sábado, 16 de maio de 2015

O mau pode ser bom ?

                                       
 

          Que os juízos dependam do tempo é afirmação pelo menos questionável. Pois não será o bom sempre bom, como rezam certas cartilhas? Ou será que o mau não é tão mau assim, atendidas as circunstâncias? Calma, meus senhores e minhas senhoras! Essa assertiva não pretende ser categórica, mas tão somente possibilista. E, por outro lado, é importante que se frise que o tempo pode ser um juiz condicional em certos casos. Que me perdoem os puristas axiológicos, mas a própria extensão da vida pode nos servir de mestre no que tange à instabilidade não só do tempo, mas também de certos valores.

           Para os que começaram a engatinhar nos jardins do entendimento nos anos cinquenta, se porventura acometidos por um longo coma que os fizessem remergulhar no cotidiano já nos valores pós-modernistas, não estarei dizendo muito se a sua primeira reação seria de perplexidade. Como as regras do meio-século passado surgiriam caricaturadas e enxovalhadas no século XXI !

           Dependendo da pessoa, ou entraria em estado de negação, ou de abúlica contemplação, ou até de entusiasmo. Nesse último caso – que é decerto mais improvável – pularia de alegria, eis que não convivera bem com conformismo e  preconceito de então.

           Cada um, segundo a própria capacidade e as respectivas influências, se me perdoe J.J. Rousseau, estabelece o seu próprio Contrato Social com  a respectiva época. Isso vai depender, é claro, da largueza de vistas e da própria experiência, tanto a dos estudos, quanto aquela adquirida porventura  na universidade das ruas, de Máximo Gorki.

           Mas todos nós, queiramos ou não, somos filhos de nosso tempo. Por índole e por estudo, podemos colocar-nos à direita, à  esquerda ou mesmo no centro dos conceitos prevalentes. Mesmo tal parâmetro, que hoje tão comum nos parece, nós o herdamos da Revolução francesa. Na Convenção, quem sentava à esquerda, estava entre os jacobinos de Robespierre, à direita se achavam os que viam com desconforto a evolução revolucionária (e que empolgariam o poder em Thermidor[1]), e no meio, a planície ou o centro, como massa de manobra. Aqui se mete também a chamada Montanha, que é das primícias do Incorruptível, o apelativo de Robespierre. Nas mais altas fileiras do teatro revolucionário – daí a Montanha - se sentava e, sobretudo, lia os respectivos discursos (a princípio, ouvidos com enfado pela assembleia) o representante de Arras, Maxime de Robespierre, que o povo de Paris identificou pela pureza dos respectivos costumes e princípios (daí o termo incorruptível, que decerto o faria mal visto nos congressos atuais). Pela extensão e caráter extremado de suas posições, a influência de Robespierre continua viva e desperta ainda certo desconforto nos círculos do poder. Não foi por acaso que o então presidente François Mitterrand, ao ensejo das comemorações do Segundo centenário da Revolução, determinou que não se desse qualquer realce ao papel desempenhado no magno evento por Robespierre...

            Até hoje, os aristarcos[2] de plantão muita vez desejam conformar os antigos conceitos à visão moderna. No entender de alguns, o saber e os conceitos podem ser filhos do tempo. Para os filósofos, por exemplo, não se pode estudá-los com a cartilha da atualidade em mãos. Produtos de uma sociedade determinada, não se pode deles exigir conceitos que a contrariem. Nesse contexto, recordo de minhas discussões com o meu grande amigo Pedro Neves da Rocha, hoje infelizmente ausente. Por um lado, ele censurava Aristóteles por não exprobar a escravidão. Por outro lado, o seu crítico mais jovem buscou mostrar-lhe que toda a construção da civilização antiga (aí incluída a filosofia) pressupunha esse instituto... O tema  é decerto polêmico, mas ao julgar as grandes figuras da Humanidade e sobretudo do pensamento, não se pode colocá-las em espaços assépticos, e muito menos fora do tempo.

 

                                             (a continuar)

 

(Fontes: Nouveau Petit Larousse Illustré, The Oxford Classical Dictionary, Jean-Jacques Rousseau (Du Contrat Social), Politique de Aristote, Pedro Neves da Rocha, Crítica do Animal Político)  




[1] O nove de Thermidor marca o fim da Montanha (influência de Robespierre e Saint-Juste) e o começo do fim da Revolução com a sua restauração pela direita de Tallien, Billaud-Varenne e Legendre.
[2] Aristarco (c. 216-144 a.C.), da escola de Alexandria, foi crítico textual severo dos manuscritos antigos, a começar pela Ilíada de Homero.

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