Dilma Rousseff
levou uma semana para sobrevoar o cenário da maior tragédia ambiental no Brasil
neste século. Diferente de sua reação diante das chuvas e avalanches em
Teresópolis.
A prioridade um é a luta pessoal contra o impeachment. Aí, não há atrasos, nem
descuidos. Para que se tenha essa disparidade de critérios, basta ter presente
a silente, mas eficiente mobilização para lograr a aprovação de recurso do
partido caudatário PCdoB contra a votação pela Câmara de Deputados, por voto
secreto de câmara especial para o impeachment.
Por diferença mínima de ministros, a coisa funcionou à maravilha para o reforço
do Senado, com o amigo Renan Calheiros, acrescido o detalhe de nova votação
para a câmara especial, proibido o voto secreto.
Na aparência
venceu, apesar da desfaçatez da iniciativa, e da afronta à igualdade e
independência dos Poderes. Quem não entendeu nada foi o correto e competente
Ministro Edson Fachin. Como apresentação às práticas do Poder, tiveram a
sutileza de um paralelepípedo.
Como mostrei
na minha série Brasil: Corrupção & Burocracia, essa díade
maldita opera desde muito na terra do Pau brasil. A rigor, desde o
descobrimento por Pedro Alvares Cabral, um evento encomendado por el-Rei dom
Manuel, dito o Venturoso. Programar o fortuito já é expediente de tirar o chapéu,
dados os desafios que o pequeno Portugal devia arrostar, sendo peixe
relativamente pequeno em um mar de tubarões.
Na qualidade
de detalhe, o pedido do escrivão Pero Vaz de Caminha. Sob o signo do
patrimonialismo que se apossaria da Terra da Santa Cruz nada mais revelador de
um clima de pequena corte renascentista.
O artificial
desastre da barragem da Samarco é também catástrofe demasiado brasileira.
Pergunto-me se as medidas de segurança
relativas à barragem não podem ser elencadas como uma brutal revelação da quase
total displicência dos empresários responsáveis à proteção devida aos moradores
que estivessem a jusante dessa obra.
De saída, o
meu interlocutor - seja ele quem for se brasileiro - poderá até achar absurda a
colocação, pois ninguém que tenha uma boa situação correria tal risco.
Por que então
se permitiu que outros, menos favorecidos da sorte, se colocassem em tão
desfavorável posição?
A tragédia de
Mariana e da ruptura da barragem afetou todo o curso a jusante do rio Doce, a
ponto de poluir o próprio mar-oceano, na foz do rio. Os efeitos sobre a flora e
a fauna são imensuráveis, chegando a prejudicar os próprios filhotes de
tartarugas marinhas na sua área de desova e criação.
Nesses
grandes desastres naturais, com destruição cega, brutal e violenta, tais
característicos são previsíveis por mais amplos que sejam. Tampouco me quero
deter nos detalhes ditos menores, como a ausência de um sistema de aviso da
iminência de desastre. Não havia sequer uma sirene que pudesse ser ativada para
alertar as ameaçadas vítimas a jusante da barragem. Essa falta de empatia, de
inquietude, por mínima que fosse, com a necessidade da advertência aos
ameaçados pelo flagelo, escreve mais em termos
de sensibilidade e de consciência humana e ambiental, do que imaginar-se
possa.
A cobertura
dos flagelados de Mariana tem sido sempre mais espaçada e ocasional. Seria a
banalidade do trágico.
Enquanto a
Vale e a Samarco se empenham na batalha à retaguarda, valendo-se do sagrado
direito à defesa do respectivo patrimônio, diante das multas a serem impostas
pelo Estado, que ativa mecanismos judiciais (Ministério Público) para cobrar
dos infratores (que, por sua vez, com exércitos de advogados, tratam de retardar
o avanço da Justiça), eu peço vênia para pensar nos infelizes que estão na
terra de ninguém dos quartos de hospedagem que lhes couberam nessa imprevista,
súbita e inarrestável catástrofe, das quais terão tido a fortuna de escapar
vivos (feito que a muitos outros não foi concedido).
E dentre
esses desgraçados, confinados em ambientes descaracterizados - sem sequer um
objeto, um memento que lhes seja próprio e que de alguma maneira o(a)s aproxime
de um simulacro de um dia a dia como antes, eis que me foi apresentada em
telejornal do meio-dia (já não os consideram matéria do horário nobre) uma
senhora que nada sofreu fisicamente, mas tudo padeceu psicologicamente.
Essa
senhora falava na sua solidão, no abandono em que se sentia, na sua total
despossessão de bens materiais que lhe trouxessem lembranças da vidinha,
decerto sem maiores momentos, mas de toda forma tranqüila, que antes da avalanche lhe
assinalara a existência. Vive hoje em quarto de hotel com total,
geral, profunda ausência de qualquer lembrança pessoal ou familiar que seja.
Nos seus olhos paira mudo desespero, um sentir mais fundo do que a angústia
da barragem avançando como besta do apocalipse sobre a sua vida, a sua
existência, e, em especial, todos os contatos, por mais modestos, risíveis e
insignificantes que antes lhe parecessem, que num átimo desapareceram afogados
ou sufocados no pântano-lamaçal do cataclismo.E angústia enorme, sem bordas nem
muralhas, que dela se apossara, e que a abandonada senhora de meia-idade só
sabe expressar pelos seus olhos, recobertos de milimétricas camadas de
lágrimas de algum modo contidas.E esses olhos, tão expressivos quanto passivos,
a insinuar através do finíssimo lençol de lagrimas o peculiar, estranho
mesmo, fenômeno que, substituía as palavras ou quiçá os gritos. Naquele
programa, não de horário nobre, eles falavam forte e alto, a ponto de que todos
deles não despegassem o olhar. Estranha mescla de espanto. Silente protesto
diante da injustiça e sua enormidade.
Então
pensei: estou vendo a verdadeira tragédia de Mariana. Esta senhora sofre e seu padecimento quase indescritível brilha na
irrefreada angústia de alguém que se sente desatendido, à borda do desespero. E, sem embargo, ela se
contém, enquanto toda a sua raiva, nojo, sentimento de injustiça e tudo o mais
que imaginar-se possa diante de situação aparentemente sem saída, cercada que
está pela cortês, obsequiosa indiferença de tantos desconhecidos. O único que desvela
são as pequenas muralhas de lágrima que nos olhos represa, como se fora espelho
a medir a imensidão do mal que sobre ela despenca. Terá dúvidas se merece da
gente dos governos, estadual e federal, assim como dos desconhecidos que se
dissimulam atrás das câmeras de tevê, as gentis migalhas de atenção por que anseia
e lhe foram tão cuidada e atentamente negadas na sua essência.
(Fonte: Tv Globo)
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