Em pleno século XXI, ocorre nítida
regressão no Direito Internacional Público. Com a vitória dos Aliados sobre as
potências do Eixo, foi criado novo arcabouço nas relações internacionais, sob a
égide do sistema das Nações Unidas, e o controle do Conselho de Segurança,
formado por cinco membros permanentes e dez não-permanentes.
Se a guerra
fria – surgida pouco após a vitória de 1945 sobre a Alemanha e o Japão –
apontou para novo equilíbrio nas relações internacionais, equilíbrio pautado
pela contraposição de Washington e Moscou, os eventuais conflitos foram sempre
localizados e de certa maneira
administrados pelas duas superpotências.
A própria guerra da Coréia terminaria com cessar-fogo que até hoje
perdura, entre Coréia do Sul e Coréia do Norte. Com eventuais exceções
periféricas, em que espaços territoriais de pouco significado estratégico foram
cedidos ao cabo de conflitos entre países menores. Nesse aspecto se deve mencionar
a invasão de parte de Chipre pela Turquia e a consequente criação de república
da comunidade turca em parte da Ilha, até hoje sem reconhecimento internacional.
O outro foco de desavença – a inserção de Israel no Oriente Próximo – resultou
na situação dependente da antiga Palestina, com a crise do Oriente Médio dela
decorrente e que só será resolvida quando os direitos da comunidade palestina
forem satisfatoriamente atendidos.
Excluídas tais
mudanças – de resto não ratificadas pelo
sistema das Nações Unidas – as relações internacionais, no seu aspecto de
soberania territorial, se mantiveram estáveis até a dissolução da União
Soviética, em 1992.
Com o
desaparecimento da URSS, houve um efêmero período de estados sucessores no que
tange à antiga Superpotência comunista. Tal
sucessão, realizada a princípio, de forma consensual, levou a que a
prerrogativa de membro permanente do Conselho de Segurança passasse para a
Federação Russa. Na primeira fase da transição, e notadamente no governo de Boris
Ieltsin, Moscou se orientou por
parâmetros democráticos, tanto no aspecto interno, quanto no externo. A única
exceção a essa atitude foi a chamada guerra da Tchetchênia, uma pequena
república de população na maioria muçulmana que buscou pelo recurso da
guerrilha e do terrorismo alcançar a própria independência, o que lhe tem sido
militarmente denegado pelo Kremlin.
Quanto aos outros
Estados sucessores da antiga URSS, a sua formação não foi obstaculizada por
Moscou. Assim, tanto as nações formalmente independentes, mas contidas no
espaço socialista da chamada Europa do Leste (Polônia, Hungria, Tcheco-Eslováquia,
Alemanha Oriental, Bulgária e Romênia), elas ganharam a respectiva
independência plena, e não mais se acham subordinadas na esfera dita socialista.
Por sua vez,
as províncias bálticas da esfera da URSS lograram a própria independência
(Lituânia, Letônia e Estônia). O mesmo ocorreu
com outros antigos domínios soviéticos (Bielo-Rússia, Ucrânia, Geórgia,
Abkhazia, Moldávia, Azerbaijão, Armênia), assim como as antigas repúblicas
asiáticas da URSS, ao sul da Sibéria e na Ásia (Kazaquistão, Kirgizistão, Uzbequistão,
Tadjikistão e Daguestão).
Pela postura
inicialmente democrática do período assinalado pela presidência de Boris
Ieltsin, com a exceção já referida da Tchetchênia, Moscou manteve bom
relacionamento com o seu vastíssimo entorno. Nos largos espaços a oriente, o
intercâmbio se desenvolveu a contento. O poder no Kremlin seria necessariamente o primus
inter pares, mas a relação se estruturou de forma consensual e em termos do
interesse mútuo.
Com o
advento de Vladimir V. Putin, haveria substancial mudança na atitude do
novo governo moscovita. Chamado para suceder ao enfermo Boris Ieltsin, pelo
entorno e família do presidente e alguns oligarcas, como Boris Berezovskiy, Vladimir Putin, então chefe do FSB, sucessor do KGB, sob a
idéia de que Putin seria um bom administrador da massa falida, enquanto lhes
resguardaria os seus muitos – e poucos deles confessáveis – interesses.
