terça-feira, 19 de maio de 2015

O Fantasma do Iraque (III)

                              

        Sob Augusto o Império Romano alcança seu apogeu. Como na formação dos estados universais de cada civilização – e Roma, ao cabo das guerras civis que se seguiram ao assassínio de Caio Júlio Cesar chegava em meio às derradeiras lutas intestinas à pacificação interna  - no governo de Otavio atingiu o chamado Principado. Havia sido superado o que Toynbee denomina o Time of  Troubles (tempo de contestações) e se entrava na era da paz, com o domínio de um só sobre o vasto mundo romano, ao cabo de extenso período de lutas contra diversos rivais. O principal repto viria de Cartago, a cidade-estado. Situada no atual Magreb (Túnis) exigiria três acirrados conflitos, em largo espaço de tempo, para ser subjugada. Hanibal representaria no curso da segunda guerra púnica o mais sério desafio feito a Roma desde a sua fundação no século oitavo a.C., até que se consumasse  sua decisiva derrota em Zama, em 202 a.C. por Publius Cornelius Scipio Africanus. 

        Não foi decerto por acaso que, às margens do Tibre, o Imperador Augusto mandou levantar o Ara Pacis  - o altar da paz – consagrado à sua vitória e ao consequente período de tranquilidade de que passou a gozar  o maior império que até então fora levantado nas margens do Mar Mediterrâneo.

        No entanto, o Império de Cesar Augusto – que se estenderia até o século quinto no Ocidente e até o século quinze, no Oriente – pelo seu próprio tamanho e as comunidades bárbaras que estavam além do limes romano, era condicionado, dentro da lógica dos estados universais de civilização determinada pela necessidade de crescer além das próprias fronteiras, na busca da impossível segurança para o respectivo estado dito universal. Esse período de alargamento do mundo romano sofreria na Germânia, nos baixios da floresta teutoburguense, pelas tribos  dos Querúcios, sob o comando de Arminius, decisiva derrota  com o aniquilamento de três legiões romanas de Publius Quinctilius Varus, no ano nove da era cristã. Varus, pela ética romana, suicida-se com  a própria espada, e  o Imperador Augusto, que contara estender os seus domínios além de Colônia e da pequena província Germânia a leste do Reno, passa os últimos anos de seu principado amargurado pelo revés . A leste, o limes romano não mais se alargará além do Reno na Germânia, e do Danúbio, até o Mar Negro. Oito legiões velarão sobre o limes do Reno  (entre as atuais Holanda e Suiça), enquanto da linha do Danúbio ficarão encarregadas sete legiões. Os queruscios de Armínio manteriam a liberdade da maioria das tribos germânicas, com a sua  exclusão da civilização latina.

         Mas voltemos à Bagdá, com a rápida vitória do exército de Rumsfeld que não levaria, de acordo com o planejamento do Pentágono, à pacificação do Iraque. O fácil esmagamento da guarda republicana de Saddam Hussein não conduziria à paz desejada pelos neoconservadores, que a anelavam pelo controle do país e de seu petróleo.

          No entanto, fora dos planos do Pentágono, a paz logo se transformou em pandemônio de guerrilhas, em multiplicidade de focos. Iniciava-se, na prática, a segunda guerra do Iraque, que continuaria a dessangrar o Erário americano, enquanto o esforço bélico, em nova conformação determinada pelos supostos vencidos, constituiria magno desafio na suposta administração do triunfo. Essa vitória se transmutaria no inferno da luta de guerrilhas, com o aumento de baixas causado pela fragmentação dos núcleos de resistência.

          Não é intenção desta exposição descrever as várias fases de um surdo combate contra inimigo que não se constrangia pelas limites da guerra convencional.

          A rápida ação encarecida pelos alegres proponentes da expedição contra Saddam Hussein e o desvelar das míticas armas de destruição em massa (WMD) se transmutaria em confusa porfia contra adversário irrequieto e elusivo, em que, ao contrário das normas da guerra convencional, era o guerrilheiro ou o atirador solitário que dispunha sobre a hora e os confins dos eventuais combates.

