Junho foi
um mês que não me trouxe boas novas. Transcorridos
tantos anos, continuo a encará-lo com a desconfiança que reservamos às horas
ruins, que atravessamos todos, a quem os
deuses lá do alto costumam chamar de mortais.
A palavra é simples, e nós a gravamos na
tábua de cera da memória. Dizem que os eventos na infância, nós os marcamos no
córtex cerebral. Pelo menos, era assim que me diziam quando tais informações
chegavam até nós.
A
remembrança nós a podemos assemelhar
àquelas tábuas - na verdade, tabuletas (pínax)
- em que os antigos escreviam mensagens na cera espalhada sobre a madeira.
Toda a metáfora é transposição de o que
padecemos, fruímos ou assistimos. Como imagem do discurso, ela não tem função
que se diferencie por completo de o que vi na Atenas moderna. Se lá o caminhão
de mudanças é chamado de metafora, é
porque transporta móveis, utensílios e a bagagem de quem encomenda os seus
serviços para outros lugares.
Por sua vez, a metáfora gramatical constitui
outra espécie de transporte, pelo simples fato de o escritor se servir de
determinado sentido vocabular e aplicá-lo
em outro campo semiológico em que certos traços da ideia inicial estejam
preservados.
Para a criança que vem de longe e
chega à casa dos avós tangida pelas notícias ruins, não houve espaço mais longo
do que o piso de azulejos do vestíbulo da casa da Fernandes Vieira. À pesada
porta da entrada precedia um hall,
que antes sempre atravessara às carreiras.
Desta feita, não. Ouvia-se estranho
burburinho, que avançava sobre o jardim fronteiro, e dos vitrais das janelas se
entrevia a aglomeração e o tom sombrio dos sobretudos, casacos e vestidos que
se mexiam no que era a sala de visitas, e se transformara em visão horrenda da pesada
presença da morte.
Diante do negro abraço do abafado
ambiente, nessa atmosfera de longos, esbranquiçados círios, os sons que
formavam aquele tétrico burburinho carregavam tristezas várias, da vincada
fisionomia de minha avó, das transtornadas faces e do olhar fundo que consigo
trazia o imenso, raivoso sentimento de meu avô Romualdo, com o endurecido rosto
do paternal sofrimento, que por vezes se arrasta pela beleza hedionda do
esquife.
Assim, a sorte madrasta determinara a
minha entrada na orfandade. Lá dentro, em câmara adrede arranjada, minha mãe se
debatia. Como um tapete que bruscamente se arranca, sem aviso e sem propósito,
de esposa alegre e feliz, eis que a fatalidade a afasta de seus cuidados e
projetos. Baixa o luto, negro, pesado e horrendo, prenhe de todo o sofrimento que lhe traz a
memória do casamento feliz, enquanto vão baixando os vultos horríficos da
solidão, da partida da esperança, e da existência de repente desfigurada
pela tragédia e seu sinistro acompanhamento.
(Fonte:
Infantis memórias do enterro de meu pai,
José Raphael de Azeredo.)
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