sábado, 8 de agosto de 2015

A Guerra Esquecida

                                            

       Será exagerado definir o conflito na Ucrânia como a guerra esquecida? E se ela não aparece no noticiário internacional, isso quer acaso dizer que a questão estaria desaparecendo?

       A agressão da Rússia de Putin contra a Ucrânia começou no primeiro semestre de 2014, notadamente com a tomada da Criméia.  Esta península tinha sido transferida para a Ucrânia, então uma das repúblicas soviéticas, por Nikita Krushev,  Secretário-Geral do Partido Comunista da URSS, pouco depois da morte de Joseph Stalin.

        Ao ser anexada por Moscou em 2014, a Crimeia era uma província ucraniana há sessenta anos!

        Por outro lado, esse atentado ao direito internacional público e às Nações Unidas – sem mencionar, é lógico, o sistema dos pacta sunt servanda, que existe há séculos para preservar a ordem internacional – tivera como causa um regulamento de contas contra o governo federal de Kiev. Gospodin Vladimir V. Putin determinara esse castigo contra a Ucrânia  por dois motivos: (a) a derrubada de Viktor Yanukovich em janeiro de 2014 pelo povo ucraniano; (b) a escolha por esse mesmo povo de Acordo Comercial com a União Europeia, pela sua promessa de melhor futuro para os ucranianos, ao invés do ensejado por eventual adesão à União Aduaneira com a Rússia.

        Tal bastou para que Putin determinasse a invasão e anexação da Criméia, ao arrepio da lei internacional. Por causa dessa ação contra o direito internacional, a Rússia foi despejada do G-8, e sofreu uma série de sanções econômicas dos Estados Unidos e de outras potências, em que o grupo de cupinchas e cúmplices do Presidente russo foi diretamente visado nos principais bancos e contas respectivas. Outras sanções à província anexada da Crimeia pela Rússia incluíram suspensão de financiamentos internacionais, inclusive sendo vedado o uso de cartões de crédito internacional, assim como a utilização do serviço das principais companhias aéreas do Ocidente.

         Como a Federação Russa é membro do Conselho de Seguranças das Nações Unidas, a aprovação de sanções contra Moscou por este Conselho é inviável, eis que a Rússia dispõe de veto. Mas tudo foi feito para economica e financeiramente dificultar, por outros meios acessíveis ao comércio internacional, para criar entraves aos interesses de Moscou. Foi de resto aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas Resolução (que só tem peso de recomendação) que condena o governo russo pelo seu desrespeito ao Direito Internacional e comina de ilegal a anexação da Crimeia. Para vergonha de sua diplomacia, o Brasil se absteve de votar a favor da aprovação.  Note-se que essa abstenção, uma nódoa em nossos registros, só foi aprovada pelo Itamaraty por ordem da Presidenta, que deveria saber que com esse acinte ao Direito Internacional Público se desrespeita norma de nossa Constituição vigente.

A guerra contra a Ucrânia deve integrar o plano de Vladimir Putin de recuperar parte do território perdido com a implosão da antiga União Soviética em 1994. Em razão do desaparecimento da URSS, a Federação Russa é a sua principal herdeira.  Acoimado por  Barack H. Obama como potência regional, o que mais ambiciona Moscou é recuperar parte do poder perdido na última década do século vinte. Sendo o principal herdeiro político da antiga superpotência,  Vladimir Putin sonha com reapossar-se de pelo menos parte da base territorial a que a URSS atingira.

           Vencedora da Alemanha de Hitler, a URSS sofreu descomunais perdas em vítimas humanas e enormes danos materiais, na sua mortal batalha contra o III Reich.  Nessa guerra, a mais mortífera do século XX, Moscou teve a ajuda determinante dos Estados Unidos, através de vários programas, de que talvez o mais importante tenha sido o lend-lease, ideado pelo Presidente Franklin Delano Roosevelt para fortalecer o exército e a marinha soviéticos. A União Soviética teve outra grande ajuda neste conflito, certamente o mais letal do Século XX. Essa ajuda se deveu à ignorância militar do cabo Adolf Hitler e a sua crescente e ruinosa intromissão na escolha dos principais objetivos militares do Alto Comando da Wehrmacht. Quis o Senhor da História que no fiel da balança entre dois magnicidas, acabou por levar a melhor o grande algoz  e psicopata Joseph Stalin, sendo afinal o pior deles, em termos de carrasco da Humanidade, i.e. Adolf Hitler, derrotado pelo acúmulo de erros cometidos, para melhor fortuna do mundo que entre dois grandes males, acabou ficando com o menor.      

