segunda-feira, 26 de junho de 2017

Obama, por que abandonaste Hillary?

                              
        Com o passar do tempo, a verdade vai aparecendo, como sói ocorrer. No entanto, essa tarda presença grita por Justiça, e se torna um cruel deboche quando o favorecido se atreve a atacar quem, por estranhos, quiçá insondáveis motivos, nada fez para impedir que o mal lograsse o próprio inconfessável propósito.
        Vladimir V. Putin pode ser um político desonesto - como o livro da professora universitária Karen Dawisha[1] o mostra com profusão de dados e indicações. Outra corajosa americana - Masha Gessen - escreveu obra sobre o presidente russo "O Homem sem Face" (que descreve o surgimento dessa figura em Leningrado)[2]. Assinale-se que essas duas mulheres - a segunda vive em New York e em Moscou - traçam retrato sem retoques desse antigo agente do KGB, que por operação realizada por expoentes do círculo do Presidente Boris Ieltsin, já então gravemente enfermo, fora cooptado para tornar-se espécie de salvador in extremis da clique do então presidente russo. Como os fatos ulteriores o demonstrariam amplamente, Vladimir Vladimirovich Putin era realmente um político capaz - na verdade, capaz de tudo - pois ele açambarcaria o esquema de Boris Ieltsin, livrando-se, de resto, do oligarca Boris Berezovsky,  que  o trouxera para encarregar-se da operação salvação do grupo do entorno de Ieltsin.
         Mas não é decerto o escopo deste artigo descrever a ascensão de Putin, e dos erros que cometeram aqueles que acreditaram - de resto, como a História tende a demonstrar com repetitiva ênfase em um sem número de casos - na possibilidade de manipular esse natural de Leningrado (hoje de novo São Petersburgo).
          O intúito é bem diverso. Fala-se muito no decline (declínio) dos Estados Unidos, e George Packer é um dos escritores que tem dado a atenção devida ao tema.  Existem diversos sintomas desse processo, com partes do interior americano esvaziadas, e tudo seria decorrência da estúpida empresa de George W. Bush, com seus bilhões de US dollars torrados na guerra contra Iraque e Saddam Hussein. Além de não descobrir o esconderijo das WMD (armas de destruição em massa), o que os artífices dessa expedição insana lograram foi dar início a processo que já acometera outras grandes potências no passado, como o Reich alemão[3].
        A menção ao eventual declínio estadunidense é introduzida com o fim de melhor entender a postura do presidente Barack H. Obama, e a sua alegada ojeriza a aventuras militares, conquanto haja permanecido por toda a sua presidência (2008 - 2016) a expedição no Afeganistão, além de outras operações militares de menor alcance.
        O que é decerto difícil de compreender foi o estranho modo com que o 44º presidente dos Estados Unidos reagiu às diversas indicações colhidas pelos seus serviços de segurança a princípio, da intenção de Vladimir Putin de intervir de alguma forma no processo eleitoral americano, ao ensejo da eleição presidencial de 2016.
       O rancor de Putin contra Hillary Clinton surgira há cinco anos atrás a propósito dos protestos anti-Kremlin na praça Bolotnaya. Segundo ele, a então Secretária de Estado teria dado o sinal para tais protestos. Esse antigo rancor contra a suposta intervenção da Chefe do Departamento de Estado alimentaria a raiva do presidente russo. A própria Hillary atribuiria a sua ordem de intervir na campanha presidencial americana ao "old beef" a que Putin ainda nutriria.
         Assinale-se que Putin detesta Obama, que aplicara sanções econômicas e financeiras a sua curriola , depois da anexação da Criméia e a invasão da Ucrânia oriental. Para a tevê estatal russa, q  ue gospodin Prezident domina por completo, Obama é descrito como "fraco", não-civilizado e um "eunuco". Para Putin, contudo, Hillary seria pior - a encarnação do traço liberal-intervencionista na política externa americana, mais "falcão" do que o próprio Obama, e um obstáculo para terminar as sanções e ao reestabelecimento da influência geopolítica russa.
           Ao mesmo tempo, Putin habilmente lisongeava Trump, que por sua vez era extremamente positivo nas suas asserções acerca da força de Putin e sua eficácia como líder. Em 2013, antes de visitar Moscou para o desfile de Miss Universo, Trump se perguntou, através do twitter, se ele "seria recebido por Putin" e "então se ele se  tornaria o meu novo melhor amigo?" Na campanha presidencial, Trump gostava de repetir que Putin era um líder superior, que havia tornado a Administração Obama um "motivo de risadas".
          Para quem estivesse interessado em medidas concretas, a era digital criara oportunidades que eram muito mais tentadoras do que, por exemplo, o que estaria disponível nos tempos de Andropov. Nesse sentido, tanto o Comitê Nacional Democrata quanto o Republicano ofereciam o que os expertos cibernéticos chamam de grande "superfície de ataque". No entanto, apesar de estarem conectados à política no seu mais alto nível, não dispunham das defesas rotineiramente oferecidas a instituições estatais que lidem com temas de alta sensitividade.
           Nesse sentido, John Podesta, que chefiava a campanha de Hillary e era antigo chefe do gabinete de Bill Clinton, dispunha de muito conhecimento acerca da frágil natureza das comunicações modernas. Como conselheiro sênior da Casa Branca de Obama, conhecia bem os requisitos da política digital. Mesmo com toda essa bagagem, não cuidou de utilizar o instrumento de defesa mais elementar, a verificação de dois graus, para a sua conta de e-mail.
          O  próprio Chefe reconhece que tanto a equipe do Comitê de Hillary, quanto Podesta esbajavam confiança no que escreviam ou clicavam. Recebeu até um e-mail de phishing  (que é fraudulento), originário supostamente do "time do Gmail", que lhe recomendava "mudar a sua senha imediatamente". O nível técnico era tão baixo que o encarregado assegurou "tratar-se de e-mail legítimo".
          A situação americana em termos políticos estava aberta para a chamada dezinformatsiya, que é informação falsa que visa a desacreditar a versão oficial dos eventos. Como os americanos, de acordo com o Centro Pew de pesquisa se achavam mais divididos em termos ideológicos num espaço de duas décadas, essa atmosfera favorecia  a criação de teorias de conspiração: lugar de nascimento de Obama - supostamente o Quênia; origens da mudança climática (fraude chinesa). É de notar-se que Trump, ao lançar a sua identidade política, promovia essas teorias.
              Um general da antiga KGB, Oleg Kalugin, que fugiu em 1995  para os Estados Unidos, acentua a circunstância de que as pessoas em sociedade livre têm as suas próprias opiniões. Segundo ele, é disso que as agências de inteligência procuram tirar vantagem.  Tal estratégia é mais vantajosa para a Rússia, que hoje é muito mais fraca do que a antiga URSS, para entrar em luta geopolítica com uma entidade muito mais forte.
             Em princípios de janeiro, duas semanas antes da posse, James Clapper, o diretor da Informação (Intelligence) nacional, em relatório ostensivo, afirmou que Putin havia ordenado campanha de informação para prejudicar as perspectivas de Hillary ser eleita, fortalecer Donald Trump  e "enfraquecer a fé pública no processo democrático americano"
             Os críticos desse relatório aludiram aos erros das agências de inteligência nos meses que precederam a guerra contra o Iraque, e endossaram avaliações errôneas sobre armas de destruição em massa. Nessa época, no entanto, havia muitas dúvidas sobre o grau de progresso do Iraque em termos de WMD. Tal não ocorreu agora, em que dezessete agências de inteligência concordaram em que a Rússia era responsável pelo hacking.       
             James Clapper, no seu testemunho para o Senado, descreveu um esforço russo sem precedente para interferir no processo eleitoral americano. Além do hacking de e-mails de Democratas, a sua divulgação do conteudo furtado através de WikiLeaks, e através da manipulação da mídia social para espalhar notícias falsas e mensagens em favor de Trump.
              Trump tentou apresentar as críticas ao hacking como "uma caça às feiticeiras". Por outro lado, Yevgenia Albats, autora do livro "Um Estado dentro do Estado", que é a respeito da KGB, disse que Putin provavelmente não acreditava na possibilidade de alterar os resultados da eleição, mas por causa de sua antipatia contra Obama e Hillary, ele fez o que pôde para ajudar a causa de Trump e minar a confiança americana no seu sistema político. Na respectiva intervenção, ele queria que ela reforçasse o seu poder de imiscuir-se nos assuntos americanos. Queria mostrar que, apesar de tudo, os russos podiam entrar na sua casa e fazer o que bem quisessem."

