quarta-feira, 15 de julho de 2015

O que é o ISIS ? (II)


                                       

       Baghdadi e os seus dois alternos determinam sobre os principais objetivos do Grupo, que em seguida são repassados para a hierarquia abaixo, com comandantes locais e administradores.  Esses últimos têm latitude para cumprir as tarefas respectivas, de acordo com o próprio julgamento, nos territórios sob controle do Exército islâmico. Há conselhos de assessoria e vários departamentos dirigidos por comitês. Os líderes dos respectivos departamentos  tem assento no gabinete de Baghdadi.

       De todos esses o mais importante é o Conselho da Sharia, que supervisiona a draconiana implementação  das penalidades por ‘crimes contra os limites de Alah’ (denominados hudud). Esses ‘crimes’ incluem a pena capital assim como amputações. No que tange às infrações menores (chamadas tazir) têm por escopo envergonhar os transgressores e induzi-los ao arrependimento.

       Assim como a Polícia Religiosa na Arábia Saudita, o Estado Islâmico dispõe igualmente de força policial baseada na sharia, e ela é encarregada de impor a estrita observância religiosa.

        Por outro lado, a polícia comum está  sob a administração do ISIS, e usa uniformes negros. Os carros policiais exibem as insígnias do ISIS.

        As Cortes constituídas com base na sharia tratam de todas as queixas, tanto religiosas, quanto cíveis, e os casos podem ser acionados seja por indivíduos, seja pela polícia.

        Em aglomerações urbanas em que não havia policiamento nem judiciário, por causa do colapso do governo central,  estas cortes são bastante populares. Os cidadãos podem submeter casos diretamente nessas cortes, que estão habilitadas a processá-los rapidamente, e na maior parte das vezes, razoavelmente bem.

        A Justiça é dita ser imparcial, com os soldados do ISIS sujeitos às mesmas punições que os civis.

        Segundo um anônimo muçulmano sunita, que não é extremista, confidenciou ao repórter Atwan que “agora não existe crime”, graças aos ‘métodos intransigentes dos extremistas e a sua ‘consistência’. As taxas chamadas zakat (um dos cinco pilares do Islã, em termos de obrigação religiosa) são coletadas e dadas aos pobres e às famílias deslocadas de outras partes da Síria, que montam a cerca de metade da população de  Manbij, nas cercanias de Alepo (sob controle do ISIS desde 2014)

         O informante de Atwan lhe disse que a gente vivendo sob a égide  do ISIS está de acordo com a sua política educacional, que se baseia em linha estritamente salafista ou ultra-ortodoxa na interpretação do Alcorão e a lei da sharia. Os professores voltaram a receber os seus salários, depois de meses de interrupção. Em muitos casos o currículo  nas escolas sauditas – especialmente em nível médio e ginasial – foi adotado por completo. Diversos temas são, no entanto, banidos, como o estudo da evolução das espécies na biologia. No entanto, apesar do reportado por partes da mídia, as meninas e moças não são privadas da educação. Já os dois gêneros têm educação em separado, havendo escolas e universidades  inteiramente dedicadas ao sexo feminino. Tampouco são proibidas de dirigir, como na Arábia Saudita.

            Os jihadistas do ISIS podem ser terroristas, mas são bem pagos e disciplinados. As atrocidades que cometem e que gravam na internet fazem parte de estratégia coerente: crucifixões, cabeças decepadas, o coração de vítimas de estupro retirado e colocado sobre o torax respectivo, homossexuais jogados de altos edifícios, cabeças cortadas empaladas em cercas ou brandidas por sorridentes crianças jihadistas – essas macabras imagens de brutal violência são apresentadas em pacotes de programas distribuídos pelo departamento da mídia do Estado Islâmico. O escopo é que sejam publicadas pela mídia mundial, e tanto melhor se acompanhadas de manchetes de primeira página...

              Não se trata apenas de orgia de sadismo. O terror do ISIS é política aplicada de forma sistemática. O conteúdo desta ‘literatura’ é sumarizado em panfleto – distribuído on-line sob o título – O Gerenciamento da Selvageria, de autoria de ideólogo da al Qaida Abu Bakr Naji.  Foi colocado na internet em 2004, muito citado pelos jihadistas, e é uma rationale para a violência e um plano para o Califado.

              A fonte desse panfleto está nos escritos de Taqi al-Din ibn Taymiyyah (1263-1328). Esse teólogo medieval inspirou o movimento Wahhabi, e é havido em alta conta por inspirar os governantes na prática da verdadeira religião.