         Agora Vladimir Vladimirovich Putin se empenha na recuperação do antigo poder da União Soviética.  Se por ora ele está bastante longe desse escopo político, militar e econômico, a sua falta de escrúpulos e a ausência de respostas mais firmes e determinantes do Ocidente, se não lhe abre a cancela para restabelecer a base territorial da antiga URSS (isto sem falar na Europa Oriental, antes acorrentada e dominada pelo Kremlin, e hoje gozando de inegável liberdade, que tende a crescer para aqueles antigos países dominados por Moscou que fortaleçam e desenvolvam os seus laços com a União Europeia). Salta aos olhos que é menos preocupante a situação de países como a Polônia,  integrada com Bruxelas, do que a de outras pequenas nações (com substanciais minorias russas), como os países do Báltico.

          Tenho escrito amiúde neste blog sobre a região do estrangeiro próximo (near abroad), que é a peculiar maneira com que o Kremlin se reporta àqueles países  que por sorte madrasta, além de serem vizinhos da Rússia, tem um peso demográfico e econômico menor.  Aliás, o imperialismo de Moscou já se fez sentir sobre a Geórgia e a Moldova, humilhando a ambos com a formação de faixas com etnias próximas do Kremlin e contrárias aos pequenos países em que estão localizadas. Nos tempos de George W. Bush, a Superpotência aprenderia dos próprios limites, eis que Moscou fez o que bem entendeu no que toca à chamada Georgia do Sul e a Abkhazia do Sul, mostrando a Washington o quanto valia o seu poderio para aqueles anões se ambicionassem contrapor-se ao poder do Kremlin. Esta foi a primeira lição aplicada por Gospodin Putin ao Presidente da Superpotência, na época George W. Bush.

          Oportunamente, me ocupei, outrossim,  de uma contribuição intelectual do Presidente russo ao seu ingente trabalho de construir as bases da ressurgência da antiga Superpotência. É importante, nesse contexto, ter-se presente que nada fazendo, mesmo assim a Rússia é a herdeira natural do armamento termonuclear da antiga URSS. Parte desse armamento se achava sob a posse de outras repúblicas soviéticas (eis que na época, não passavam na verdade de províncias do Kremlin). A Federação Russa cuidou de manter a posse dessas armas atômicas e tudo leva a crer que tenha logrado fazer com que as repúblicas menores se desfizessem da responsabilidade de armazenar tais armas. Sob certos aspectos, não há negar que a decisão contribuía para diminuir os óbvios perigos da fragmentação desse controle. No entanto, países do tamanho da Ucrânia, que também repassaram à Rússia a posse de tais armas, deveriam te-lo feito? Se Kiev tivesse insistido na manutenção do seu controle de tal armamento que já se achava em seu território, a pergunta que se coloca é óbvia: Moscou teria procedido da mesma maneira com que agiu, após a queda do ‘amigo’ Yanukovich ? Terá o então presidente ucraniano sopesado da importância dessa decisão? Salta aos olhos que o Kremlin não ousaria  tratar Kiev como se fora uma simples província, a ponto de castigá-la com a invasão da Crimea, isto sem falar da instigação à rebelião na Ucrânia oriental por agentes adrede escolhidos...

        Antes que trate da parte final desse estudo, cabe sublinhar que Vladimir Putin atribui grande relevância à recuperação do antigo poder soviético pela Federação Russa. Para tanto, mandou elaborar doutrina eurasiana, que forneça o alicerce ideológico para o continuado florescimento, sob o aspecto intelectual e doutrinário, da presença da Federação Russa no seu chamado espaço vital.

          Não se assuste o leitor com o emprego dessa terminologia. Ele é feito adrede, pois o Kremlin tratou de realizar esforço que desse embasamento teórico e doutrinário aos supostos alicerces de uma ideologia que se substituísse à anterior (a marxista-leninista, do tempo da URSS), para emprestar alegadamente ao novo enfoque intelectual maior respeitabilidade e abrangência.

         Nesses termos, não se pode deixar de sublinhar que a doutrina eurasiana pretende suceder ao comunismo, hoje perempto para o Senhor de todas as Rússias, embora não se deva ter ilusões quanto à eventual serventia dos meios no passado utilizados. Para que se tenha ideia da amplitude dessa doutrina, ela não se faz de rogada quanto ao emprego das vertentes de direita e de esquerda. Há mesmo um ideário oriundo do nacional-socialismo que é igualmente havido por útil para ter seu emprego assegurado.

                                                                                            (a continuar)

                                                                                      

( Fontes subsidiárias: The New York Review, The New York Times )

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