quinta-feira, 7 de maio de 2015

Putin e o Direito Internacional Público


                             

         Em pleno século XXI, ocorre nítida regressão no Direito Internacional Público. Com a vitória dos Aliados sobre as potências do Eixo, foi criado novo arcabouço nas relações internacionais, sob a égide do sistema das Nações Unidas, e o controle do Conselho de Segurança, formado por cinco membros permanentes e dez não-permanentes.

         Se a guerra fria – surgida pouco após a vitória de 1945 sobre a Alemanha e o Japão – apontou para novo equilíbrio nas relações internacionais, equilíbrio pautado pela contraposição de Washington e Moscou, os eventuais conflitos foram sempre localizados  e de certa maneira administrados pelas duas superpotências.  A própria guerra da Coréia terminaria com cessar-fogo que até hoje perdura, entre Coréia do Sul e Coréia do Norte. Com eventuais exceções periféricas, em que espaços territoriais de pouco significado estratégico foram cedidos ao cabo de conflitos entre países menores. Nesse aspecto se deve mencionar a invasão de parte de Chipre pela Turquia e a consequente criação de república da comunidade turca em parte da Ilha, até hoje sem reconhecimento internacional. O outro foco de desavença – a inserção de Israel no Oriente Próximo – resultou na situação dependente da antiga Palestina, com a crise do Oriente Médio dela decorrente e que só será resolvida quando os direitos da comunidade palestina forem satisfatoriamente atendidos.

          Excluídas tais  mudanças – de resto não ratificadas pelo sistema das Nações Unidas – as relações internacionais, no seu aspecto de soberania territorial, se mantiveram estáveis até a dissolução da União Soviética, em 1992.

         Com o desaparecimento da URSS, houve um efêmero período de estados sucessores no que tange à antiga Superpotência comunista.  Tal sucessão, realizada a princípio, de forma consensual, levou a que a prerrogativa de membro permanente do Conselho de Segurança passasse para a Federação Russa. Na primeira fase da transição, e notadamente no governo de Boris Ieltsin,  Moscou se orientou por parâmetros democráticos, tanto no aspecto interno, quanto no externo. A única exceção a essa atitude foi a chamada guerra da Tchetchênia, uma pequena república de população na maioria muçulmana que buscou pelo recurso da guerrilha e do terrorismo alcançar a própria independência, o que lhe tem sido militarmente denegado pelo Kremlin.

         Quanto aos outros Estados sucessores da antiga URSS, a sua formação não foi obstaculizada por Moscou. Assim, tanto as nações formalmente independentes, mas contidas no espaço socialista da chamada Europa do Leste (Polônia, Hungria, Tcheco-Eslováquia, Alemanha Oriental, Bulgária e Romênia), elas ganharam a respectiva independência plena, e não mais se acham  subordinadas na esfera dita socialista.

         Por sua vez, as províncias bálticas da esfera da URSS lograram a própria independência (Lituânia, Letônia e Estônia). O mesmo ocorreu  com outros antigos domínios soviéticos (Bielo-Rússia, Ucrânia, Geórgia, Abkhazia, Moldávia, Azerbaijão, Armênia), assim como as antigas repúblicas asiáticas da URSS, ao sul da Sibéria e na Ásia (Kazaquistão, Kirgizistão, Uzbequistão, Tadjikistão e Daguestão).

          Pela postura inicialmente democrática do período assinalado pela presidência de Boris Ieltsin, com a exceção já referida da Tchetchênia, Moscou manteve bom relacionamento com o seu vastíssimo entorno. Nos largos espaços a oriente, o intercâmbio se desenvolveu a contento. O poder no Kremlin seria necessariamente o primus inter pares, mas a relação se estruturou de forma consensual e em termos do interesse mútuo.    

           Com o advento de Vladimir V. Putin, haveria substancial mudança na atitude do novo governo moscovita. Chamado para suceder ao enfermo Boris Ieltsin, pelo entorno e família do presidente e alguns oligarcas, como Boris Berezovskiy, Vladimir Putin,  então chefe do FSB, sucessor do KGB, sob a idéia de que Putin seria um bom administrador da massa falida, enquanto lhes resguardaria os seus muitos – e poucos deles confessáveis – interesses.

