domingo, 31 de maio de 2015

Xenofobia na Rússia


                        

          Não é de hoje que o regime de Vladimir V. Putin singulariza o estrangeiro, como elemento vizinho ao indesejável. Ver o alienígena como ameaça é uma característica das ditaduras. Em sociedade como a Rússia em que o preconceito contra o estrangeiro existe, o governo autoritário não hesitou em associar a onda de protestos de 2012 como devida também a influências estrangeiras.

           Não será pela sutileza ou o combate franco na arena pública das idéias que gospodin Putin parece crer que terá maiores possibilidades de prevalecer.

           Passados os embates e os protestos da população moscovita contra eleições fraudadas e o avanço da corrupção, o regime tratou de apertar as cravelhas de organizações sociais que recebessem alguma assistência do Ocidente.

          O povo russo guarda experiência de gerações em que o estrangeiro, o forasteiro tende a ser agente de propósitos e idéias que, supostamente, não se coadunem, nem visem a favorecer avanço e pujança dos valores nacionais.

          Vagando no inconsciente da massa, e resultado de décadas de preconceito contra o xenos, o estrangeiro – que nada de bom  supostamente traria – essa atitude estaria letárgica nesse subconsciente popular. Pode-se deparar com tal preconceito, sobretudo na direita, e seu abrigo estaria mais nas camadas de baixa renda.

           Para despertá-lo bastará um evento que o Kremlin distorça. Nas grandes nações continentais – e não há muitas – que sofreram invasões de hordas alienígenas, esse temor, essa ojeriza a suposta ameaça pode dormitar no inconsciente coletivo. Nos séculos passados, anteriores à Grande Guerra de 1914 – 18,  o Império Russo, como potência continental, fora assolado por grandes exércitos, vindos seja do Ocidente (Napoleão foi o último deles), e também do Oriente, seja com as invasões dos Khan asiáticos.

          Se Moscou e São Petersburgo prevaleceram, o padecimento nessa luta marcou deveras a massa de camponeses e da população em geral. Assim, é difícil para os extratos de menor renda – solo fértil para vetustos preconceitos - e mesmo as classes com mais recursos liberar-se desse íncubo do estrangeiro como o malfeitor invasor.   

           A esse propósito, exemplo pessoal pode ter alguma valia. Quando assisti no Bolshoi espetáculo sobre o Tzar Boris Godunov – em que se retratam igualmente as nações a leste, naquele tempo com  poder bastante para enfrentar a Rússia imortal – me espantou deveras que os atores e dançarinos que representavam os estrangeiros eram recebidos em gélido silêncio por plateia que não era exatamente de camponeses e operários. Aquela me seria lição prática de que antigas batalhas, há muito sepultas, ainda transpiram fortes emoções e longevos, empedernidos ressentimentos.

          Nesse terreno minado, a aversão e as antigas memórias de batalhas que hoje só existem nas páginas dos manuais de história pareciam pulsar, como se bastasse que clássico espetáculo fosse encenado acerca dessas longínquas porfias para que repontasse nas cuidadas fileiras do Bolshoi, com o coletivo gesto carrancudo por agravos que os séculos  não logram seja perdoar, seja esquecer.

            Não foi difícil, por conseguinte, ao governo Putin, na sua paranoia contra o Ocidente como o transmissor do mal da democracia, cuidar de associá-lo aos râncidos  temores do povo russo com os maus ventos que vem de fora. Para tanto, se procura sufocá-las com a burocracia, a que se acresce o rótulo embaraçante e, para muitos, malcheiroso do agente estrangeiro.

            Assim, o trabalho de muitas organizações de direitos humanos na Rússia se vê estorvado pela virtual proibição de recebimento de fundos do estrangeiro.  Sob esses velhos fantasmas do inconsciente coletivo,é que uma organização não-governamental vem a ser rotulada como “agente estrangeiro”, tal equivale na prática a confissão de conluio com o alienígena, que nada de bom pretende trazer para a Velha Rússia...         

             A etiqueta de “agente estrangeiro” semelha, contudo, não estar atendendo aos respectivos fins de inviabilizar na prática a ação de ONGs locais \(que recebem subvenções do exterior). Tal se aplica sobretudo a entidades cujo prestígio seja suficientemente alto e sólido para que a insinuação de ‘agente estrangeiro’ não logre impedir que o trabalho da agência em causa continue a ser visto como benéfico para a pátria russa.

               Todavia, como essa lógica da insinuação não tem logrado,  na amplitude desejada pelo regime, os seus fins de fazê-las encerrar a respectiva atividade – eis que a verdade e o sólido conceito de muitas associações vem contribuindo para cegar o molesto efeito de “agente estrangeiro” -  o autoritarismo de Putin se vê constrangido àquele velho recurso do lobo diante do cordeiro – se não foi seu pai, foi seu avô.

               Para pôr abaixo a ulterior resistência do regime autoritário,  o Kremlin já fez aprovar pelo Parlamento legislação contra “organizações indesejadas”.  É típico das ditaduras esse endurecimento, que radicaliza a questão, e arranca a máscara que pespegava o sinal de “agente estrangeiro” na ONG ou outra organização. Pela nova lei, assinada por Vladimir Putin na semana passada, o governo tem inteira liberdade de fechar de forma rápida organizações que, supostamente, ameacem o Estado.

               Com o fuzil da ditadura, o tratamento coercitivo e violento está no DNA desse estado autoritário. E, dessarte, impelido pela necessidade de agir com suposta eficiência,  desaparece qualquer simulacro de diálogo e com a sua partida, os anteriores  intentos de tapar sol com peneira. A lógica da violência não dá alternativa ao poder autoritário.

               Com efeito, o DNA do estado autoritário – penúltimo degrau na transição para a ditadura – dificilmente convive com sutilezas ou os álacres cenários do Conde Potemkin para a sua viajante soberana, Catarina de todas as Rússias.

                A maquiagem da pobreza fica mais para os picadeiros dos circos. Assim, malgrado os andaimes do Senado e da Duma, o poder imperial de Vladimir Putin continua a crescer. Como o estrangeiro é portador de armas que as duanas não podem barrar nos portos do Império, o jeito será esperá-lo já quando se apreste a difundir no sagrado solo russo armas ainda mais nocivas do que a bacteriológicas.

                Papai Putin está aí para velar e proteger o popular e o campônio da Rússia imortal do solerte estrangeiro, que traz na mala idéias tão malignas quanto perniciosas, eis que visam a abrir a mente do bom e confiante cidadão da Federação Russa. Dessarte, como não se pode compor com a insídia e a propaganda exótica, que são companheiras da traição, a nova Lei vem pressurosa ensejar ao Ministério Público – em cooperação com a Chancelaria – o banimento de organizações que ameacem “os interesses nacionais e a segurança do Estado”.

                  Nos moldes do próprio modelo o Duce Mussolini – que gostava de exibir o torso nu para as moçoilas dos anos trinta -  a catadura de Vladimir Vladimorovich Putin não desvela sombra de sorriso, pois pesa-lhe no ânimo a magna tarefa que lhe está defronte, de salvaguardar a sua boa gente das insídias do estrangeiro.

 

( Fonte:  O  Globo )  

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