domingo, 9 de agosto de 2015

A Guerra Esquecida (II)

                                            

         Ontem ocupei-me das motivações do governo autoritário de Vladimir Putin, e dos antecedentes desse conflito que chamei  de  a guerra esquecida.

         Segundo o pai da psicanálise, o Dr. Sigmund Freud, não há esquecimento por acaso. Haverá sempre uma razão determinante para explicar esse olvido, para colocá-lo no contexto, e, se for o caso, dar-lhe as razões respectivas.

         Quanto ao virtual apagão, ele tem servido à maravilha a causa de gospodin Putin. Poder-se-ía dizer que o mundo contemporâneo tem sido visitado por muitos conflitos. Além da interminável guerra na Síria, surgiu mais um elemento no quintal médio-oriental, que é a ação do dito Califado do ISIS (Exército Islâmico), que vem sendo combatido pela Superpotência (através de bombardeios no oriente da Síria, e norte do Iraque). Os Estados Unidos lideram uma coalizão de diversos países (Reino Unido, Austrália, países árabes e a própria Turquia – que acaba de aderir à aliança).

        Além de promover com sédula intensidade o apoio ao regime de Bashar al-Assad (máxime por causa da base nas águas quentes do Mediterrâneo oriental que lhe é cedida pela Síria) a Federação Russa tem sustentado Damasco, agora com perspectiva menos periclitante, entrado o conflito na Síria em  situação tendente a consolidação das posições ocupadas pelas partes em guerra. Assim, o velho país da passagem estaria dividido em três partes, a mais ocidental sob o controle do ditador Bashar, a aliança (que é o antigo núcleo da revolução) rebelde com a parte sul do país, e, por fim, o E.I. – que seria o novo partícipe – e que se apossou de terras a norte e leste. A própria ‘capital’ do Estado Islâmico, Raqqa, foi extirpada de área antes dominada por Damasco, assim como é o caso do centro arqueológico de Palmyra, de que se apoderou o E.I., com os previsíveis estragos arqueológicos.   

           As menções à invasão da Ucrânia se refletem na mídia de forma descontinuada. As referências espelham de uma parte o caráter sinuoso e assistêmico dessa guerra lançada por Putin na parte oriental da Ucrânia. Com a expulsão de Viktor Yanukovich, a erupção ‘espontânea’ da revolta induzida se procedeu em diversos municípios, com ataques de ‘separatistas’ pró-Moscou a delegacias e outras expressões do poder de Kiev.

            Para ‘alimentar’ essas sublevações que no ano passado de 2014 começaram a pipocar como se fossem expressões do desejo de maior autonomia, a reação do governo federal ucraniano refletiu o seu caráter precário na época, eis que a presidência estava acéfala e o primeiro ministro sofria dos naturais impedimentos da autoridade provisória. Dessarte, o Kremlin dispunha de grande margem de manobra para as suas tomadas de sedes distritais e congêneres. Com os parcos poderes e os ainda menores recursos da sede central, Kiev não pôde intervir com a determinação e o impacto de que disporia um executivo na sua capacidade plena.

             Cabe ainda nesse contexto sublinhar que a sucessão de ataques feitos por Moscou, primo na operação contra a Crimeia, e secondo nas incursões de guerrilha, contra municipalidades no centro-leste do território ucraniano, gozaram a princípio do fator surpresa, não tendo antes qualquer precedente. Por outro lado, o governo interino em Kiev não tinha gente com autoridade e muito menos com experiência bastante para arrostar o inédito desafio.

              Se a ex-Primeiro Ministro Yulia Tymoshenko, recentemente libertada do lazareto em Kharkov, estivesse em condições de saúde com vistas a  assumir a direção da resistência àquele inesperado ataque, se poderia quiçá esperar reação mais coordenada e, por conseguinte, mais forte, ao crescente aumento das penetrações de ‘voluntários’ russos nas províncias do leste. Não terá sido sem razão que Vladimir Putin nos seus contatos de trabalho com a Tymoshenko, então primeira ministra, a definira como o único homem do governo ucraniano com quem lidara.

               Traindo sofisticada orquestração, a invasão tópica das províncias orientais tratou de manietar as representações do poder federal. Por outro lado, foram nos meses seguintes detidos ilegalmente representantes de órgão especialmente encarregado de fiscalizar movimentos de sublevação. Essas detenções ilegais não respeitavam as imunidades de serviço adrede destinado a observar a irrupção de tais focos.

                 A capacidade de reação da Ucrânia – diante da porosidade das respectivas fronteiras com a Rússia e o relativo fortalecimento dos núcleos separatistas de Luhansk e  Donetsk – sofreu pelas consequências da brutal disparidade na disponibilização de equipamento bélico e de pessoal militar entre as forças ditas rebeldes pró-Rússia e aquelas da defesa ucraniana.