               Naji, por sua vez, infelizmente não está mais entre nós. Foi morto por um ataque de drone, no Waziristan (terra inóspita que aparece no filme de David Lean, Lawrence da Arábia), em 2008. Ele considerava o conflito como estágio necessário no estabelecimento do Califado. Após a indispensável comparação com os trabalhos do Profeta, Naji encarava o próximo período de selvageria  como um tempo de “vexação e exaustão” quando “os superpoderes sofreram com a guerra de atrito pela ameaça constante dos jihadistas. Os Americanos “ já  alcançaram um estágio de efeminação que os inabilita a sustentar batalhas por um largo período de tempo.”

               O objetivo de Naji – na explicação de Atwan – “é induzir os Estados Unidos a abandonar a sua guerra contra o Islã por procuração e a guerra psicológica da mídia ... e forçá-los a lutar diretamente.”

               Segundo Atwan, ao contrário da proposta de Naji, o ISIS maximiza o impacto de sua estratégia do terror ao encorajar que cenas de violência e morte sejam mostradas em telas e celulares. A brutalidade, no entanto, é apenas um elemento  na corrente de imagens carregadas em sofisticadas fontes da mídia.

               O Estado Islâmico é também apresentado como lugar atraente que dá importância à gente, em que todos são ou  um ‘irmão’ ou uma ‘irmã’. Uma espécie de gíria, que junta adaptações ou reduções  de termos islâmicos com a linguagem da rua, está evoluindo em meio à fraternidade de língua inglesa nas plataformas da mídia social em tentativa de criar ‘um jihadi cool’.

                A idéia de um ‘restaurado Califado’ seria sonho de nostálgicos desde a abolição formal do Califado Otomano pelo General Mustafá Kemal, em 1924.

                Este apelo, promovido com cuidado por Baghdadi através da Internet e da mídia social seria o de um corpo transnacional que estaria acima das várias tribos ou comunidades que formam o mundo muçulmano. Segundo assinala Atwan, eles estariam fazendo progresso, com expressões de obediência (allegiance-em árabe, bayat) de lugares espalhados pelo mundo, como Nigéria, Paquistão e Yemen. Na Síria, o ISIS tem uma base, localizada em Sirte, a terra natal de Muammar Kaddafi.

                  O lance de maior efeito psicológico nos jihadistas é o sonho do martírio – tema que, espertamente, vem justaposto com imagens da serenidade doméstica. Assim, closes de faces sorridentes de lutadores mortos são amiúde postados na web, juntamente com a saudação do ISIS – o dedo indicador da mão direita apontando para o céu.

                   Pensando em espectadores mais jovens, já habituados à violência simulada na tevê e nos jogos de computador, o finado Naji aumenta a aposta, ao insistir que em missões suicidas os jihadistas deveriam usar “uma quantidade de explosivos que não só destrua o edifício... mas faça com que a terra o engula por completo. Assim procedendo, o tamanho do medo do inimigo é multiplicado e bons objetivos na mídia são alcançados.”  

                     A utilização de explosivos para fins tanto de propaganda, quanto militares pode ser comparada às táticas de “choque e terror” favorecidas por Donald Rumsfeld (secretário de defesa) e o general Colin Powell no ataque a Bagdá em 2003. Graças à fama on-line de ferozes jihadistas o medo inspirado nas tropas governamentais do Iraque e da Síria os levou a fugir, ao invés de esperar pela tropa inimiga e lutar.  

                      O terror que possa induzir o medo é também personalizado.  Naji recomenda que os refens cujos resgates não foram pagos devem ser “liquidados  na mais aterrorizante maneira, de modo a jogar medo nos corações do inimigo e dos seus apoiadores.” Cidadãos americanos – James Foley e Steven Sotloff – foram executados, e a sua morte era filmada, enquanto eles usavam os abrigos laranja dos prisioneiros da Baía de Guantanamo.  Segundo explica Atwan, a teatralidade on-line serve para legitimar o assassínio como um tipo de qisas (retaliação em espécie), que é uma das bem conhecidas punições na Lei Islâmica.