A  Incrível  Cautela  de Obama               
               No que pode ser interpretado como displicência da Administração Obama, Hillary só veio a saber da operação de hacking no começo do verão - nove meses depois que o F.B.I. contactasse o Comitê Nacional do Partido Democrata acerca da intrusão, e desde logo se mostrou relutante, alegando que não queria aparecer como agindo de forma muito forte (sic), pois temia aparecer como muito engajado.
              A série das fraquezas do círculo de Obama e do próprio Presidente começa aí. Na hora em que a candidata do Partido Democrata sofria um inaudito ataque do Presidente russo, nada foi feito de forma pública e ostensiva, como eram as afrontas de Putin.
             Aparecia por primeira vez uma atitude dúbia, fraca, que só pode assemelhar-se àquela do avestruz que enterra a cabeça na areia para fingir que não é com ele. Compreende-se, por conseguinte a amargura e a raiva do círculo da candidata presidencial.
              Um outro presidente - segundo um assessor sênior de Hillary  - teria ido para o gabinete oval e dito: 'Estou falando para vocês nesta noite para dizer que os Estados Unidos está sendo atacados. O Governo Russo no seu mais alto nível tenta influenciar o nosso bem mais precioso, nossa democracia, e eu não vou deixar isso acontecer.'  Segundo tal cenário, uma grande maioria de americanos teria assistido e tomado ciência. De acordo com minha opinião (a do assessor de Hillary) não temos o direito de colocar a culpa do resultado dessa eleição nos pés de ninguém, mas de certa forma gera perplexidade e é mesmo dificil de entender que não tenha soado o alarme máximo na Casa Branca.'
                O jogo de empurra dos assessores presidenciais mais próximos transmite claro desconforto, eis que fica a impressão de que o Presidente Obama não teve a coragem para contrapor-se de forma ostensiva àquela desfaçatez de  Putin, que passara para a afronta pública aos Estados Unidos e seu processo político.
                 Assim, parece chocha a advertência que Obama fez a Putin, em  cimeira do G-20, na China. Para Putin, o calejado agente do KGB, que Obama lhe tenha dito "acabe com isso", e "deixe de se intrometer com a eleição em novembro", senão haverá "sérias consequências".  É difícil saber se isso é timidez, que prefere uma ameaça cara a cara, mas sempre pessoal, do que a responder nos mesmos termos públicos que Vladimir Putin utilizara.
          O caráter ôco das respostas de Obama continuaria depois de Beijing.  Aumentando as evidências da intromissão russa, sob as ordens de Putin,  voltou-se a estudar uma retorsão séria  (informações negativas sobre autoridades russas, inclusive acerca de suas contas bancárias, ou operação cibernética que visasse Moscou). Lá estava, no entanto, o Secretário de Estado John Kerry que ponderou que tais planos poderiam sabotar os esforços diplomáticos para lograr que a Rússia cooperasse com o Ocidente na questão da Síria - tudo isso falharia a seu tempo.
    
