Cabe de início breve análise da passagem de
Bernie Sanders pelo Senado estadunidense. Pode-se chamá-la de medíocre ou de
pouco afirmativa. Sem haver passado em branca nuvem, não resta dúvida que
Sanders foi um membro relativamente apagado. Eleito em 2007 para o Senado, e
reeleito em 2012, sendo independente, sem pertencer às bancadas democrata e
republicana, terá sido mais próximo, pela sua posição política, aos democratas.
Ocupa lugar de certa relevância na Comissão de Apropriações do Senado, mas com a
recente vitória do Partido Republicano, que logrou a maioria também no Senado,
a sua posição no Appropriations Committee ficou fragilizada.
Por outro lado, dada a sua posição liberal (no sentido americano, com viés
de esquerda), desperta espécie o seu voto junto com a bancada das armas.
A questão da posse de uma arma tem peso
político muito grande nos Estados Unidos, e a National Rifle Association detém
poder nos órgãos legislativos, servindo-se para tanto - para manter as bancadas
fiéis aos seus interesses - do uso alternativo do bastão e da cenoura (carrot
and stick).
Dessarte, o seu voto alinhado com a bancada
das armas - sobretudo à luz das alegadas posições de esquerda - tende a provocar uma certa espécie, quanto a seu
caráter oportunista. No entanto, a própria luta malograda do Presidente Barack
Obama - na prática o 44° Presidente dos Estados Unidos quase nada logrou em
termos de um controle modesto sobre a venda indiscriminada de armas nos Estados
Unidos, com as consequências que bem conhecemos que resultam da inexistência de
controles sobre a venda de armas e mesmo de armamento de repetição, de alta letalidade,
nos Estados Unidos.
Que o esquerdista
Bernie Sanders, com as suas conhecidas posições liberais tenha votado com a
bancada das armas não constitui decerto um marco de coragem política, dada
inclusive a retórica e a pregação do Presidente Obama, por conta dos inúmeros
massacres decorrentes desse predomínio da NRA e do lobby das armas, que vai
conquistando no Congresso as maiorias necessárias que, na prática, lavam as
mãos diante dos massacres que se repetem e inclusive de crianças.
Que Obama nada pôde lograr para cercear o
poder do lobby das armas nos Estados Unidos mesmo diante da tragédia da escola
de Sandy Hook, em que 20 crianças (entre seis e sete anos) e seis adultos foram
trucidados por um desequilibrado, na cidadezinha de Newtown, em Connecticut diz
quase tudo quanto à força desse lobby, mas também sobre a fraqueza da cidadania
americana que se deixa dominar pela National Rifle Association, e as suas
propositais confusões entre a defesa do solo pátrio e doméstico, que intencionalmente
confundem a salvaguarda do respectivo lar com abertura indiscriminada do
comércio armamentista.
Ao analisar a posição da imprensa
estadunidense e de muitos jornalistas americanos, entende-se um tanto mais por que
Hillary Clinton vem enfrentando tanta resistência, sobretudo nos círculos
liberais e na juventude universitária.
Nas próprias mulheres, causa
estranhável assombro que a possibilidade de uma representante do sexo feminino
venha a tornar-se não só cabeça de chapa do Partido Democrata, mas candidata a
ingressar na Casa Branca, não mais como integrante da família de um Presidente,
mas sim com as prerrogativas de Madam
President - circunstância até hoje jamais acontecida nos United States of America - não haja repercutido
com a intensidade e a veemência que se poderia esperar, dada a longa caminhada
do sexo feminino nos USA para galgar a escada do serviço público eletivo.
Com efeito, as suffragettes nos
Estados Unidos, depois de longa e intensa campanha de motivação política,
lograram obter o direito do voto em 1920 (no Brasil, foi em 1934). No entanto,
somente no corrente ano, elas se aproximam do palanque presidencial com a
perspectiva de nele ocupar o lugar de honra.
Hillary terá apoio no eleitorado feminino, mas
a proporção desse engajamento pode ser visto, sob muitos aspectos, como não
entusiasmante, eis que em certos estados o septuagenário Bernie Sanders tenha
colhido nas primárias a porção majoritária do voto feminino.
É uma questão sociológica que a presente
ocasião não contribua para a afluência e sobretudo para a motivação do voto de
uma representante do sexo feminino, depois dessa longa travessia (em 2020 se
completa um século da franquia do voto para a mulher na terra de George
Washington). A primeira mulher candidata a vice-presidente, na chapa do
democrata Walter Mondale, foi Geraldine Ferraro, em 1984. Esta
chapa venceu em apenas um estado (Minnesota) e Ronald Reagan reelegeu-se Presidente,
em uma das maiores landslides[1] da
história americana...
