segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Os Olhos da Tragédia de Mariana


                             
        Dilma Rousseff levou uma semana para sobrevoar o cenário da maior tragédia ambiental no Brasil neste século. Diferente de sua reação diante das chuvas e avalanches em Teresópolis.

        A prioridade um é a luta pessoal contra o impeachment. Aí, não há atrasos, nem descuidos. Para que se tenha essa disparidade de critérios, basta ter presente a silente, mas eficiente mobilização para lograr a aprovação de recurso do partido caudatário PCdoB contra a votação pela Câmara de Deputados, por voto secreto de câmara especial para o impeachment. Por diferença mínima de ministros, a coisa funcionou à maravilha para o reforço do Senado, com o amigo Renan Calheiros, acrescido o detalhe de nova votação para a câmara especial, proibido o voto secreto.

        Na aparência venceu, apesar da desfaçatez da iniciativa, e da afronta à igualdade e independência dos Poderes. Quem não entendeu nada foi o correto e competente Ministro Edson Fachin. Como apresentação às práticas do Poder, tiveram a sutileza de um paralelepípedo.

        Como mostrei na minha série Brasil: Corrupção & Burocracia, essa díade maldita opera desde muito na terra do Pau brasil. A rigor, desde o descobrimento por Pedro Alvares Cabral, um evento encomendado por el-Rei dom Manuel, dito o Venturoso. Programar o fortuito já é expediente de tirar o chapéu, dados os desafios que o pequeno Portugal devia arrostar, sendo peixe relativamente pequeno em um mar de tubarões.

        Na qualidade de detalhe, o pedido do escrivão Pero Vaz de Caminha. Sob o signo do patrimonialismo que se apossaria da Terra da Santa Cruz nada mais revelador de um clima de pequena corte renascentista.

        O artificial desastre da barragem da Samarco é também catástrofe demasiado brasileira.

         Pergunto-me se as medidas de segurança relativas à barragem não podem ser elencadas como uma brutal revelação da quase total displicência dos empresários responsáveis à proteção devida aos moradores que estivessem a jusante dessa obra.

         De saída, o meu interlocutor - seja ele quem for se brasileiro - poderá até achar absurda a colocação, pois ninguém que tenha uma boa situação correria tal risco.

         Por que então se permitiu que outros, menos favorecidos da sorte, se colocassem em tão desfavorável posição?

         A tragédia de Mariana e da ruptura da barragem afetou todo o curso a jusante do rio Doce, a ponto de poluir o próprio mar-oceano, na foz do rio. Os efeitos sobre a flora e a fauna são imensuráveis, chegando a prejudicar os próprios filhotes de tartarugas marinhas na sua área de desova e criação.

          Nesses grandes desastres naturais, com  destruição cega, brutal e violenta, tais característicos são previsíveis por mais amplos que sejam. Tampouco me quero deter nos detalhes ditos menores, como a ausência de um sistema de aviso da iminência de desastre. Não havia sequer uma sirene que pudesse ser ativada para alertar as ameaçadas vítimas a jusante da barragem. Essa falta de empatia, de inquietude, por mínima que fosse, com a necessidade da advertência aos ameaçados pelo flagelo, escreve mais em termos  de sensibilidade e de consciência humana e ambiental, do que imaginar-se possa.

          A cobertura dos flagelados de Mariana tem sido sempre mais espaçada e ocasional. Seria a banalidade do trágico.

           Enquanto a Vale e a Samarco se empenham na batalha à retaguarda, valendo-se do sagrado direito à defesa do respectivo patrimônio, diante das multas a serem impostas pelo Estado, que ativa mecanismos judiciais (Ministério Público) para cobrar dos infratores (que, por sua vez, com exércitos de advogados, tratam de retardar o avanço da Justiça), eu peço vênia para pensar nos infelizes que estão na terra de ninguém dos quartos de hospedagem que lhes couberam nessa imprevista, súbita e inarrestável catástrofe, das quais terão tido a fortuna de escapar vivos (feito que a muitos outros não foi concedido).

           E dentre esses desgraçados, confinados em ambientes descaracterizados - sem sequer um objeto, um memento que lhes seja próprio e que de alguma maneira o(a)s aproxime de um simulacro de um dia a dia como antes, eis que me foi apresentada em telejornal do meio-dia (já não os consideram matéria do horário nobre) uma senhora que nada sofreu fisicamente, mas tudo padeceu psicologicamente. 

           Essa senhora falava na sua solidão, no abandono em que se sentia, na sua total despossessão de bens materiais que lhe trouxessem lembranças da vidinha, decerto sem maiores momentos, mas de toda forma tranqüila, que antes da avalanche lhe assinalara a  existência. Vive hoje em quarto de hotel com total, geral, profunda ausência de qualquer lembrança pessoal ou familiar que seja. Nos seus olhos paira mudo desespero, um sentir mais fundo do que a angústia da barragem avançando como  besta do apocalipse sobre a sua vida, a sua existência, e, em especial, todos os contatos, por mais modestos, risíveis e insignificantes que antes lhe parecessem, que num átimo desapareceram afogados ou sufocados no pântano-lamaçal do cataclismo.E angústia enorme, sem bordas nem muralhas, que dela se apossara, e que a abandonada senhora de meia-idade só sabe expressar pelos seus olhos, recobertos de milimétricas camadas de lágrimas de algum modo contidas.E esses olhos, tão expressivos quanto passivos, a insinuar através do finíssimo lençol de lagrimas o peculiar, estranho mesmo, fenômeno  que,  substituía as palavras ou quiçá os gritos. Naquele programa, não de horário nobre, eles falavam forte e alto, a ponto de que todos deles não despegassem o olhar. Estranha mescla de espanto. Silente protesto diante da injustiça e sua enormidade.

           Então pensei: estou vendo a verdadeira tragédia de Mariana. Esta senhora sofre e  seu padecimento quase indescritível brilha na irrefreada angústia de alguém que se sente desatendido, à  borda do desespero. E, sem embargo, ela se contém, enquanto toda a sua raiva, nojo, sentimento de injustiça e tudo o mais que imaginar-se possa diante de situação aparentemente sem saída, cercada que está pela cortês, obsequiosa indiferença de tantos desconhecidos. O único que desvela são as pequenas muralhas de lágrima que nos olhos represa, como se fora espelho a medir a imensidão do mal que sobre ela despenca. Terá dúvidas se merece da gente dos governos, estadual e federal, assim como dos desconhecidos que se dissimulam atrás das câmeras de tevê, as gentis migalhas de atenção por que anseia e lhe foram tão cuidada e atentamente negadas na sua essência.  

(Fonte: Tv Globo)

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