quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Inveja e Preconceito


                          

        Falam que essa dupla seja atributo  das classes pobres, que deparam com vistas  enviesadas as qualidades e as vestes dos ricos. Entre as patranhas dos favorecidos, não há maior injustiça.
           Pois este gênio da Sétima Arte - cujo nome, em geral pronunciado com sorriso de carinho e aprovação - é seu eterno cartão de apresentação: eis o imortal Carlitos da infância de tantos, o Charlot dos franceses e o Charlie Chaplin da terra  que adentrou e, de alguma forma, contribuíu para que lá fulgisse com seu valor incontrastável.
           Pois vejam só. Essa terra, que em princípios do século passado o acolhera, como a tantos outros imigrantes, o terá feito com alguma inconfessa má-vontade.
         Aquele que logo se confundiria com a Sétima arte, lá chegava nos albores do cinema mudo.
           Coube a ele, com a sua roupa inconfundível, difundir aquela mensagem por vezes ainda vulgar, espalhada nos curtas cômicos povoados de personagens populares que só  as modernas reconstituições nos trazem de volta, no seu formato ainda trôpego, em que reponta o primeiro Carlitos, às voltas com os fanfarrões, os bêbedos e os valentões da vizinhança, cuja popularesca presença só sobrevive nos filmecos sincopados desse eterno vagabundo vestido nas sovadas roupas da lanterna mágica que a engatinhante Sétima arte já nos prometia, com as lúridas, eternas cores dos tecidos vulgares.
               As obras primas deste primeiro gênio da Sétima Arte incluem  o Circo, onde os personagens e o estilo inconfundível pedem licença ao povão imenso, que se vai reproduzindo nas salas mal-iluminadas que trazem a memória de tantos anônimos, que dele restam devedores dos primeiros risos e das primeiras mensagens da igualdade de seu incontável público, cujos traços faciais podem mudar, ao sabor do gênio desse primeiro cineasta, que se escondem na penumbra das salas anônimas, aonde as fantasias e as primeiras identificações se vão conformando.
                  O Circo, como todo precursor, sói ser caixa de surpresas, em que os temas e o estilo inconfundível já se vai amoldando aos gulosos interesses dos patrões insaciáveis, nos velhos truques dos mais fracos - que Carlitos encarna - e nas singelas estórias do amor que se diferencia para continuar o mesmo, a um tempo encantador, com os suas eternas armadilhas, que nem sempre cáem a gosto de quem faz por merecê-las.
                    Mal sabia Carlitos - este gênio da Humanidade - que o prêmio máximo do cinema - logo a ele que se confunde com a Sétima Arte - lhe seria sempre negado  tanto no sorriso escarninho de quem arrancara da cegueira como em Luzes da Cidade - como nesse primeiro longa que é o Circo, onde os eternos temas da rejeição capitalista e da terminal injustiça se dão metaforicamente as mãos.
                      E tal reação da raiva capitalista de quem ousara prefigurar o vagabundo a liderar as massas de desocupados da Depressão com o seu farrapo vermelho, também aqui é discernível, pois envolta nas gargalhadas do público ignaro já reponta o personagem desse eterno tipo do vagabundo que marcha, com as sovadas roupas do  luto, com a sua tragicômica aparência  e o horizonte por meta - para um futuro que tem de confundir-se com a consagração.
                         E será pensando nisso que a generosa América sempre negaria ao maior cineasta de todos os tempos a consagração que se imanta na festa do Oscar.  Nunca entenderei porque o imortal Charlie Chaplin não rejeitou o falso prêmio - em geral reservado ao second best das categorias - que lhe foi dado por "conjunto de obra", e ao qual assistiu em algum assento apartado do grande recinto, pois aos patrocinadores da festa  não agradava dispensar àquele que é o simbolo da Sétima Arte o seu mais alto troféu de glória e realização.
                           Na modéstia do eterno Carlitos, Charlie Chaplin iria mostrar que é muito maior do que a festa, pois o preconceito de classe será para sempre incapaz de jogar nas águas do Letes, aquele que é o simbolo do Cinema e da sua universal linguagem.  A Direita pode arreganhar-se com essa falsa desfeita.
                            A humildade do imortal Carlitos se sobrepõe a essa festa da Direita, que vestida com os ouropéis da vulgaridade, jamais terá a coragem de desfazer-se da própria ínsita mediocridade, e assumir com estranha, mas surpreendente desenvoltura, a homenagem que esse gênio da Humanidade sempre fez por merecer.
                             E se, da parte da raivosa Direita, a inveja transcenda gerações, o legado do eterno vagabundo, à Humanidade pertence. O Belo se veste com roupas diversas, mas a sua linguagem é universal, e não será um grupelho de mediocridades que há de prevalecer. E não se esqueçam que nos filmes de Carlitos e respectivo legado, ganham os deserdados da sorte, com quem se identifica - e aí está o perigo! - o silente e anônimo Povão...

( Fonte: A Sétima Arte e o imortal legado de Charlie Chaplin )  

Um comentário:

Mauro disse...

Muito bom ensaio, Pai. Sua admiração por Carlitos reflete bem valores hoje em dia infelizmente escassos no mundo.