          Apesar das enormes diferenças, a lembrança do Vietnam se faria presente, porque, na mor parte dos entreveros, quem determinaria local  e  hora seria o adversário, em geral escondido ou valendo-se do império sobre o momento da iniciativa.

           Daí a comparação com atoleiro que foi dada à tal fase do conflito, não programada pelos cúpidos neoconservadores, que julgaram factível estabelecer o clássico regime político parlamentar no  Iraque pós/Saddam Hussein.

           A imprevisibilidade de uma vitória fugaz, logo sucedida por guerrilha sem regras e sem fronteiras, consumiria todo o restante dos dois mandatos de George W. Bush. A Missão Cumprida a dezenove de agosto de 2003  entrava agora nos tétricos finalmente, em que o despreparo, a cobiça e a falta de objetivos precisos (eis que o vencido lhes surrupiava o ensejo da vitória pro-forma) se transformaram nas colossais despesas acarretadas por guerra que se augurava fácil e profícua, numa repetição quase farsesca de antigas veleidades guerreiras, que a realidade do terreno transmutaria em grandes, incomensuráveis dispêndios, levando a resultados de todo imprevistos, com enormes e gravosas consequências.

             Além das amplas e imprevistas lesões na sociedade americana, a antes isolada Superpotência se viu enfraquecida moralmente pela tortura e todo o seu arquipélago de práticas indefensáveis sob a laboriosa construção de estruturas de calabouços adrede – como o presídio de Guantánamo  na ilha de Cuba -  e os infames lugares de rendition, a que se prestaram diversos países aliados de Washington,  para receber e conceder o espaço necessário para a detenção e tortura pela CIA dos inúmeros suspeitos.

               Proclamando em diversas oportunidades que não admitia a tortura,  Bush se tornou, por associação, o seu eterno proponente. Quanto mais – e pateticamente – declarasse que não era torturador, a designação infamante mais se colava ao próprio período de governo.

               O 43° Presidente, quanto mais negava, mais se afundava nas areias movediças da inverdade como palavra de ordem. Pela teimosa iteração Bush mais chegava àquilo que denegava. Barack H. Obama que construíu a sua pretensão à presidência na negação da aventura iraquiana, preferiu olhar para o outro lado, em termos de acusações torpes, mas que pela força inercial dos esforços em contrário mais funda se implantava no consciente coletivo.

                Pouco antes de passar o bastão da maioria no Senado para o GOP, o Partido Democrata pôde publicar os relatórios confidenciais sobre a tortura e a sua cultura. Como um câncer, essa prática não pode ser mais reprovável e insana para quem julga dela se servir para arrancar do adversário as confissões de eventual culpa. Como todo o processo ilegal e imoral, a tortura não só macula, mas deforma as eventuais informações, que como um rebotalho inservível só servem para poluir a partir dos porões, mas em tendência ascendente atinge os andares nobres de Administração roída pela mentira e a violência disfarçada em suposta legalidade.

O Legado da Guerra de Bush.   

                 Despreparado para o governo – essa condição se evidenciara desde o começo, quando apanhado em sala de aula, George Bush toma conhecimento da investida terrorista contra as Torres Gêmeas. Nunca a sua condição mental e  respectivo despreparo intelectual seriam expostos de forma tão cruel, pois a verdade – e ainda por cima vinda de chofre – pode ter requintes de crueza que vão muito além das Taprobanas do dia-a-dia.

                Uma vez estabelecida, a cultura de Guantánamo, é tumor de difícil extirpação.  A própria tentativa de Obama de fechar este cárcere saldou-se pelo malogro, que, se de um lado tem a ver com as indecisões do jovem Barack, também relevam do enredado inicial do erro e do arbítrio, que muita vez só podem ser cortados por gesto de Alexandre Magno.

                Mas infelizmente o legado maldito de guerra oportunista e de escopos mal-esclarecidos se provaria muito árduo de desatar e desfazer. As raízes da injustiça, plantadas ou por ignaros, ou por pressurosos aproveitadores, terão sempre consequências gravosas para todos, mas, muita vez, e de modo surpreendente, para quem as plantou, seja por húbris, ou por outros desígnios.