Se o comitê
informal que o escolheu tivesse examinado de maneira mais detida a sua atuação
quando em São Petersburgo – em que formou o próprio grupo, colocou as bases da
respectiva fortuna, e forneceu muitos indícios de qual seria o seu modus agendi, que incluía ligações informais com a mala vita – talvez esse comitê não o tivesse selecionado. Como o
demonstra o primoroso estudo da professora Karen Dawisha[1]
sobre a cleptocracia de Putin (origens, crescimento, e forma de atuação), os
anos de formação, a sua trajetória no KGB (Dresden), posteriormente na prefeitura de São
Petersburgo, e a presença no Serviço Federal de Segurança (que ao cabo
chefiaria) não o preparariam para a subalternidade. Chefe de um megagrupo em
que a dita nomenclatura ligada ao KGB mantinha relações flexíveis com a máfia
russa, a ingenuidade de parte do círculo de Ieltsin não tardaria em ser posta à
nu, nos estágios sucessivos da ascensão de Putin como o seu próprio Amo e
Senhor.
A astúcia de
Putin, tendo presentes os seus adversários, seja internamente, seja no exterior
(e no Ocidente em particular) foi subestimada e mesmo alacremente ignorada pela
maior parte deles.
Com a sua
formação como agente e posteriormente subchefe de seção no KGB, pensar que ele
se empenharia em fortalecer a democracia na Rússia, não é um desculpável engano
para quem o convoca para resguardar os interesses de grupo ameaçado pela doença
e impopularidade do respectivo líder. Tampouco, um apparatchik da segurança soviética, somada à sua passagem pela
corrupta prefeitura de São Petersburgo
não poderia ser considerado como alguém que possa ser teleguiado para
interesses de outro grupo. Se se pode pretextar haver o grupo sido embaído
pelas suas promessas nos ditos finalmente,
quando o poder lhe é acenado, a falta de um elementar dever de casa, repassando
o seu curriculum vitae, tornaria a ansiada maleabilidade uma ilusória florescência
do verão nórdico.
No
plano interno, foi o que ocorreu. Já no plano externo, as suas intenções
restauradoras do antigo poder soviético, não tardaram muito em repontar. Depois
de um primeiro contato com o Presidente americano George W. Bush – que
provocaria risos convulsos em observadores russos quando afirmou confiar em Vladimir
só pelo fato de fitá-lo nos seus próprios olhos e, assim, inteirar-se de suas
boas intenções. Mais tarde, o relacionamento sofreria pelo tratamento
dispensado à Georgia (quando Moscou interveio em apoio à minoria de fala russa
naquele país). Para tanto, gospodin
Putin cuidou de relembrar o governo da Georgia que a sua autonomia em política
externa era relativa, e poderia – como de fato ocorreu – determinar a formação
de área ‘autônoma’, com fortes laços com o Kremlin. Mais tarde, a mesma capitis diminutio seria aplicada à
Moldova, que teve de engolir a faixa da Transnistria
ser-lhe retirada, dado o seu irresistível pendor por Moscou.
Bush gastou
muita retórica para combater tal imperialismo russo, mas teve de
conscientizar-se que, dadas as distâncias (em seu desfavor) e as proximidades
(em favor de seu ex-amigo Putin), tinha que ser realista, acomodar-se e ler um
pouco mais sobre raison d’état. [2]
Mais tarde,
findaria a primeira presidência de Putin. Realizou então ele uma grande jogada,
que lhe surtiu ótimos resultados, em termos de ilusionismo prático. Ao invés de
concorrer pela presidência, fez eleger em 2008 como Presidente o seu
fidelíssimo assessor (desde os tempos de São Petersburgo), Dmitriy Medvedev[3],
enquanto Vladimir Putin se recolhia à posição de Primeiro Ministro. Na batida
imagem do bom e do mau polícia, Medvedev se enquadra naquele policial sério e
correto (good cop), enquanto Putin é
o escarrado mau policial (bad cop).
E não é que essa mágica jogada surtiu efeito?
Esquecidas as desavenças com Bush – e a implantação do cinturão antimíssil que
desagradava sobremodo a Moscou – as
más lembranças das violências contra os pequenos vizinhos (Geórgia e Moldova) –
a dupla do Kremlin, com maior realce para o simpático Medvedev, realizou
magnífico trabalho de recuperação de imagem.
Quando
Vladimir Putin voltou a ser eleito presidente, em 2012, a sua posição
internacional estava reforçada, e as relações com Barack Obama – e o
Ocidente - em boa situação. Como se verifica, no primeiro mandato de Obama, ele
teve como interlocutor principal a Medvedev, embora tenha mantido também
contatos com o Primeiro Ministro Putin.
