Por quanto tempo ainda a elite
pensante no Brasil irá choramingar sobre a herança maldita da sofrida
colonização luso-ibérica?
O legado das
ordenações manuelinas e filipinas criou diversas ilusões no Brasil colonial. A
primeira delas estaria em que as determinações de el-Rei poderiam dispor sobre a realidade ambiente tanto cível
quanto comercial e penal de modo discursivo. Colocadas no papel teoricamente
pelo monarca, quase tudo o mais já estaria disposto. A sua adequação à
realidade colonial seria consequência natural do sentido verticalizante dessas disposições régias.
Trazidas pelas
naus e caravelas do soberano, a sua obediência como implicação imediata, como
real pressuposto que sequer entrava em consideração, eis que tanto a
obediência, como a latitude de seu emprego não deveriam ser objeto de qualquer
outra reação que a do súdito que não carece de interpretação ou qualquer outra
reação que hoje chamaríamos de pró-ativa.
Quanto mais
excessiva a submissão, menor a carga de pensamento que porventura busque melhor
entender e, por conseguinte, aplicar as noveis disposições de el-Rei.
Dada a
diferença hierárquica entre colônia e metrópole, e a falta de qualquer
participação do longínquo súdito real na ordenação do monarca reinante, a
possibilidade de inadequação do diploma real tenderia a crescer. A fortiori, atendida a deficiente
comunicação entre os baixos cortesãos encarregados dos domínios da Coroa, assim
como o caráter especial e mandatório da ordem recebida, é de supor-se que a
obediência presumida não implicasse em que o novel ditame de pronto se inserisse
necessariamente como alteração da(s) ordem(ns) preexistente(s).
A não ser nos
casos expressos em que a nova Lei derrogasse a precedente - o que os leais servidores
da Coroa se predispunham a fazer seria reservar as novas determinações o devido
lugar para consideração futura, o que decorreria da leitura e estudo pelos
comissários reais dessas ordenações, e
como deveriam ser vistas e adequadas dentro do quadro geral normativo da
colônia.
Dada a
disparidade hierárquica entre a Corte distante e os recipiendários da
repartição colonial, tal exame deveria ser procedido com a atenção e os cuidados
pressupostos no caso, assim como consoante as normas consuetudinárias que
presidiam à recepção, estudo e análise, a que se seguiria, se não houvesse
dúvidas quanto à inserção da norma nova nas normas precedentes, já fruindo de antigas
avaliações, e o que talvez pesaria com mais força na hierarquia colonial, a
aplicação prévia e difundida das determinações anteriores.
Se tivermos
presente os tempos de comunicação na colônia, e a não descartável sempre
possível existência de temidas contradições na interpretação da nova ordem
diante da antiga, assim como na sua eventual aplicação sem dúvidas e
discrepâncias, não se poderia excluir que as instâncias da real administração
colonial tenderiam em muitos casos a encarar com mais favor o que el-Rei antes determinara, se cotejado
com as novíssimas ordens para os negócios coloniais.
Não é ocioso,
portanto, presumir que em certo número de determinações reais, haveria de parte
de seus leais empregados a inclinação por optar pelo já provado em termos de
usos e usanças, sobretudo se houvesse discrepâncias maiores entre ambas. O
natural conservadorismo na colônia entre o novo, com ignotas consequências e
aquele já provado pela aplicação, tenderia a levar a administração colonial à posição,
em casos de menor urgência, a manter a escolha antiga. Em tais circunstâncias,
o favorecimento da norma precedente se apresenta como decorrência natural, e
pode até ser visto como no interesse de el-Rei, evitando que um novo moço de
escrivaninha possa vir a introduzir novéis e discutíveis normas, cujas
consequências se afigurariam imprevisíveis.
Dessarte, o conservadorismo da administração colonial
pode ser havido como a posição predileta desses leais súditos de el-Rei. A par
da prudência administrativa, que preza mais o já provado manejável, diante dos
riscos (de qualquer natureza) porventura colocados por nova e não-provada determinação, perpassa em
toda burocracia colonial a preocupação com a eventual reação de seu próximo público
na colônia. Não há de esquecer-se, outrossim, dada a relação umbilical com o
soberano, para resguardar a respectiva sobrevivência burocrática, os
respectivos encarregados dirigentes terão igualmente o cuidado maior de
preservar os interesses de el-Rei, e
nesse sentido não é incomum que possam vir a ser mais realistas do que Sua
Majestade.
E essa
inquietude deve ser entendida como vetor relevante na questão ora submetida. A
aparente resistência da administração colonial nada tem de insurrecional.
Constitui apenas a reação natural de uma elite burocrática que, ao considerar a
possibilidade de má reação dos suditos da colônia, adota postura que, em
parecendo discrepar da determinação de el-Rei, está na verdade cerrando
fileiras pela norma antiga e já provada como não-suscetível de induzir reações
adversas ao Soberano na colônia. Em assim agindo, protegem duas situações: a
própria, que seria ameaçada pela nova ordem, e, por conseguinte, a dos
interesses da Coroa.
Tudo isso explica, por conseguinte, não só a prevalência do conservadorismo, mas
também a paralela resistência administrativa ao novo, e a consequente menor inserção das ordenações reais na
realidade colonial, dada a preferência pela posição conservadora e, portanto,
necessariamente apartada da realidade colonial.
(a continuar)
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