segunda-feira, 18 de maio de 2015

O Fantasma do Iraque (II)

                                 

         Um fenômeno que visita muitas guerras é a crença que serão breves. Daí, o relativo entusiasmo que as acompanha, embalado pela convicção generalizada de que não vão durar muito.

         Na primeira grande guerra, para as tropas de soldados alemães que marchavam para o matadouro desse conflito – que ao invés de táticas de movimento, se caracterizaria pelas trincheiras – os jubilosos assistentes jogavam flores, na certeza de que a tropa logo voltaria vitoriosa.

        Essa certeza se exprimia na frase – daheim wenn der Laube fällt[1] - e com o apoio da propaganda governamental transmitia essa virtual certeza, que mascarava a perspectiva sempre possível de um embate longo e sangrento.

        As potências europeias por força da política das alianças e dos compromissos secretos se submeteram a mecanismos infernais, que as arrastaram a mergulhar em um túnel sem fim, do qual ao cabo de quatro anos milhões não sairiam, e outros voltariam estropiados, para a realidade do desemprego e da miséria.

         Por outro lado, o Tratado de Versailles, em que a miopia e a ganância dos vencedores prevaleceu – daí a frase ditado de Versailles - criou as condições ideais para que no adubo do ressentimento e das pesadas sanções surgissem os demagogos e extremistas que tratariam de logo pôr em movimento a maquina infernal que, com o desaparecimento da antiga prosperidade, a chamada belle époque virasse miragem. Com a inflação dos anos vinte e a depressão dos trinta, a Europa e o mundo  se armavam para que o virtual armistício do Tratado de Versailles – e os demais que disporiam sobre conflitos localizados – de modo que a sociedade internacional pré-1914, com o seu alto intercâmbio, a longa paz, e um mundo mais aberto, sem passaportes quedasse como quadro nostálgico de um passado tornado inatingível pelos rancores dos vencidos e os temores dos triunfantes.

          Entende-se, por conseguinte, que os dois calhamaços de Oswald Spengler ‘Der Untergang des Abendlandes’[2] se tornassem best-seller internacional. A obra de Spengler refletia o pessimismo que se sucedeu a uma tragédia antes impensável, no mundo de cortes, rígidas etiquetas e velhas dinastias. Foi terrorista sérvio, Gavrilo Princip, imbuído do ódio ao Império Austríaco que cuidaria em Sarajevo, ajudado pela incompetência dos serviços do Império Dual, de matar o herdeiro da Coroa Austríaca, e de sua esposa morganática, e fazer com que desaparecesse para sempre aquele peculiar mundo de compreensão e boas maneiras.

           Com o hábil e competente Pyotr A. Stolypin assassinado em 1911 na Rússia dos Tzares, os Ministros de Nicolau II dariam com resolução um passo para o abismo, assegurando que a Grande Guerra parisse gente como um pintor medíocre, de nome Adolf Hitler, e padre georgiano, Joseph Djugashivili[3]. Juntos, os dois matariam, em estimativa conservadora, quando à frente de férreas ditaduras, cerca de 50 milhões de homens e mulheres.

           Spengler introduziria o que muitos consideraram novo tipo de história, com leis que determinam o florescimento e a queda de civilizações. Teve alguma influência sobre o grande historiador Arnold Toynbee, que publicou a obra mestra, Um Estudo de História,  em doze volumes, sendo um de mapas. Terminado o exame abrangente das civilizações e culturas, incluíra um tomo de ‘Reconsiderações’, o que lhe mostrou o espírito aberto e a capacidade de admitir eventuais erros. 

           Depois de colher muitos aplausos e fruir da posição de primus inter pares, com o pós-modernismo e a safra de novos historiadores, a sua cotação terá caído. Houve até o caso de historiador menor, que, ganhando prêmio sob o nome de A.J.Toynbee,   julgou por bem aceitá-lo e fazer-lhe a respeito alguns juízos derrogatórios, apontando supostas lacunas na obra de Toynbee... Creio que se vivo fora, com a respectiva fleugma, o grande historiador acharia natural esta peculiar atitude, que refletiria as contínuas mudanças nas sociedades e nas culturas.

           Para a situação presente da superpotência, em que vai repontando o seu desafiante futuro, que é a República Popular da China, os efeitos do colossal erro, partilhado por George W. Bush, por aceder alacremente ao propósito de seus auxiliares, e, em especial, de seu Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, acarretaram brutal perda para a economia americana.

           Os erros garrafais no planejamento, a Blitzkrieg que se transformou em enorme poço de areia movediça tão logo formalmente terminada, e a falta de qualquer programação para o pós-guerra contribuíram pesadamente para transformar o ‘triunfo’ prematuramente celebrado no porta-aviões Abraham Lincoln, em tragédia americana com um misto de farsa oriental.

           No figurino de Rumsfeld a rapidez tinha menos características da Blitzkrieg de que em realidade tratamento deficiente e com enormes lacunas do imediato pós-guerra. Na pressa de declarar vitória e de dar a empresa por encerrada, na frase adaptada de Tancredo Neves, faltou consultar a outra parte.

            O atabalhoado simulacro de planejamento de Rumsfeld logo se faria sentir pelas suas gritantes falhas. Não se cuidou da ocupação militar, nem de medidas para assegurar a propriedade e os haveres do governo de Saddam, assim como as próprias antiguidades dos museus.

