Conheci, como tantos outros da
minha geração, a livraria Leonardo da Vinci nos anos cinquenta. Era época em
que havia outras grandes livrarias, como a Civilização Brasileira, se não me
engano na Sete de Setembro, a José Olympio e a Francisco Alves, na rua do
Ouvidor, a Kosmos, na rua do Rosario.
Se na
Civilização, existia um segundo andar, com estantes repletas de livros
franceses, na da Vinci, além de estantes com edições atualizadas de livros
havia a presença de dona Vanna.
Nos tempos
de estudante, a vontade de conhecer e adentrar no mundo dos livros tem como polícia
a magreza de fundos.
Dona Vanna
estava ali justamente para facilitar o acesso àquela em que, se não éramos
amigos do rei, encontrávamos na cancela a sua presença. Com o seu sotaque
característico, ela era uma espécie de super-ego, que nos poderia abrir a porta
do paraíso.
Para os
jovens, colocava o limite do bom-senso. A sua generosidade se pautava pelas
regras do mundo do possível. Tinha prazer em proporcionar-nos o acesso a
estratos mais altos do conhecimento, desde que se tivesse alguma perspectiva de
repor-lhe os fundos empenhados.
Nesse
contexto, recordo-me da minha encomenda da Correspondência
de J.J.Rousseau, na edição
organizada por Théophile Dufour, publicada em vinte volumes pela “Librairie
Armand Colin”. Era uma ordem meio salgada, eis que o preço, ainda que não
astronômico, já representava um avanço ponderável pela livreira.
Como já me conhecia, a sua hesitação inicial
logo se desfez, embora ela lançasse, ao final, como os partas, um resmungo:
espero que V. tenha boa saúde...
Refugiada da
Europa, dona Vanna tinha a atitude de quem esteve na escola da adversidade, que
se vestia de aparente aspereza, mas que na realidade entendia as limitações da
bolsa dos jovens.
Se a idade não
lhe pregasse uma peça, tenho poucas dúvidas de que o desafio presente seria
vencido. Mas a sua longa presença à testa da livraria, com o seu ethos de livreira – quem gosta e até ama
ser transmissora do conhecimento – marcaria seja pela voz inconfundível, seja
pela qualidade de não encarar o livro como bem material mas sim objeto
transmissor de mensagens, uma postura que tinha prazer em dar, em proporcionar
as viagens da leitura e da consulta, sem qualquer sentimento menos confessável
de sua parte. Assim, não importa qual fosse o livro, a sua passagem ao leitor,
para ela era um ganho, porque sabia quão importante é o livreiro na corrente do
conhecimento.
Na era
cibernética, em que o paradigma de Gutenberg semelha sair de cena, me recordo
do bom amigo Pedro Neves da Rocha, que a senhora conheceu tão bem como percuciente
frequentador de suas estantes e mesas de exposição livresca, assim como
comprador insaciável dos livros que nas suas salas descobria, ou encomendava
por seu intermédio a livrarias europeias e americanas. Ele não dispensava
sorver do conhaque que a senhora punha à disposição dos frequentadores. Por
vezes, um trago pode aclarar as idéias...
A senhora me desculpe que não apareça na
Livraria em que a frequência aumenta, na hora dos volumes vendidos sob o toque
da retirada diante do desafio dos tempos novos. É um outro tipo de concurso que
não me agrada. Pois nele não vejo a Livraria Leonardo da Vinci que conheci,
jovem ainda.
Não se
esqueça, porém, minha cara dona Vanna, que a senhora construíu e moldou grande, magnífica livraria, remanso de mais de
uma geração de escritores, literatos e intelectuais, que em nela entrando
viravam alunos seus, enquanto buscavam nas prateleiras e nas mesas as mensagens
que se escondem atrás de tantas capas.
A todos nos
unia o desejo e a ilusão do saber – não importa se literário, artístico,
histórico, sociológico, antropológico, bio-ético e o que mais essa alma errante
do conhecimento inventar possa.
Em meu
modesto nome, no de tantos outros visitantes interessados no seu tão próprio
mercado do saber, qualquer que ele seja, os meus parabéns pela realização deste
maravilhoso sonho, que com a sua generosidade e inigualável saber livresco nos
propiciou a todos sem exceção.
( Fonte: O Globo )
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