                  O despreparo do jovem Presidente – o primeiro a ter a eleição ‘decidida’ por sentença da Corte Suprema, que sustou a contagem dos votos da Florida, o que muito provavelmente daria a vitória no colégio eleitoral ao Vice-Presidente Al Gore (que de resto superou George Bush na contagem numérica da votação geral) – e a sua falta de legitimidade o tornariam refém do grupo de neo-cons (novos conservadores).

                   Ao lançar a superpotência nesta aventura – apenas com o apoio do solícito Primeiro Ministro inglês Tony Blair – mas sem o aval das Nações Unidas, na busca das alegadas armas de destruição em massa (WMD), Bush de certa forma se colocou à margem da legalidade, e por isso o seu procedimento ulterior, avalizando a tortura (ainda que de forma sub-reptícia) não lhe deixa imagem favorável. O quadro se agrava quando as tais armas se comprovam inexistentes.

                   O prejuízo causado ao Tesouro estadunidense e à sua economia não é facilmente computável, embora inegável seja o enorme estrago provocado e suas consequências sobre a economia estadunidense são tão desastrosas, quanto irretorquíveis.

                  Ao adentrar a areia movediça do Iraque, por um escopo artificial e não conforme à realidade, o impulsivo e limitado descendente da dinastia do pai George  Herbert Walker Bush, ele também presidente dos Estados Unidos, mas de um só mandato, o prejuízo inicial para os cofres do Tesouro americano foi de 770 bilhões de dólares. Como todo empreendimento mal construído e mal planejado, os custos adicionais seriam muito superiores àqueles da condução da guerra segundo os planos, eis que as despesas com a ocupação e a invasão do Iraque montam a US$ 2,2 trilhões !

                   Esse brutal impacto provoca o empobrecimento do hinterland americano, em que os galpões cerrados e as Main Street sem o bulício de outrora, passam a constituir a regra do fenômeno do declínio.

                   Essa nova fase induzida pela aventura iraquiana na antes próspera América tem sido objeto de atenta pesquisa. Dentre os que nas cidadezinhas americanas, muitas antes florescentes, se propõem estudar a queda no nível da atividade econômica, em que as portas cerradas de inúmeras lojas, galpões e fábricas, são objetos de reportagens e estudos de George Packer, que se tem dedicado à análise e à descrição de um novo mundo – que não tem nem a promessa, nem a força da situação anterior pré-Iraque – configura a demasiado sensível queda na atividade econômica, com a consequente inexorável redução no padrão de vida.

                 Desse novo entorno, com atenção, seriedade e a necessária análise minudente se vem ocupando, entre outros, o jornalista George Packer, com relatos bastantes vivos e tristemente verazes na revista New Yorker.

                 De forma clara, os Estados Unidos, ex vi dos fatores acima descritos, adentra uma nova fase em sua história. São poucas as potências que após atingirem o respectivo zênite, conseguem remontar a força inercial e deletéria das causas da decadência.

                 Os políticos não são onipotentes.  Mas eles têm a capacidade de receber uma economia equilibrada, com um balanço superavitário – como foi o caso com o tão combatido Bill Clinton – e com o toque mágico ao revés transformar a límpida água em turva e até fétida poça.  O empreendimento mor de George W. Bush que as forças políticas chegaram a chancelar – a despeito da negação internacional – se transformou em fator de mortes, colossais déficits orçamentários e plano meio sem pé nem cabeça de grupelho de conservadores de trazer  a democracia para região. Como o Iraque, pelos sucessivos governos – da monarquia às ditaduras militares -  tinha suas características próprias, e na prática a desconhecia,  teria que dar no que deu.                   

                 Os impérios muita vez começam a própria decadência pelo esforço de um par de tolos, que em geral chegam ao poder por erros da maioria do povo, ou, nos regimes dinásticos, pela cegueira da Fortuna. No caso em tela, nem isso. Quem pôs Bush jr. na Casa Branca foi a Suprema Corte, em  polêmico veredito, mas que acabou valendo...

                                     ( a continuar )

(Fontes:  Arnold Toynbee, A Study of History; Encyclopaedia Britannica, Der Neue Brockhaus; Nouveau Larousse Encyclopédique; The New York Times;  George Packer, The New Yorker )

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