quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Brasil: corrupção e burocracia (II)


                                

         No Brasil colonial, a manopla da Coroa teria sempre presente a ameaça do entorno - vale dizer, sobretudo o poder dito incontrastável das grandes potências contemporâneas. Para contra-arrestar tal desafio, el-Rey e seus leais servidores, conscientes da fraqueza da Coroa, apelavam para o controle do conhecimento (como nos séculos iniciais da vida da colônia conferiam aos mapas a condição de segredos de estado), a inteligência estratégica, através da correta colocação dos fortes, assim como das administrações das províncias e vice-reinados, da preservação dos segredos da navegação,  aqueles relativos à entrada na bacia amazônica através de sua maior artéria.

        Não eram segredos de Polichinelo - como a leitura desse grande historiador da Colônia que foi Jaime Cortesão, com série de obras fundamentais que deveriam não estar encafuadas em salas e bibliotecas oficiais, e sim serem objeto de campanha de divulgação para dissipar mitos e descerrar cortinas acerca de nossa história colonial - mas sim verdadeiramente de estado, eis que deles dependiam o império do pequenino reino de Portugal, diante dos ávidos colossos da época.

       Se conhecimento é poder, como nos ensina Francis Bacon[1], ele será indispensável para os reinos, mormente aqueles como Portugal, que dominavam largos espaços em vastos oceanos, expostos às ávidas vistas de grandes dominações, que dispunham de capacidade bélica muito além daquela do pequeno reino debruçado sobre o Atlântico.    

      O bem haja de el-rei de Portugal seria demonstrado pelo seu controle de espaços tamanhos, espalhados por um globo terrestre que as suas naus e caravelas cuidaram de alongar ainda além da Taprobana [2].

       Cortesão nos mostra a relevância das velhas cartas que eram guardadas nos arquivos reais com o cuidado e a severidade hoje reservada aos armamentos e instrumentos da guerra moderna. Não eram tampouco tolos segredos de Polichinelo aqueles que tolhiam o acesso às grandes bacias hidrográficas, como a amazônica.

       Além da colocação de fortalezas e fortins, situados em locais que não desvendassem a solução do acesso àquilo que se destinavam a proteger, mas que já representariam obstáculos sérios à fácil coleção de informes, o enigma nas cartas podia acarretar aos mais afoitos desastrosos encalhes que, na prática, ganhavam precioso tempo para a consolidação da dominação de imenso espaço.  

        Com base demográfica tão estreita quanto a lusa, e lutando com a escassez de recursos - sobretudo humanos - pode intuir-se a angústia sentida pelo quinhentista D. João III, a quem muito preocupava a extensão dos próprios domínios, e a estreita base do povo lusitano para prover meios na manutenção de terras que se estendiam das Molucas até os rincões do Brasil, através do sistema das capitanias hereditárias, em que os colonizadores primevos, como caranguejos, mal arranhavam a imensidão de um ignoto interior, que se deixaria para as entradas e bandeiras nos séculos futuros.

         Outra coisa que a História nos ensina é que na colonização e na abertura das imensidões interioranas, a figura mais apropriada será a do trabalho ingente e pertinaz da pequena, minúscula formiga, e não a das grandes revoluções que a súbita aparição na silente monotonia do firmamento, em que o mudo cintilar das estrelas se vê por alguns cósmicos instantes meio que enevoado pela majestosa trajetória de algum longínquo cometa, que a turba multa teme, e os poucos padres matemáticos saúdam.

        Serendipity é palavra inglesa que os portugueses e os colonos brasileiros, sem conhecê-la, a tornaram na prática realidade, por meios das entradas e bandeiras, muitas delas saídas da então mofina Paulicéia. Movidos pela cobiça das peças preciosas, aquelas cuja riqueza prometida os homens enlouquece, e por mitos que algum gênio indefinido plantou no sertão inacessível, as bandeiras principiaram a palmilhar as paragens e as densas, cruéis, cruentas florestas, virgens de homens brancos e pardos, mas enxameadas por tribos selvagens.

         Assim o bandeirante rasgaria o nosso interior, rindo-se sem sabê-lo das estultas disposições do Tratado de Tordesilhas, e com a conjunção da Coroa e dos padres matemáticos, e a audácia da bandeira - e de célebres entradas como a de Pedro Teixeira, que sacudiria a centenária placidez de San Francisco de Quito, e faria coléricas as impotentes autoridades da longínqua Corte de dom Felipe IV - trabalhavam em alargar os confins das terras que então reivindicaria D. João IV.

         Como o seu longínquo antepassado que se amofinava com os hercúleos desafios que o pequeno Portugal tinha pela frente,  agora o novo rei tratava de compor-se com o vizinho  hostil e mais ao norte a ameaça dos Países Baixos, cujas ávidas garras sobre o fértil Nordeste  incumbia tentar afastar.

         No século XVIII, tanto o anônimo trabalho quanto as célebres expedições culminariam com o incoato desenho de uma realidade que ainda alguém com ciência e poder conseguiria implantar, através dos cartógrafos, esses silenciosos obreiras de trabalhos que não de Hércules, mas que diante deles crescem pela mágica conjunção de amorfa realidade no terreno, de títulos e cartas grafados ao longo de décadas - os quais encerram a maravilhosa expressão de um trabalho tão mudo quanto ingente - até que apareça um moço de escrivaninha de el-Rei D. JoãoV e, que congregando a experiência, a ousadia, o saber de um mudo exército de sábios, logre desenhar a lídima expressão de um sonho nacional, que as cartas e a douta, hábil e pertinaz negociação irá transformar em jóia da nacionalidade, a saber a obra imortal de Alexandre de Gusmão, o grande precursor da nascente diplomacia brasileira.  

  

( Fontes: Luis de Camões, Jaime Cortesão )




[1] F. Bacon, filósofo (1561-1626)
[2] Luiz de Camões, Lusiadas, I,4.

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