O desprendimento do Advogado-Geral-da-União, José
Eduardo Cardozo, em uma defesa, sem peias, do mandato de sua Presidenta, Dilma
Vana Rousseff, tem provocado reações de surpresa, admiração, estupefação e contida reserva do respeitável público.
A surpresa
é decorrência dos cínicos mores da
capital, em que faz figura rara a dedicação à personalidade que desce
manifestamente o Sunset Boulevard, em
movimento inercial a que não semelham existirem freios em disponibilidade. Mais
ainda, o desprendimento exibido pelo personagem, que está pronto a aparecer em
todos os cenários, para repetir, em diversas versões, o seu discurso de
advogado em tribunal, para tentar salvar alguém que está com a causa
mal-parada.
A admiração
surge nos públicos os mais diferenciados porque o comportamento do Ministro
Cardozo tende a diferenciar-se da usual atitude da gente de Brasília que, se
tem modulações, segue um padrão que é o de tirar o chapéu para quem está por
cima, e ignorar a presença de quem está por baixo. Pode ser que os mais cínicos
aventem a hipótese de que Cardozo esteja comprando na baixa, mas é suficiente
acompanhar-lhe as reações para ver que lhe rege a postura um desprendimento que
pouco tem a ver com o padrão de Brasília. Pois Cardozo não tem medido esforços
no seu afã de defender a sua Presidenta. E há um óbvio, manifesto e ardoroso
empenho de jovem advogado, quase solicitador na sua disposição de lançar-se a
todos os possíveis caminhos, mesmo os mais improváveis, e não é que o faça pro-forma, com a intenção de tapar
bocas, mas sim a de tentar todas as
vias, mesmo as mais contorcidas e sinuosas, que, de alguma forma, admitam ser
vistas como podendo contribuir para o bom cumprimento da respectiva missão.
No mundo hodierno, em que a vontade de
cumprir o próprio dever, nas
circunstâncias que sobrepairam esta nobre vinheta do drama da Presidente Dilma
Rousseff, não deixa de causar espécie naqueles que só costumam prodigar-se
mediante régios pagamentos nas moedas da progressão funcional, que ainda se
possam divisar personalidades que tenham tal capacidade de ir além de o que esperar-se possa de alguém
nas condições do Advogado-Geral da
União.
Será por isso que caberia no caso
uma atitude emotiva mais forte, a estupefação.
Falo do Ministro Cardozo pelo que, diante dos padrões vigentes, teria de
meritório a sua atitude. Não exageremos, porém. Dilma Rousseff tem diante dela
a perspectiva de uma interrupção no seu segundo mandato, por erros e alegados
crimes cometidos tanto no primeiro, quanto no segundo - que para ela, apenas
começava. Nesse sentido, se não posso comparar a abnegação e o desprendimento
do Ministro José Eduardo Cardozo, com a coragem e a serena certeza dos riscos
em que incorria do Marquês de Malesherbes[1],
que se dispusera a vir à tribuna do
julgamento pela Convenção de Luís XVI[2],
para defender o seu antigo soberano da quase certeza da guilhotina, guardadas
as enormes diferenças - o Ministro Cardozo decerto não corre nenhum risco,
muito menos o de ser guilhotinado, como o foi Malesherbes. Este último, como se
sabe, tinha sido Censor enquanto reinava Luís XVI, e nessa condição recebeu
quatro grandes cartas do filósofo Jean-Jacques Rousseau[3],
sobre o ofício de escritor e a liberdade.
No caso do Ministro José Eduardo Cardozo, diga-se de paso que a sua atitude prodigando-se na defesa de sua Presidenta, merece os elogios que vem recebendo quiçá pela circunstância de que ela excede os parâmetros usuais, o que só tende a sublinhar-lhe os traços de generosidade, dedicação e empenho, dados de uma forma que só dignifica a quem os prodiga.
Acrescente-se e não de paso que o Ministro Cardozo foi
afastado do Ministério da Justiça, em que servira a, por vezes, irascível
Presidenta desde a sua posse em primeiro de janeiro de 2011, no seu mandato
inicial. Não obstante haver servido com distinção e discrição Dilma Rousseff,
as dificuldades terminais do seu mandato forçaram a Chefe de Estado a
lembrar-se do demissível ad nutum
também para aquele que ocupara o Ministério mais antigo com exação e a possível
discrição.
(Fontes: Correspondance Générale de J.-J.
Rousseau, Enciclopédia Delta-Larousse, Constituição da República Federativa do
Brasil-1988, Sunset Boulevard, de Billy Wilder, Tradição Helênica)
[1] Chrétien de Lamoignon de
Malesherbes (1721-1794)
[2] Luís XVI (Versalhes
1754-1793). Sua sentença de morte foi votada por pequena maioria da Convenção,
e guilhotinado em 21 de janeiro de 1793.
[3] Jean-Jacques Rousseau
(Genebra 1712-Ermenonville 1778), o filósofo precursor da Revolução Framcesa;
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