Ao ser
reeleito para o terceiro mandato, as relações com a Federação Russa se achavam
em situação bastante favorável. A Rússia
participava do G-8 (o grupo de
estados que reúne as principais democracias[4]).
No entanto,
Viktor
Yanukovich, o então presidente da Ucrânia, ao optar, em novembro de
2013, pela oferta de Putin de participação em zona de livre comércio,
desencadearia corrente de acontecimentos que decerto não poderia prever.
Forçado a romper as negociações com
Bruxelas por um acordo amplo de comércio com a União Européia, Yanukovich
atrelava a Ucrânia à Rússia. Foi essa escolha que pareceu inaceitável para
a maioria do povo ucraniano. Como não se desconhece, o desagrado popular catalisou manifestações
na Praça Maidan, no centro de Kiev.
Trocar o
sonho da união com a Europa Ocidental e a sua situação bastante superior em
termos econômicos e culturais pela oferta de União aduaneira melhorada de parte
do Kremlin – o que para a maioria do povo ucraniano cristalizaria o secular
domínio da Rússia sobre a vizinha Ucrânia – lhe barrava acesso não só ao progresso
e ao desenvolvimento do Ocidente, mas também o colocava na companhia de países
como a Bielo-Rússia, e a própria Rússia. Vendo o progresso da vizinha Polônia
em função de seu acordo com Bruxelas, e ansiando dele participar, para a
população ucraniana, notadamente as da banda ocidental do país, semelhou
insuportável e inaceitável para o povo da Ucrânia trocar esse progresso pela
união aduaneira com Moscou.
Dessarte,
em função das decorrentes demonstrações
e da ocupação permanente da praça Maidan,
no centro de Kiev, a escolha de Yanukovich
foi fatal para ele. Diante da vitória das
manifestações – que revestiram, no seu último período, traços de revolução de rua do século XIX – a exemplo das
anteriores à vinda do Barão Haussmann e sua reurbanização da Cidade
Luz, que tornou inviáveis as revoluções de
barricadas, eis que as vielas desapareceram diante de bulevares e grandes,
largas avenidas.
Em
22 de fevereiro de 2014, Yanukovich foi deposto pelo Parlamento Ucraniano. Abandonado às pressas o palácio, o
ex-presidente deixou demasiados indícios da própria corrupção.
Buscou
refúgio na Rússia. E virada esta página da história ucraniana, não tardou em
iniciar-se o acosso ao povo da Ucrânia, de início, através de movimentos
‘espontâneos’ de populares súbita e, no entanto, compreensivelmente,
reminiscentes, de antigas frondas contrárias a Kiev, com o ressuscitar de
efêmeras repúblicas nascidas nos choques da Primeira Grande Guerra (em que o
pouco inteligente Tzar Nicolau II meteu o seu Império – e o perdeu – na Grande
Guerra, por causa de ultimatum dirigido pela Áustria-Hungria à Sérvia, culpada
de haver possibilitado a conjura que terminou com o assassínio do herdeiro do
trono Francisco-Ferdinando).
Mas o “castigo” que o Presidente de todas
as Rússias,Vladimir Vladimirovich Putin resolveu aplicar a um país
independente se afigura bastante maior, se passarmos em melancólica revista
todas as vítimas dessa intervenção nua e crua, e marca sombrio, lamentável
retrocesso para o nascente século XXI.
Se o
princípio e o crime são os mesmos, de o que já sofreram a Geórgia e a Moldova,
as consequências e os reflexos internacionais são incomparavelmente maiores no
caso da Ucrânia. Basta olhar no mapa, para que se tenha noção da húbris de Putin em investir contra um
país com a população, os recursos e a história da Ucrânia.
É
importante atentar para o significado desse brutal retrocesso nas relações
internacionais. De forma impudente e arrogante, no que tem desconfortável
semelhança com a postura de ditadores como Benito
Mussolini e Adolf Hitler, que se
julgavam acima da lei internacional, e só ‘respeitavam’ a força eventual do
adversário. Poder-se-ía em sã mente afirmar que o senhor Putin difere de seus
modelos? Note-se que mandou montar uma
ideologia eurasiana, com adendos bastante largos extraídos de doutrinas como a
nacional-socialista com escopo decerto autoritarista, para dar sabe-se lá que
fundamento para o seu novo estado.
Putin errou feio ao desejar instrumentalizar
a derrubada de um líder que é pró-Rússia, quando deveria ser pela própria
condição pró-Ucrânia.
