Que
os juízos dependam do tempo é afirmação pelo menos questionável. Pois não será o
bom sempre bom, como rezam certas cartilhas? Ou será que o mau não é tão mau
assim, atendidas as circunstâncias? Calma, meus senhores e minhas senhoras!
Essa assertiva não pretende ser categórica, mas tão somente possibilista. E, por outro lado, é
importante que se frise que o tempo pode
ser um juiz condicional em certos casos. Que me perdoem os puristas
axiológicos, mas a própria extensão da vida pode nos servir de mestre no que
tange à instabilidade não só do
tempo, mas também de certos valores.
Para os que começaram a engatinhar
nos jardins do entendimento nos anos cinquenta, se porventura acometidos por um
longo coma que os fizessem remergulhar no cotidiano já nos valores
pós-modernistas, não estarei dizendo muito se a sua primeira reação seria de
perplexidade. Como as regras do meio-século passado surgiriam caricaturadas e
enxovalhadas no século XXI !
Dependendo da pessoa, ou entraria em
estado de negação, ou de abúlica contemplação, ou até de entusiasmo. Nesse
último caso – que é decerto mais improvável – pularia de alegria, eis que não
convivera bem com conformismo e preconceito de então.
Cada um, segundo a própria capacidade e as
respectivas influências, se me perdoe J.J. Rousseau, estabelece o seu
próprio Contrato Social com a respectiva época. Isso vai depender, é
claro, da largueza de vistas e da própria experiência, tanto a dos estudos,
quanto aquela adquirida porventura na universidade das ruas, de Máximo Gorki.
Mas todos nós, queiramos ou não,
somos filhos de nosso tempo. Por índole e por estudo, podemos colocar-nos à direita,
à esquerda ou mesmo no centro dos
conceitos prevalentes. Mesmo tal parâmetro, que hoje tão comum nos parece, nós
o herdamos da Revolução francesa. Na Convenção, quem sentava à esquerda, estava entre os jacobinos de
Robespierre, à direita se achavam os
que viam com desconforto a evolução revolucionária (e que empolgariam o poder
em Thermidor[1]),
e no meio, a planície ou o centro, como massa de manobra. Aqui se
mete também a chamada Montanha, que é
das primícias do Incorruptível, o
apelativo de Robespierre. Nas mais altas fileiras do teatro revolucionário –
daí a Montanha - se sentava e,
sobretudo, lia os respectivos discursos (a princípio, ouvidos com enfado pela assembleia)
o representante de Arras, Maxime
de Robespierre, que o povo de Paris identificou pela pureza dos
respectivos costumes e princípios (daí o termo incorruptível, que decerto o faria mal visto nos congressos atuais).
Pela extensão e caráter extremado de suas posições, a influência de Robespierre
continua viva e desperta ainda certo desconforto nos círculos do poder. Não foi
por acaso que o então presidente François
Mitterrand, ao ensejo das comemorações do Segundo centenário da Revolução, determinou que não se desse
qualquer realce ao papel desempenhado no magno evento por Robespierre...
Até hoje, os aristarcos[2] de
plantão muita vez desejam conformar os antigos conceitos à visão moderna. No
entender de alguns, o saber e os conceitos podem ser filhos do tempo. Para os
filósofos, por exemplo, não se pode estudá-los com a cartilha da atualidade em
mãos. Produtos de uma sociedade determinada, não se pode deles exigir conceitos
que a contrariem. Nesse contexto, recordo de minhas discussões com o meu grande
amigo Pedro Neves da Rocha, hoje infelizmente
ausente. Por um lado, ele censurava Aristóteles por não exprobar a escravidão.
Por outro lado, o seu crítico mais jovem buscou mostrar-lhe que toda a
construção da civilização antiga (aí incluída a filosofia) pressupunha esse
instituto... O tema é decerto polêmico,
mas ao julgar as grandes figuras da Humanidade e sobretudo do pensamento, não
se pode colocá-las em espaços assépticos, e muito menos fora do tempo.
(a continuar)
(Fontes: Nouveau Petit Larousse Illustré, The Oxford
Classical Dictionary, Jean-Jacques Rousseau (Du Contrat Social), Politique de
Aristote, Pedro Neves da Rocha, Crítica do Animal Político)
[1] O nove de Thermidor marca
o fim da Montanha (influência de
Robespierre e Saint-Juste) e o começo do fim da Revolução com a sua restauração
pela direita de Tallien, Billaud-Varenne
e Legendre.
[2] Aristarco (c. 216-144
a.C.), da escola de Alexandria, foi crítico textual severo dos manuscritos
antigos, a começar pela Ilíada de Homero.
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