo esse esforço, se temos encontro marcado no restaurante de costume, na companhia do Rezende, lá por volta de uma hora ?

       Bem vês, meu bom Amigo, que não é preciso levar a sério esta promessa. Vamos nos rever daqui a pouco, na mesinha do Urich, trocar as nossas figurinhas de sempre.

      Com profundo, indescritível apreço,

 
(x)  pseudônimos.

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