Não é de hoje que o regime de Vladimir V.
Putin singulariza o estrangeiro, como elemento vizinho ao indesejável. Ver o
alienígena como ameaça é uma característica das ditaduras. Em sociedade como a
Rússia em que o preconceito contra o estrangeiro existe, o governo autoritário
não hesitou em associar a onda de protestos de 2012 como devida também a
influências estrangeiras.
Não será
pela sutileza ou o combate franco na arena pública das idéias que gospodin Putin parece crer que terá
maiores possibilidades de prevalecer.
Passados os
embates e os protestos da população moscovita contra eleições fraudadas e o
avanço da corrupção, o regime tratou de apertar as cravelhas de organizações sociais
que recebessem alguma assistência do Ocidente.
O povo russo
guarda experiência de gerações em que o estrangeiro, o forasteiro tende a ser
agente de propósitos e idéias que, supostamente, não se coadunem, nem visem a
favorecer avanço e pujança dos valores nacionais.
Vagando no
inconsciente da massa, e resultado de décadas de preconceito contra o xenos, o estrangeiro – que nada de bom supostamente traria – essa atitude estaria
letárgica nesse subconsciente popular. Pode-se deparar com tal preconceito,
sobretudo na direita, e seu abrigo estaria mais nas camadas de baixa renda.
Para
despertá-lo bastará um evento que o Kremlin distorça. Nas grandes nações
continentais – e não há muitas – que sofreram invasões de hordas alienígenas,
esse temor, essa ojeriza a suposta ameaça pode dormitar no inconsciente
coletivo. Nos séculos passados, anteriores à Grande Guerra de 1914 – 18, o Império Russo, como potência continental,
fora assolado por grandes exércitos, vindos seja do Ocidente (Napoleão foi o
último deles), e também do Oriente, seja com as invasões dos Khan asiáticos.
Se Moscou e
São Petersburgo prevaleceram, o padecimento nessa luta marcou deveras a massa
de camponeses e da população em geral. Assim, é difícil para os extratos de
menor renda – solo fértil para vetustos preconceitos - e mesmo as classes com
mais recursos liberar-se desse íncubo do estrangeiro como o malfeitor invasor.
A esse
propósito, exemplo pessoal pode ter alguma valia. Quando assisti no Bolshoi espetáculo sobre o Tzar Boris
Godunov – em que se retratam igualmente as nações a leste, naquele tempo
com poder bastante para enfrentar a Rússia
imortal – me espantou deveras que os atores e dançarinos que representavam os
estrangeiros eram recebidos em gélido silêncio por plateia que não era
exatamente de camponeses e operários. Aquela me seria lição prática de que
antigas batalhas, há muito sepultas, ainda transpiram fortes emoções e longevos,
empedernidos ressentimentos.
Nesse
terreno minado, a aversão e as antigas memórias de batalhas que hoje só existem
nas páginas dos manuais de história pareciam pulsar, como se bastasse que clássico
espetáculo fosse encenado acerca dessas longínquas porfias para que repontasse
nas cuidadas fileiras do Bolshoi, com o coletivo gesto carrancudo por agravos
que os séculos não logram seja perdoar,
seja esquecer.
Não foi difícil, por conseguinte, ao governo
Putin, na sua paranoia contra o Ocidente como o transmissor do mal da
democracia, cuidar de associá-lo aos râncidos temores do povo russo com os maus ventos que
vem de fora. Para tanto, se procura sufocá-las com a burocracia, a que se
acresce o rótulo embaraçante e, para muitos, malcheiroso do agente estrangeiro.
Assim, o
trabalho de muitas organizações de direitos humanos na Rússia se vê estorvado
pela virtual proibição de recebimento de fundos do estrangeiro. Sob esses velhos fantasmas do inconsciente
coletivo,é que uma organização não-governamental vem a ser rotulada como
“agente estrangeiro”, tal equivale na prática a confissão de conluio com o
alienígena, que nada de bom pretende trazer para a Velha Rússia...
A
etiqueta de “agente estrangeiro” semelha, contudo, não estar atendendo aos
respectivos fins de inviabilizar na prática a ação de ONGs locais \(que recebem
subvenções do exterior). Tal se aplica sobretudo a entidades cujo prestígio
seja suficientemente alto e sólido para que a insinuação de ‘agente
estrangeiro’ não logre impedir que o trabalho da agência em causa continue a
ser visto como benéfico para a pátria russa.
Todavia, como essa lógica da insinuação não tem logrado, na amplitude desejada pelo regime, os seus
fins de fazê-las encerrar a respectiva atividade – eis que a verdade e o sólido
conceito de muitas associações vem contribuindo para cegar o molesto efeito de
“agente estrangeiro” - o autoritarismo
de Putin se vê constrangido àquele velho recurso do lobo diante do cordeiro –
se não foi seu pai, foi seu avô.
Para
pôr abaixo a ulterior resistência do regime autoritário, o Kremlin já fez aprovar pelo Parlamento
legislação contra “organizações indesejadas”.
É típico das ditaduras esse endurecimento, que radicaliza a questão, e
arranca a máscara que pespegava o sinal de “agente estrangeiro” na ONG ou outra
organização. Pela nova lei, assinada por Vladimir Putin na semana passada, o
governo tem inteira liberdade de fechar de forma rápida organizações que, supostamente,
ameacem o Estado.
Com o
fuzil da ditadura, o tratamento coercitivo e violento está no DNA desse estado
autoritário. E, dessarte, impelido pela necessidade de agir com suposta
eficiência, desaparece qualquer simulacro
de diálogo e com a sua partida, os anteriores intentos de tapar sol com peneira. A lógica da
violência não dá alternativa ao poder autoritário.
Com
efeito, o DNA do estado autoritário – penúltimo degrau na transição para a
ditadura – dificilmente convive com sutilezas ou os álacres cenários do Conde
Potemkin para a sua viajante soberana, Catarina de todas as Rússias.
A
maquiagem da pobreza fica mais para os picadeiros dos circos. Assim, malgrado
os andaimes do Senado e da Duma, o poder imperial de Vladimir Putin continua a
crescer. Como o estrangeiro é portador de armas que as duanas não podem barrar
nos portos do Império, o jeito será esperá-lo já quando se apreste a difundir
no sagrado solo russo armas ainda mais nocivas do que a bacteriológicas.
Papai
Putin está aí para velar e proteger o popular e o campônio da Rússia imortal do
solerte estrangeiro, que traz na mala idéias tão malignas quanto perniciosas,
eis que visam a abrir a mente do bom e confiante cidadão da Federação Russa.
Dessarte, como não se pode compor com a insídia e a propaganda exótica, que são
companheiras da traição, a nova Lei vem pressurosa ensejar ao Ministério
Público – em cooperação com a Chancelaria – o banimento de organizações que
ameacem “os interesses nacionais e a segurança do Estado”.
Nos
moldes do próprio modelo o Duce Mussolini – que gostava de
exibir o torso nu para as moçoilas dos anos trinta - a catadura de Vladimir Vladimorovich Putin não
desvela sombra de sorriso, pois pesa-lhe no ânimo a magna tarefa que lhe está
defronte, de salvaguardar a sua boa gente das insídias do estrangeiro.
( Fonte: O
Globo )
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