Agir da
forma como ele está agindo, mandando ‘voluntários’ russos para reforçar os
contingentes dos ‘rebeldes’ que surgiram do nada, seja reivindicando a formação
de entidades separatistas, seja – com armas modernas e poderosas, fornecidas
pelo Estado russo – se associando a planos russos, para ulteriores anexações.
A conquista da Crimea – por uma invasão
sem qualquer outro motivo do que a afronta ao direito internacional e a tudo
que a vitória aliada trouxe como símbolo do respeito ao direito das gentes e
à paz internacional – seria um acinte se
não fosse um crime contra o direito internacional, a longa caminhada do homem
pelo respeito aos acordos e ao consenso dos povos reunidos na Organização das
Nações Unidas.
Repetir, em pleno século XXI, com o
sistema de direito internacional público de que decorre a Organização das
Nações Unidas – que não é capricho de
vencedor, mas simboliza e implementa a prioridade da construção da paz, e o
repúdio do bandoleirismo dos séculos XIX e até XX em que as agressões das
chamadas grandes potências se justificavam pela força, prescindindo de tudo o
mais. Era a política da Raison d’État
levada ainda a ulteriores extremos, nas aventuras das ditaduras nazista e
fascista.
As Nações Unidas e o Ocidente não podem aceitar o que significaria o
repúdio e o escárnio diante da norma jurídica e do direito fruto de milenar
caminhada do homem, para substituí-lo pela força da horda, da violência, da
bestialidade e de que supostamente o mais forte tudo pode.
A violência
como projeto é um beco sem saída. Os arrogantes, o Duce Benito Mussolini e o Fuhrer Adolf Hitler acabaram, um nas grades de Piazzale Loreto, e o
outro, em mísero bunker, em suicídio
de quem foge da própria responsabilidade, bombardeado de todas partes, e
morrendo em meio à quase completa destruição do próprio povo que enganara repetida
e tolamente com ódio, slogans e
promessas, que os exércitos inimigos reduziram a pó.
A barbárie
não cria. Poderá, no entanto, encontrar gente e até governantes que, por
ignorância, desconhecimento do direito e
da própria Constituição que verbera o direito de conquista – sem falar no
imorredouro patrimônio de nossa diplomacia – se associaram, para vergonha do
próprio país e de seus maiores, a aprovar a conquista, o que vai em contra a
todas as realizações de grandes homens como Rio Branco e Alexandre de
Gusmão.
Devemos, por
isso, colocar no limbo internacional a Crimea. Conquistada pela força e por
milícia que sequer portava uniforme – pois a vergonha a impede – é de
esperar-se que tal apropriação indébita seja em breve desfeita, porque a vingança
não é base para nada. Ou será que
ansiamos pelos bons selvagens de Jean-Jacques Rousseau, que só
existiram nas efusões do romantismo?
A comunidade
internacional só poderá progredir se se desvencilhar dos que advogam como norma
a entronização do crime contra o direito das gentes.
Por causa
de líderes como Vladimir Vladimirovich Putin o século XXI começa mal. Putin não
é como o verberou Obama o líder de um
poder regional. O retrocesso que
causou no direito internacional é mais do que lamentável.
O direito
francês reservou em certo período de sua história a instituição do fora da
lei. O indivíduo que na comunidade cometesse um grave crime, que afetasse a
sociedade, era declarado fora da lei
(hors la loi). E a intenção do legislador no caso era clara:
se determinada pessoa não trepida em cometer delitos que põem em perigo o
próprio instituto da lei, tal pessoa só pode ser considerada como fora da lei.
(Fontes: Putin’s Kleptocracy, de Karen Dawisha;
The Man without a Face, Masha Gessen; The Sleepwalkers,
Christopher Clark; The New York Times; CNN)
[1] Putin’s Kleptocracy – Who owns Russia?, de
Karen Dawisha, Simon & Schuster, New York, 2014, 445 pp.
[2] Doutrina sobre o poder do
estado e suas eventuais limitações.
[3] A imagem de Medvedev nâo
sofreu apesar da circunstância de ser um fidelíssimo auxiliar de Putin desde os
tempos da prefeitura de São Petersburgo. E, no entanto... (ver a propósito K.
Dawisha)
[4] Integravam-no os EUA, o Reino
Unido, a França, a Alemanha, a Itália, o Japão, o Canadá e a Rússia. É também
convidado o presidente da Comunidade Européia.
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