            Foi ainda nessa primeira fase de anarquia e de falta de segurança, em que o representante das Nações Unidas, Sérgio Vieira de Mello, viria a falecer na Zona Verde – supostamente área protegida – por hemorragia interna causada por bomba, a dezenove de agosto de 2003, em longa agonia (por achar-se preso nos destroços da explosão foi impossível retirá-lo do local de sua morte).

            O roubo generalizado dos bens públicos – inclusive as peças das civilizações antigas guardadas por diversas instituições do Estado – passaram a ser objeto de pilhagem generalizada.

            A insegurança – que se tornou o traço distintivo do pós-guerra – retirou da população qualquer atitude de benevolência com os novos Senhores da guerra, eis que a suposta coalizão de Bush havia afastado e derrubado o regime de Saddam para colocar no seu lugar a falta de autoridade, o saque e a pilhagem indiscriminados.

            O inepto planejamento de Rumsfeld – que seria agravado com a geral desmobilização do exército e da guarda republicana de Saddam – do dia para a noite jogou na clandestinidade boa parcela dos militares. Na prática, a rebelião tinha à sua disposição gente treinada para o mister, que se colocara na rua, sem lhe dar qualquer opção de saída honrosa, mais inteligente e adequada para as duas partes.

             Não tardou muito para que começassem a repontar vítimas ilustres do garrafal erro de Rumsfeld. O brasileiro e funcionário internacional Sergio Vieira de Mello seria a vítima proeminente dessa enorme desordem, que o terrorismo, em seus vários matizes, soube infelizmente utilizar com maior eficácia do que a administração da ocupação, que seria montada às pressas.

              Dessarte, a expedição militar planejada por Don Rumsfeld logo se transformaria em um atualizado inferno de Dante para as forças de ocupação, montadas de afogadilho, pela simples razão de que o Secretário da Defesa se esquecera de programa para o pós-conflito. Assim, o que ele via como economia transformou-se em sumidouro de verbas em dólares, com as perdas causadas pelos i.e.d.s (que são engenhos explosivos montados pelos insurgentes), danos esses incrementados pela falta de blindagem adequada dos veículos militares (eis que, para Rumsfeld tudo seria muito rápido, o que dispensaria na mor parte dos casos fortes blindagens em veículos militares...). Dados os desastrosos resultados desse planejamento de alta incompetência, e a clara origem dos vultosos erros com as conhecidas trágicas consequências para os militares americanos, surpreende deveras que Don Rumsfeld só tenha sido demitido da Secretaria de Defesa em 2006. Foram essas falhas gritantes no planejamento e equipamento das tropas que aumentaram o número de baixas fatais, e a consequente exoneração do Secretário da Defesa. A eleição intermediária de 2006 determinaria o controle democrata de Senado e Câmara, como resultado da péssima gestão do Presidente.

           Selaria o juízo da população (e da história) de George W. Bush pelo encaminhamento irresponsável de uma guerra nada oportuna e por demais equivocada (seja nas próprias razões, eis que Saddam nada tinha a ver com a al-Qaida, seja na calamitosa preparação do exército americano para a dita missão) e a fortiori, pelo enorme gasto nos haveres da Superpotência, com graves e gritantes consequências na situação econômica e financeira estadunidense.

            Além de suas vítimas políticas, o Partido Republicano pagou um preço alto pelo enorme e gravoso erro de George Walker Bush. As consequências políticas da guerra do Iraque, o uso indiscriminado da tortura pelas forças americanas, seja pela CIA, seja nas prisões (Abu Graib é exemplo) contribuíu para a desmoralização ética e moral do governo, soando cada vez mais patéticas as negações da tortura de parte de George Bush e de seus altos funcionários.

             Mas a mais pesada maldição de Saddam Hussein – descoberto hirsuto e imundo metido em esquálido poço de fundo de quintal - foi o de ser celeremente condenado à morte pelo governo iraquiano, a ponto de fazer parecer moderados os tribunais de Fouquier Tinville, na época do Terror, da Revolução Francesa.

             Não há qualquer dúvida sobre o nível moral e ético do ex-presidente do Iraque. Tampouco há discussão sobre a amplitude de seus crimes. No entanto, nada disso impediu os governos dos Estados Unidos da América de manterem com o ditador sunita do Iraque relações até de cordialidade e de cooperação, inclusive militar.

              Ao invés de ser julgado à oriental, seria mais positivo entregá-lo ao Tribunal Penal Internacional, para que fosse objeto de um juízo équo e imparcial– como foi concedido a Slobodan Milosevic. As características do tribunal iraquiano tem muito mais a ver com juízo xiita de uma personalidade sunita, do que com qualquer sombra de eventual imagem de uma justiça vendada e atenta aos direitos das partes. Afinal de contas, os Estados Unidos se recusam a participar do Tribunal Penal Internacional por idiossincrasias políticas. É conhecido no particular o aporte dado à constituição do TPI por David Scheffer, enviado especial da Administração Clinton às negociações diplomáticas para a constituição dos Tribunais para os crimes de guerra.

                                  (  a  continuar )

 
(Fontes: Der Untergang des Abendlandes, Oswald Spengler, ed. C.H. Beck (2 vols.); A Study of History, de Arnold Toynbee, Oxford University Press (13 vols); e All the Missing Souls, de David Scheffer, Princeton University Press )



[1] Em casa quando as folhas começarem a cair.
[2] A Decadência do Ocidente.
[3] Respeitado por V.Lenin pelo seu espírito organizativo, tomaria a alcunha de Stalin.

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