quarta-feira, 6 de abril de 2016

Os "Amigos" de Hillary (2)


                             

             Cabe de início breve análise da passagem de Bernie Sanders pelo Senado estadunidense. Pode-se chamá-la de medíocre ou de pouco afirmativa. Sem haver passado em branca nuvem, não resta dúvida que Sanders foi um membro relativamente apagado. Eleito em 2007 para o Senado, e reeleito em 2012, sendo independente, sem pertencer às bancadas democrata e republicana, terá sido mais próximo, pela sua posição política, aos democratas. Ocupa lugar de certa relevância na Comissão de Apropriações do Senado, mas com a recente vitória do Partido Republicano, que logrou a maioria também no Senado, a sua posição no Appropriations Committee ficou fragilizada.

             Por outro lado, dada a sua posição liberal (no sentido americano, com viés de esquerda), desperta espécie o seu voto junto com a bancada das armas.

             A questão da posse de uma arma tem peso político muito grande nos Estados Unidos, e a National Rifle Association  detém poder nos órgãos legislativos, servindo-se para tanto - para manter as bancadas fiéis aos seus interesses - do uso alternativo do bastão e da cenoura (carrot and stick).    

              Dessarte, o seu voto alinhado com a bancada das armas - sobretudo à luz das alegadas posições de esquerda - tende a provocar uma certa espécie, quanto a seu caráter oportunista. No entanto, a própria luta malograda do Presidente Barack Obama - na prática o 44° Presidente dos Estados Unidos quase nada logrou em termos de um controle modesto sobre a venda indiscriminada de armas nos Estados Unidos, com as consequências que bem conhecemos que resultam da inexistência de controles sobre a venda de armas e mesmo de armamento de repetição, de alta letalidade, nos Estados Unidos.

              Que o esquerdista Bernie Sanders, com as suas conhecidas posições liberais tenha votado com a bancada das armas não constitui decerto um marco de coragem política, dada inclusive a retórica e a pregação do Presidente Obama, por conta dos inúmeros massacres decorrentes desse predomínio da NRA e do lobby das armas, que vai conquistando no Congresso as maiorias necessárias que, na prática, lavam as mãos diante dos massacres que se repetem e inclusive de crianças.

              Que Obama nada pôde lograr para cercear o poder do lobby das armas nos Estados Unidos mesmo diante da tragédia da escola de Sandy Hook, em que 20 crianças (entre seis e sete anos) e seis adultos foram trucidados por um desequilibrado, na cidadezinha de Newtown, em Connecticut diz quase tudo quanto à força desse lobby, mas também sobre a fraqueza da cidadania americana que se deixa dominar pela National Rifle Association, e as suas propositais confusões entre a defesa do solo pátrio e doméstico, que intencionalmente confundem a salvaguarda do respectivo lar com abertura indiscriminada do comércio armamentista.

              Ao analisar a posição da imprensa estadunidense e de muitos jornalistas americanos, entende-se um tanto mais por que Hillary Clinton vem enfrentando tanta resistência, sobretudo nos círculos liberais e na juventude universitária.

              Nas próprias mulheres, causa estranhável assombro que a possibilidade de uma representante do sexo feminino venha a tornar-se não só cabeça de chapa do Partido Democrata, mas candidata a ingressar na Casa Branca, não mais como integrante da família de um Presidente, mas sim com as prerrogativas de Madam President - circunstância até hoje jamais acontecida nos United States of America - não haja repercutido com a intensidade e a veemência que se poderia esperar, dada a longa caminhada do sexo feminino nos USA para galgar a escada do serviço público eletivo.

              Com efeito, as suffragettes nos Estados Unidos, depois de longa e intensa campanha de motivação política, lograram obter o direito do voto em 1920 (no Brasil, foi em 1934). No entanto, somente no corrente ano, elas se aproximam do palanque presidencial com a perspectiva de nele ocupar o lugar de honra.

               Hillary terá apoio no eleitorado feminino, mas a proporção desse engajamento pode ser visto, sob muitos aspectos, como não entusiasmante, eis que em certos estados o septuagenário Bernie Sanders tenha colhido nas primárias a porção majoritária do voto feminino.

               É uma questão sociológica que a presente ocasião não contribua para a afluência e sobretudo para a motivação do voto de uma representante do sexo feminino, depois dessa longa travessia (em 2020 se completa um século da franquia do voto para a mulher na terra de George Washington). A primeira mulher candidata a vice-presidente, na chapa do democrata Walter Mondale, foi Geraldine Ferraro, em 1984. Esta chapa venceu em apenas um estado (Minnesota) e Ronald Reagan reelegeu-se Presidente, em uma das maiores landslides[1] da história americana...