          Se o comitê informal que o escolheu tivesse examinado de maneira mais detida a sua atuação quando em São Petersburgo – em que formou o próprio grupo, colocou as bases da respectiva fortuna, e forneceu muitos indícios de qual seria o seu modus agendi, que incluía ligações informais com a mala vita – talvez esse comitê não o tivesse selecionado. Como o demonstra o primoroso estudo da professora Karen Dawisha[1] sobre a cleptocracia de Putin (origens, crescimento, e forma de atuação), os anos de formação, a sua trajetória no KGB (Dresden),  posteriormente na prefeitura de São Petersburgo, e a presença no Serviço Federal de Segurança (que ao cabo chefiaria) não o preparariam para a subalternidade. Chefe de um megagrupo em que a dita nomenclatura ligada ao KGB mantinha relações flexíveis com a máfia russa, a ingenuidade de parte do círculo de Ieltsin não tardaria em ser posta à nu, nos estágios sucessivos da ascensão de Putin como o seu próprio Amo e Senhor.

         A astúcia de Putin, tendo presentes os seus adversários, seja internamente, seja no exterior (e no Ocidente em particular) foi subestimada e mesmo alacremente ignorada pela maior parte deles.

        Com a sua formação como agente e posteriormente subchefe de seção no KGB, pensar que ele se empenharia em fortalecer a democracia na Rússia, não é um desculpável engano para quem o convoca para resguardar os interesses de grupo ameaçado pela doença e impopularidade do respectivo líder. Tampouco, um apparatchik da segurança soviética, somada à sua passagem pela corrupta prefeitura de  São Petersburgo não poderia ser considerado como alguém que possa ser teleguiado para interesses de outro grupo. Se se pode pretextar haver o grupo sido embaído pelas suas promessas nos ditos finalmente, quando o poder lhe é acenado, a falta de um elementar dever de casa, repassando o seu curriculum vitae, tornaria a ansiada maleabilidade uma ilusória florescência do verão nórdico.

         No plano interno, foi o que ocorreu. Já no plano externo, as suas intenções restauradoras do antigo poder soviético, não tardaram muito em repontar. Depois de um primeiro contato com o Presidente americano George W. Bush – que provocaria risos convulsos em observadores russos quando afirmou confiar em Vladimir só pelo fato de fitá-lo nos seus próprios olhos e, assim, inteirar-se de suas boas intenções. Mais tarde, o relacionamento sofreria pelo tratamento dispensado à Georgia (quando Moscou interveio em apoio à minoria de fala russa naquele país). Para tanto, gospodin Putin cuidou de relembrar o governo da Georgia que a sua autonomia em política externa era relativa, e poderia – como de fato ocorreu – determinar a formação de área ‘autônoma’, com fortes laços com o Kremlin. Mais tarde, a mesma capitis diminutio seria aplicada à Moldova, que teve de engolir a faixa da Transnistria ser-lhe retirada, dado o seu irresistível pendor por Moscou.

           Bush gastou muita retórica para combater tal imperialismo russo, mas teve de conscientizar-se que, dadas as distâncias (em seu desfavor) e as proximidades (em favor de seu ex-amigo Putin), tinha que ser realista, acomodar-se e ler um pouco mais sobre raison d’état. [2]

           Mais tarde, findaria a primeira presidência de Putin. Realizou então ele uma grande jogada, que lhe surtiu ótimos resultados, em termos de ilusionismo prático. Ao invés de concorrer pela presidência, fez eleger em 2008 como Presidente o seu fidelíssimo assessor (desde os tempos de São Petersburgo), Dmitriy Medvedev[3], enquanto Vladimir Putin se recolhia à posição de Primeiro Ministro. Na batida imagem do bom e do mau polícia, Medvedev se enquadra naquele policial sério e correto (good cop), enquanto Putin é o escarrado mau policial (bad cop).

           E não é que essa mágica jogada surtiu efeito? Esquecidas as desavenças com Bush – e a implantação do cinturão antimíssil que desagradava sobremodo a Moscou – as más lembranças das violências contra os pequenos vizinhos (Geórgia e Moldova) – a dupla do Kremlin, com maior realce para o simpático Medvedev, realizou magnífico trabalho de recuperação de imagem.

           Quando Vladimir Putin voltou a ser eleito presidente, em 2012, a sua posição internacional estava reforçada, e as relações com Barack Obama – e o Ocidente - em boa situação. Como se verifica, no primeiro mandato de Obama, ele teve como interlocutor principal a Medvedev, embora tenha mantido também contatos com o Primeiro Ministro Putin.