Equipamento bélico.  Sob uma série de pretextos, e contrapondo uma indignação (que pelos seus resultados só pode ser qualificada de teatral), o Ocidente se tem negado com grande coerência a prover as forças ucranianas de equipamentos militares que as habilitem a enfrentar o ataque bem-provido dos ditos rebeldes pró-Rússia, a que, ou voluntários ou forças armadas do exército regular intervirão em pronta ajuda, na hipótese de determinarem que a frente possa ser rompida em favor da Ucrânia. Essa estranha negação pelo Ocidente (e frau Angela Merkel não fez qualquer mistério a respeito: nein para qualquer equipamento bélico pesado, mesmo que de defesa!)

                       É difícil em tal contexto conviver com este apoio fraco em material bélico de defesa. Se Frau Kanzler Merkel faz tanta questão da posse da cidade portuária de Mariupol quanto apregoa, fica difícil entender a rationale (se existe alguma) a presidir as sucessivas negativas para as mal-equipadas forças ucranianas de provê-las com material bélico de defesa digno desse nome, e que as habilite a contra-arrestar os ataques das forças militares russas. Nesse aspecto, Estados Unidos e a OTAN seguem a mesma linha. Pelo visto, esse plano de coordenação funciona bem, mas pesa-me dizê-lo que essa coordenação equivale a entregar à Rússia todo esse extremo oriental da Ucrânia (já que quanto à península da Crimeia, kaputt!)

                       Apesar da relevância geo-estratégica da cínica invasão russa de toda a região sul-oriental da Ucrânia, essa campanha militar se vale ou da indiferença da mídia ocidental (o que me é difícil acreditar), ou de concertada postura da NATO, que teria, na prática, consentido em alto nível, ainda que tacitamente, a criação de condições que equivalessem para todos os efeitos em virtual  cessão de determinada faixa territorial na extremidade oriental de o que era a Ucrânia.

                         Posto que tal hipótese de trabalho semelhe, à primeira vista, difícil de engolir, o leitor me permita uma observação a latere: se a poderosa Aliança militar do Ocidente recusa equipamento de defesa pesado à Ucrânia sob pretextos que sequer valem a pena serem discutidos, uma razão mais forte se alevanta: há um concerto com o Kremlin que nada tem a ver de musical. Se essa hipótese de trabalho não for sustentada pelos eventos posteriores, eu a retirarei com prazer.

                        Não obstante, se Mariupol – que  Merkel definia como inegociável e cuja importância estratégica a Chanceler alemã era a primeira a sublinhar - acabar caindo, só nos restará a perplexidade pela forma tão coerente com que se criaram as condições para perder Mariupol, malgrado todas as afirmações retóricas de sua relevância econômica, política e militar.

                        Enquanto a invasão prossegue, com as concentrações bélicas que artigos não sucessivos mas que de vez em quando rompem o silêncio,  o cerco a Mariupol, a estratégica cidade às portas do Mar de Azov, não só prossegue, mas se cerra sempre mais.

                        Os últimos mapas divulgados pela mídia ocidental mostram a Cidade de Mariupol já meio cercada. A par disso, toda a campanha que por trás dela existia, e tinha as cores da Ucrânia, já se pintou do rosa da aliança do Kremlin com os gatos pingados dos grupelhos separatistas pró-Rússia, que só serão importantes por  coonestarem com mais uma invasão da potência continental que prossegue na sua putinesca caminhada para rejuntar mais algumas pecinhas do poder imperial russo de antanho.   

                        Para resumir essa farsa da defesa da Ucrânia, defesa essa que o Ocidente pretende realizar negando armas à Kiev, tal parte da (re)conquista – que não é comparável a outras épicas e verdadeiras reconquistas – que permitirá a Vladimir Putin quiçá receber as chaves da cidade.  Haverá sempre quislings[1] para acolher os conquistadores, mas a resistência foi muita e a memória de tantos conluios obscuros e de duvidosos escambos deixa marcas difíceis de apagar.

                        Gostaria de estar errado, mas a vida me ensinou a não lutar contra os fatos que se sucedem, numa coerência que repele frágeis dissimulações.

                         Para a Ucrânia e o seu governo em Kiev, resta a lição romana: se queres a paz, prepara a guerra (si vis pacem, para bellum).

 

( Fonte: The New York Times )   

 



[1] Quisling era o sobrenome do norueguês a quem os nazistas entregaram o governo de seu país ocupado durante a II guerra mundial. Pela sua total sujeição ao nazismo, se tornou um paradigma de traição à própria pátria.

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