          Causas da Vitória de Trump     
                 
            Decerto há outras causas para a derrota de Hillary Clinton. Como se fora uma orquestração inimiga, o Diretor do F.B.I., primo com a sua postura agressiva, quando na primeira apresentação perante a Câmara de Representantes, secondo, com a observação grosseira da alegada desordem nos papéis  do tal canal privado do computador de Hillary, terzo com o inesperado e ominoso anúncio de possíveis novas revelações vindas de outro computador, a do marido separado da Secretária de Hillary, Huma Abedin, feito - estranho acaso! - justamente na data da votação antecipada.
             Quando a expectativa de que alguma revelação surgiria  não se confirmou, o jogo irresponsável de Mr James Comey já tinha produzido  os seus resultados.  Influíu, pesadamente, no período de votação antecipada, e ao fim de contas, nada havia contra a pobre Hillary.
              Sem ser supersticioso, quem não pode duvidar que a deusa Fortuna tudo dispusera para reduzir artificialmente os votos para Hillary, seja na ousada, atrevida mesma intervenção da Rússia por um arrogante Putin, seja no estranhíssimo vedetismo do diretor do FBI, James Comey, máxime no anúncio estouvado de revelações no computador do ex-marido de H.Abedin, revelações que bastaram para influenciar contrariamente na votação antecipada (todas as infrações de Comey ficaram impunes, apesar de irem contra as regras do Departamento de Justiça, a que está subordinado o FBI), e por fim surge a figura ambígua de Barack Obama, que cuidaria de tornar chochas todas as questões que um pouco de energia e sobretudo de empenho certamente trariam mais firmeza e menos timidez para auxiliar a sua leal Secretária de Estado, que esperara talvez um dia obtivesse do cometa Obama que surgira em 2008 para negar-lhe a presidência, mostrasse em 2016 um pouco de esprit de corps, retribuindo com um mínimo de empenho para contrabalançar tantos imponderáveis que favoreceram o incrível candidato  de  Vladimir Putin, que hoje mostra o avesso de o que seria a administração de Hillary Clinton.


( Fontes: Karen Dawisha, Masha Gessen; The New Yorker (Evan Osnos, David Remnick e Joshua Yaffa); Oswald Spengler - Der Untergand des Abendlandes )        



[1] "Putin's Kleptocracy - who owns Russia", New York, Simon & Schuster, 2014.
[2] " The Man without a Face", London- New York, Riverhead Books, 2012.
[3] V. A Decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, em 2 volumes.

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