           Ao ser reeleito para o terceiro mandato, as relações com a Federação Russa se achavam em situação bastante favorável.  A Rússia participava do G-8 (o grupo de estados que reúne as principais democracias[4]). 

           No entanto, Viktor Yanukovich, o então presidente da Ucrânia, ao optar, em novembro de 2013, pela oferta de Putin de participação em zona de livre comércio, desencadearia corrente de acontecimentos que decerto não poderia prever. Forçado a  romper as negociações com Bruxelas por um acordo amplo de comércio com a União Européia, Yanukovich atrelava a Ucrânia à  Rússia.  Foi essa escolha que pareceu inaceitável para a maioria do povo ucraniano. Como não se desconhece,  o desagrado popular catalisou manifestações na Praça Maidan, no centro de Kiev.

           Trocar o sonho da união com a Europa Ocidental e a sua situação bastante superior em termos econômicos e culturais pela oferta de União aduaneira melhorada de parte do Kremlin – o que para a maioria do povo ucraniano cristalizaria o secular domínio da Rússia sobre a vizinha Ucrânia – lhe barrava acesso não só ao progresso e ao desenvolvimento do Ocidente, mas também o colocava na companhia de países como a Bielo-Rússia, e a própria Rússia. Vendo o progresso da vizinha Polônia em função de seu acordo com Bruxelas, e ansiando dele participar, para a população ucraniana, notadamente as da banda ocidental do país, semelhou insuportável e inaceitável para o povo da Ucrânia trocar esse progresso pela união aduaneira com Moscou.

              Dessarte,  em função das decorrentes demonstrações e da ocupação permanente da praça Maidan, no centro de Kiev, a escolha de Yanukovich foi fatal para ele.  Diante da vitória das manifestações – que revestiram, no seu último período, traços de  revolução de rua do século XIX – a exemplo das anteriores à vinda do Barão Haussmann e sua reurbanização da Cidade Luz,  que tornou inviáveis as revoluções de barricadas, eis que as vielas desapareceram diante de bulevares e grandes, largas avenidas.   

             Em 22 de fevereiro de 2014, Yanukovich foi deposto pelo Parlamento Ucraniano.  Abandonado às pressas o palácio, o ex-presidente deixou demasiados indícios da própria corrupção.

             Buscou refúgio na Rússia. E virada esta página da história ucraniana, não tardou em iniciar-se o acosso ao povo da Ucrânia, de início, através de movimentos ‘espontâneos’ de populares súbita e, no entanto, compreensivelmente, reminiscentes, de antigas frondas contrárias a Kiev, com o ressuscitar de efêmeras repúblicas nascidas nos choques da Primeira Grande Guerra (em que o pouco inteligente Tzar Nicolau II meteu o seu Império – e o perdeu – na Grande Guerra, por causa de ultimatum dirigido pela Áustria-Hungria à Sérvia, culpada de haver possibilitado a conjura que terminou com o assassínio do herdeiro do trono Francisco-Ferdinando).

            Mas o “castigo” que o Presidente de todas as Rússias,Vladimir Vladimirovich Putin resolveu aplicar a um país independente se afigura bastante maior, se passarmos em melancólica revista todas as vítimas dessa intervenção nua e crua, e marca sombrio, lamentável retrocesso  para o nascente século XXI.

            Se o princípio e o crime são os mesmos, de o que já sofreram a Geórgia e a Moldova, as consequências e os reflexos internacionais são incomparavelmente maiores no caso da Ucrânia. Basta olhar no mapa, para que se tenha noção da húbris de Putin em investir contra um país com a população, os recursos e a história da Ucrânia.

           É importante atentar para o significado desse brutal retrocesso nas relações internacionais. De forma impudente e arrogante, no que tem desconfortável semelhança com a postura de ditadores como Benito Mussolini e Adolf Hitler, que se julgavam acima da lei internacional, e só ‘respeitavam’ a força eventual do adversário. Poder-se-ía em sã mente afirmar que o senhor Putin difere de seus modelos?  Note-se que mandou montar uma ideologia eurasiana, com adendos bastante largos extraídos de doutrinas como a nacional-socialista com escopo decerto autoritarista, para dar sabe-se lá que fundamento para o seu novo estado.

           Putin errou feio ao desejar instrumentalizar a derrubada de um líder que é pró-Rússia, quando deveria ser pela própria condição pró-Ucrânia.