                        Quem cuida da distribuição na mídia foi o próprio departamento da mídia do ISIS, que é chefiado por Sírio-americano nascido na França e treinado em Massachusetts. Por outro lado, quem cuida do Departamento de Informação é outro sírio, Abu Muhammad al-Adnani al-Shami, que Atwan descreve como “a mais importante figura no Estado Islâmico, depois do Califa Ibrahim e de seus alternos.” Esse novo Goebbels do Estado Islâmico, além da inflamatória propaganda, inventou faz pouco a tática do ‘lobo solitário’ para os simpatizantes que vivam no Ocidente. Al-Shami, que não parece muito estrito quanto aos modelos escolhidos por seus ouvintes,  recomendou-lhes que matassem ‘cidadãos de países que aderiram a coalizão contra o Estado Islâmico’ da maneira que fosse mais fácil, como atropelando pessoas com veículos. À sua alocução se seguiu  uma sucessão de ataques tipo atropele e fuja no Canadá, França e Israel.

                           No Ocidente há um trabalho sustentado de remoção de itens que enaltecem a jihad.  Assim o Departamento de Estado retirou 45 mil itens pró-jihad da Internet. Já a Polícia metropolitana de Londres retira cerca de 1.100 por semana. Esses intentos, por bem intencionados que sejam, é tarefa ingrata, porque destinada ao malogro. Terão o mesmo ‘êxito’ que os esforços para abolir a fraude na internet.

                            Atwan, que visitou a área dominado pelo ISIS em fins de 2014, considera o número de soldados do Estado Islâmico bem acima  dos cem mil que são em geral citados pela mídia ocidental. Desses, trinta mil seriam estrangeiros (i.e., não-iraquianos e não-sírios). Pelo que possam valer, eis os percentuais, consoante o Instituto Washington: Líbios (21%), Tunisianos e Sauditas (16%), Jordanianos (11%), Egípcios (10%) e Libaneses (8%). Segundo Atwan, o número de voluntários Turcos foi subestimado, havendo cerca de dois mil turcos no ISIS.

                                  Por sua vez, os europeus são liderados pelas brigadas francesas (compostas por franceses e belgas de descendência norte-africana), com cerca de 6% do total, seguidos pelos ingleses com 4,5%.  A par disso, as autoridades australianas ‘ficaram chocadas ao saber’ que cerca de duzentos de seus co-nacionais  tinham entrado no ISIS “tornando esse país o maior exportador per capita de jihadistas estrangeiros”.

                                   Dado o sigilo que cerca esse tipo de informação, há dúvidas pelo menos quanto às fontes de financiamento do ISIS, conforme de resto assinalado no blog anterior sobre o ISIS. Segundo Atwan, a maior fonte de renda para o Exército Islâmico é o petróleo. Essa fonte, no entanto, foi prejudicada  pela reconquista em abril dos campos de Tikrit pelo Iraque.

                                   Como assinalado no capítulo anterior, os fundos do ISIS poderiam chegar até oito bilhões de dólares. Em se tratando de organização monstruosa e clandestina, é vã a tentativa de precisar os diversos valores movimentados pelas instâncias do ISIS. Dessa maneira, em janeiro de 2015, os recebimentos gerais  montaram a dois bilhões de dólares em todos os territórios controlados, com saldo de 250 milhões somados aos fundos acumulados.

                                     Os prejuízos causados pelos bombardeios aéreos americanos aos campos de petróleo da Síria em Deir el-Zor foram compensados pela conquista de Palmyra (Tadmor) que tem dois campos de gás natural, e uma mina de fosfato, que é a maior da Síria.  Sem falar das antiguidades vendidas para o mercado paralelo ilegal, os resgates, as taxas nas encruzilhadas, os roubos de bancos, e os ‘impostos’ cobrados dos estrangeiros a comerciantes que vivam em áreas dominadas pelo ISIS, há também a Jizia,  o imposto per capita pago por Judeus e Cristãos (existente no Império otomano até o século XIX) é hoje cobrada de não-muçulmanos, enquanto pilhagem e ‘bens de guerra’ (incluindo mulheres capturadas e escravos) podem sem distribuídos conforme prescrições corânicas.

                                      Ainda existe neste Estado pirata o valor dos bens de antigas civilizações, que é vendido enquanto possa ser alienado. Como no mais que concerne o ISIS, as limitações não são éticas, nem decorrentes de apreço (no caso inexistente) às obras de arte das civilizações antigas. O que for fungível, e se o preço for conveniente, o objeto de arte será alienado.

 

( Fonte: The New York Review of Books, nr. 12, 9 de julho de 2015, artigo de Malise Ruthven, ‘Dentro do Estado Islâmico’ ).          

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