A dificuldade que Hillary
encontra com a imprensa pode ter a ver com a atitude compreensivelmente de
certa tensão com que o casal Clinton tem de lidar com muitos de seus
representantes.
A começar pelo maior jornal de
todos, o New York Times, que saudou a candidatura de Bill Clinton com uma série
especial de artigos (em inícios da década de noventa) sobre o empreendimento de
Whitewater. O que o Times pretendia
fosse a revelação de iniciativa meio shady
(algo comprometedora) do casal Clinton, não deu em nada, salvo a tensão e o
desgaste proporcionado por uma investigação que engajou dois promotores
especiais. O primeiro, Robert Fiske, demasiado moderado e sério para contentar
os inimigos dos Clinton, foi despedido por mini-comitê de senadores
republicanos, encimado pelo poderoso Jesse Helms, que colocou em lugar de Fiske
o terrível Ken Starr, que foi até o impeachment de Clinton, mas que não
conseguiu derrubá-lo nem nada provar contra o casal Bill & Hillary.
Minha impressão sobre muitas
das dificuldades e escolhos encontrados pelo futuro Presidente e sua
preparadíssima esposa se deveria ao fato de não terem o anteparo do
relacionamento que cerca os casais com pretensões à Casa Branca.
Reclamando certa vez Clinton do
tratamento que recebia do jornal do establishment,
o diretor lhe disse que era apenas tough
love, expressão de tradução difícil, mas que tem muito a ver com as maneiras
brutais que por vezes assinalam um relacionamento sincero...
Diga-se, de
passagem, que a contradição permanece agora no que concerne à
pré-candidata Hillary. Não é que o Times, a despeito de fazer uma
investigação jornalística acerca da Fundação Clinton e de seus financiamentos,
não viu contradição em endossar publicamente a candidatura à Presidente de
Hillary Clinton? Também o jornal ensaiou
artigos sobre um dos dois irmãos de Hillary, Hugh Rodham, que tampouco tiveram
êxito nos seus propósitos de jornalismo investigativo...
Espanta que um ex-presidente com
a popularidade que teve - e que o ajudou deveras a vencer o escândalo de suas
relacões com Monica Lewinski - e uma primeira dama, que já trabalhara como
assistente no Congresso na bancada democrata sobretudo na campanha que levou ao
impeachment de Richard Nixon, e que
depois seria a esposa do governador de Arkansas, sempre com papéis importantes,
e, mais tarde, a primeira dama em Washington, a quem o esposo confia a missão
impossível de preparar e aprovar uma reforma da saúde, e mais tarde viria a
tornar-se seriíssima candidata à nomeação
em 2008, e derrotada por Barack Obama, ainda se houve muito bem como Secretária
de Estado, por quatro anos - esse casal formado por um dos presidentes mais
populares nos Estados Unidos (por isso os republicanos não conseguiram
afastá-lo da cadeira presidencial) e de uma mulher intelectual e política de
nomeada - continue a enfrentar tantas dificuldades na expressão desse tough love tantas ocultas resistências no
Leste estadunidense que só podem ser explicadas se vistas através das lentes
embaçadas de um certo preconceito no que concerne aos políticos do Sul
americano, notadamente em estado como Arkansas que não tem essa importância
toda, nem mesmo no Deep South
estadunidense[2].
A vitória de Bernie Sanders nas
primárias do Estado de Wisconsin, se não abre crise na candidatura de Hillary,
acende mais do que sinal amarelo de atenção. É a quinta derrota em primárias. O
terreno preferido de Bernie lhe foi dado em Wisconsin, com as dificuldades
econômicas enfrentadas por esse estado. Também o ajudaram os extratos de
trabalhadores brancos e de jovens universitários entusiasmados com as suas
propostas de empréstimos para a educação superior.
Agora ambos se destinam para o
Estado de New York, que é grande desafio para os dois, mas sobretudo para
Hillary, que se considera como uma nova-iorquina (foi por longo tempo senadora
por New York). Ao contrário desses últimos estados, estão aí presentes os
negros, os latinos e a população nova-iorquina que a conhecem de longa
data. Daí o desafio para ambos, mas
sobretudo para Hillary, eis que ela tem de vencer nesse grande estado se
pretende arrancar a nomination. (a continuar)
( Fonte: The New York Times )
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