            Agir da forma como ele está agindo, mandando ‘voluntários’ russos para reforçar os contingentes dos ‘rebeldes’ que surgiram do nada, seja reivindicando a formação de entidades separatistas, seja – com armas modernas e poderosas, fornecidas pelo Estado russo – se associando a planos russos, para ulteriores anexações.

              A conquista da Crimea – por uma invasão sem qualquer outro motivo do que a afronta ao direito internacional e a tudo que a vitória aliada trouxe como símbolo do respeito ao direito das gentes e à  paz internacional – seria um acinte se não fosse um crime contra o direito internacional, a longa caminhada do homem pelo respeito aos acordos e ao consenso dos povos reunidos na Organização das Nações Unidas.

         Repetir, em pleno século XXI, com o sistema de direito internacional público de que decorre a Organização das Nações Unidas – que não é  capricho de vencedor, mas simboliza e implementa a prioridade da construção da paz, e o repúdio do bandoleirismo dos séculos XIX e até XX em que as agressões das chamadas grandes potências se justificavam pela força, prescindindo de tudo o mais. Era a política da Raison d’État levada ainda a ulteriores extremos, nas aventuras das ditaduras nazista e fascista.

           As Nações Unidas e o Ocidente não podem aceitar o que significaria o repúdio e o escárnio diante da norma jurídica e do direito fruto de milenar caminhada do homem, para substituí-lo pela força da horda, da violência, da bestialidade e de que supostamente o mais forte tudo pode.

           A violência como projeto é um beco sem saída. Os arrogantes, o Duce Benito Mussolini e o Fuhrer Adolf Hitler acabaram, um nas grades de Piazzale Loreto, e o outro, em mísero bunker, em suicídio de quem foge da própria responsabilidade, bombardeado de todas partes, e morrendo em meio à quase completa destruição do próprio povo que enganara repetida e tolamente com ódio, slogans  e promessas, que os exércitos inimigos reduziram a pó.

          A barbárie não cria. Poderá, no entanto, encontrar gente e até governantes que, por ignorância,  desconhecimento do direito e da própria Constituição que verbera o direito de conquista – sem falar no imorredouro patrimônio de nossa diplomacia – se associaram, para vergonha do próprio país e de seus maiores, a aprovar a conquista, o que vai em contra a todas as realizações de grandes homens como Rio Branco e Alexandre de Gusmão.

          Devemos, por isso, colocar no limbo internacional a Crimea. Conquistada pela força e por milícia que sequer portava uniforme – pois a vergonha a impede – é de esperar-se que tal apropriação indébita seja em breve desfeita, porque a vingança não é base para nada.  Ou será que ansiamos pelos bons selvagens de Jean-Jacques Rousseau, que só existiram nas efusões do romantismo?

          A comunidade internacional só poderá progredir se se desvencilhar dos que advogam como norma a entronização do crime contra o direito das gentes.

           Por causa de líderes como Vladimir Vladimirovich Putin o século XXI começa mal. Putin não é como o verberou Obama o líder de um poder regional. O retrocesso que causou no direito internacional é mais do que lamentável.

           O direito francês reservou em certo período de sua história a instituição do fora da lei. O indivíduo que na comunidade cometesse um grave crime, que afetasse a sociedade, era declarado fora da lei (hors la loi).  E a intenção do legislador no caso era clara: se determinada pessoa não trepida em cometer delitos que põem em perigo o próprio instituto da lei, tal pessoa só pode ser considerada como fora da lei.

 

(Fontes: Putin’s Kleptocracy, de Karen Dawisha; The Man without a Face, Masha Gessen; The Sleepwalkers, Christopher Clark; The New York Times; CNN)

 



[1] Putin’s Kleptocracy – Who owns Russia?, de Karen Dawisha, Simon & Schuster, New York, 2014, 445 pp.
[2] Doutrina sobre o poder do estado e suas eventuais limitações.
[3] A imagem de Medvedev nâo sofreu apesar da circunstância de ser um fidelíssimo auxiliar de Putin desde os tempos da prefeitura de São Petersburgo. E, no entanto... (ver a propósito K. Dawisha)
[4] Integravam-no os EUA, o Reino Unido, a França, a Alemanha, a Itália, o Japão, o Canadá e a Rússia. É também convidado o presidente da Comunidade Européia.

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