                A dificuldade que Hillary encontra com a imprensa pode ter a ver com a atitude compreensivelmente de certa tensão com que o casal Clinton tem de lidar com muitos de seus representantes.

                 A começar pelo maior jornal de todos, o New York Times, que saudou a candidatura de Bill Clinton com uma série especial de artigos (em inícios da década de noventa) sobre o empreendimento de Whitewater. O que o Times pretendia fosse a revelação de iniciativa meio shady (algo comprometedora) do casal Clinton, não deu em nada, salvo a tensão e o desgaste proporcionado por uma investigação que engajou dois promotores especiais. O primeiro, Robert Fiske, demasiado moderado e sério para contentar os inimigos dos Clinton, foi despedido por mini-comitê de senadores republicanos, encimado pelo poderoso Jesse Helms, que colocou em lugar de Fiske o terrível Ken Starr, que foi até o impeachment de Clinton, mas que não conseguiu derrubá-lo nem nada provar contra o casal Bill & Hillary.

                Minha impressão sobre muitas das dificuldades e escolhos encontrados pelo futuro Presidente e sua preparadíssima esposa se deveria ao fato de não terem o anteparo do relacionamento que cerca os casais com pretensões à Casa Branca.

                Reclamando certa vez Clinton do tratamento que recebia do jornal do establishment, o diretor lhe disse que era apenas tough love, expressão de tradução difícil, mas que tem muito a ver com as maneiras brutais que por vezes assinalam um relacionamento sincero...

                Diga-se, de passagem, que a contradição permanece agora no que concerne à pré-candidata  Hillary. Não é que o Times, a despeito de fazer uma investigação jornalística acerca da Fundação Clinton e de seus financiamentos, não viu contradição em endossar publicamente a candidatura à Presidente de Hillary Clinton?  Também o jornal ensaiou artigos sobre um dos dois irmãos de Hillary, Hugh Rodham, que tampouco tiveram êxito nos seus propósitos de jornalismo investigativo...

               Espanta que um ex-presidente com a popularidade que teve - e que o ajudou deveras a vencer o escândalo de suas relacões com Monica Lewinski - e uma primeira dama, que já trabalhara como assistente no Congresso na bancada democrata sobretudo na campanha que levou ao impeachment de Richard Nixon, e que depois seria a esposa do governador de Arkansas, sempre com papéis importantes, e, mais tarde, a primeira dama em Washington, a quem o esposo confia a missão impossível de preparar e aprovar uma reforma da saúde, e mais tarde viria a tornar-se seriíssima candidata à nomeação em 2008, e derrotada por Barack Obama, ainda se houve muito bem como Secretária de Estado, por quatro anos - esse casal formado por um dos presidentes mais populares nos Estados Unidos (por isso os republicanos não conseguiram afastá-lo da cadeira presidencial) e de uma mulher intelectual e política de nomeada - continue a enfrentar tantas dificuldades na expressão desse tough love tantas ocultas resistências no Leste estadunidense que só podem ser explicadas se vistas através das lentes embaçadas de um certo preconceito no que concerne aos políticos do Sul americano, notadamente em estado como Arkansas que não tem essa importância toda, nem mesmo no Deep South estadunidense[2].

               A vitória de Bernie Sanders nas primárias do Estado de Wisconsin, se não abre crise na candidatura de Hillary, acende mais do que sinal amarelo de atenção. É a quinta derrota em primárias. O terreno preferido de Bernie lhe foi dado em Wisconsin, com as dificuldades econômicas enfrentadas por esse estado. Também o ajudaram os extratos de trabalhadores brancos e de jovens universitários entusiasmados com as suas propostas de empréstimos para a educação superior.

                 Agora ambos se destinam para o Estado de New York, que é grande desafio para os dois, mas sobretudo para Hillary, que se considera como uma nova-iorquina (foi por longo tempo senadora por New York). Ao contrário desses últimos estados, estão aí presentes os negros, os latinos e a população nova-iorquina que a conhecem de longa data.  Daí o desafio para ambos, mas sobretudo para Hillary, eis que ela tem de vencer nesse grande estado se pretende arrancar a nomination. (a continuar)

              

 

( Fonte: The New York Times )



[1] Landslide significa avalanche. No contexto político, pode ser traduzido como 'vitória esmagadora'.
[2] Sul Profundo.

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