sexta-feira, 29 de maio de 2015

Dona Vanna e a Leonardo da Vinci


                                

         Conheci, como tantos outros da minha geração, a livraria Leonardo da Vinci nos anos cinquenta. Era época em que havia outras grandes livrarias, como a Civilização Brasileira, se não me engano na Sete de Setembro, a José Olympio e a Francisco Alves, na rua do Ouvidor, a Kosmos, na rua do Rosario.

          Se na Civilização, existia um segundo andar, com estantes repletas de livros franceses, na da Vinci, além de estantes com edições atualizadas de livros havia a presença de dona Vanna.

          Nos tempos de estudante, a vontade de conhecer e adentrar no mundo dos livros tem como polícia a magreza de fundos.

          Dona Vanna estava ali justamente para facilitar o acesso àquela em que, se não éramos amigos do rei, encontrávamos na cancela a sua presença. Com o seu sotaque característico, ela era uma espécie de super-ego, que nos poderia abrir a porta do paraíso.

         Para os jovens, colocava o limite do bom-senso. A sua generosidade se pautava pelas regras do mundo do possível. Tinha prazer em proporcionar-nos o acesso a estratos mais altos do conhecimento, desde que se tivesse alguma perspectiva de repor-lhe os fundos empenhados.

        Nesse contexto, recordo-me da minha encomenda da Correspondência de J.J.Rousseau, na edição organizada por Théophile Dufour, publicada em vinte volumes pela “Librairie Armand Colin”. Era uma ordem meio salgada, eis que o preço, ainda que não astronômico, já representava um avanço ponderável pela livreira.

        Como já me conhecia, a sua hesitação inicial logo se desfez, embora ela lançasse, ao final, como os partas, um resmungo: espero que V. tenha boa saúde...

        Refugiada da Europa, dona Vanna tinha a atitude de quem esteve na escola da adversidade, que se vestia de aparente aspereza, mas que na realidade entendia as limitações da bolsa dos jovens.

        Se a idade não lhe pregasse uma peça, tenho poucas dúvidas de que o desafio presente seria vencido. Mas a sua longa presença à testa da livraria, com o seu ethos de livreira – quem gosta e até ama ser transmissora do conhecimento – marcaria seja pela voz inconfundível, seja pela qualidade de não encarar o livro como bem material mas sim objeto transmissor de mensagens, uma postura que tinha prazer em dar, em proporcionar as viagens da leitura e da consulta, sem qualquer sentimento menos confessável de sua parte. Assim, não importa qual fosse o livro, a sua passagem ao leitor, para ela era um ganho, porque sabia quão importante é o livreiro na corrente do conhecimento.

        Na era cibernética, em que o paradigma de Gutenberg semelha sair de cena, me recordo do bom amigo Pedro Neves da Rocha, que a senhora conheceu tão bem como percuciente frequentador de suas estantes e mesas de exposição livresca, assim como comprador insaciável dos livros que nas suas salas descobria, ou encomendava por seu intermédio a livrarias europeias e americanas. Ele não dispensava sorver do conhaque que a senhora punha à disposição dos frequentadores. Por vezes, um trago pode aclarar as idéias...

         A  senhora me desculpe que não apareça na Livraria em que a frequência aumenta, na hora dos volumes vendidos sob o toque da retirada diante do desafio dos tempos novos. É um outro tipo de concurso que não me agrada. Pois nele não vejo a Livraria Leonardo da Vinci que conheci, jovem ainda.

         Não se esqueça, porém, minha cara dona Vanna, que a senhora construíu e moldou  grande, magnífica livraria, remanso de mais de uma geração de escritores, literatos e intelectuais, que em nela entrando viravam alunos seus, enquanto buscavam nas prateleiras e nas mesas as mensagens que se escondem atrás de tantas capas.

          A todos nos unia o desejo e a ilusão do saber – não importa se literário, artístico, histórico, sociológico, antropológico, bio-ético e o que mais essa alma errante do conhecimento inventar possa.

           Em meu modesto nome, no de tantos outros visitantes interessados no seu tão próprio mercado do saber, qualquer que ele seja, os meus parabéns pela realização deste maravilhoso sonho, que com a sua generosidade e inigualável saber livresco nos propiciou a todos sem exceção.

 

( Fonte:  O Globo )     

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