No Brasil
colonial, a manopla da Coroa teria sempre presente a ameaça do entorno - vale
dizer, sobretudo o poder dito incontrastável das grandes potências
contemporâneas. Para contra-arrestar tal desafio, el-Rey e seus leais servidores, conscientes da fraqueza da Coroa,
apelavam para o controle do conhecimento (como nos séculos iniciais da vida da
colônia conferiam aos mapas a condição de segredos de estado), a inteligência
estratégica, através da correta colocação dos fortes, assim como das
administrações das províncias e vice-reinados, da preservação dos segredos da
navegação, aqueles relativos à entrada
na bacia amazônica através de sua maior artéria.
Não eram
segredos de Polichinelo - como a leitura desse grande historiador da Colônia
que foi Jaime Cortesão, com série de obras fundamentais que deveriam
não estar encafuadas em salas e bibliotecas oficiais, e sim serem objeto de
campanha de divulgação para dissipar mitos e descerrar cortinas acerca de nossa
história colonial - mas sim verdadeiramente de estado, eis que deles dependiam
o império do pequenino reino de Portugal, diante dos ávidos colossos da época.
Se conhecimento é poder, como nos ensina
Francis Bacon[1], ele será indispensável
para os reinos, mormente aqueles como Portugal, que dominavam largos espaços em
vastos oceanos, expostos às ávidas vistas de grandes dominações, que dispunham
de capacidade bélica muito além daquela do pequeno reino debruçado sobre o
Atlântico.
O bem haja de el-rei de Portugal
seria demonstrado pelo seu controle de espaços tamanhos, espalhados por um
globo terrestre que as suas naus e caravelas cuidaram de alongar ainda além da Taprobana [2].
Cortesão nos
mostra a relevância das velhas cartas que eram guardadas nos arquivos reais com
o cuidado e a severidade hoje reservada aos armamentos e instrumentos da guerra
moderna. Não eram tampouco tolos segredos de Polichinelo aqueles que tolhiam o
acesso às grandes bacias hidrográficas, como a amazônica.
Além da
colocação de fortalezas e fortins, situados em locais que não desvendassem a
solução do acesso àquilo que se destinavam a proteger, mas que já
representariam obstáculos sérios à fácil coleção de informes, o enigma nas
cartas podia acarretar aos mais afoitos desastrosos encalhes que, na prática,
ganhavam precioso tempo para a consolidação da dominação de imenso espaço.
Com base
demográfica tão estreita quanto a lusa, e lutando com a escassez de recursos -
sobretudo humanos - pode intuir-se a angústia sentida pelo quinhentista D. João
III, a quem muito preocupava a extensão dos próprios domínios, e a estreita
base do povo lusitano para prover meios na manutenção de terras que se
estendiam das Molucas até os rincões do Brasil, através do sistema das
capitanias hereditárias, em que os colonizadores primevos, como caranguejos,
mal arranhavam a imensidão de um ignoto interior, que se deixaria para as
entradas e bandeiras nos séculos futuros.
Outra coisa
que a História nos ensina é que na colonização e na abertura das imensidões
interioranas, a figura mais apropriada será a do trabalho ingente e pertinaz da
pequena, minúscula formiga, e não a das grandes revoluções que a súbita
aparição na silente monotonia do firmamento, em que o mudo cintilar das
estrelas se vê por alguns cósmicos instantes meio que enevoado pela majestosa
trajetória de algum longínquo cometa, que a turba
multa teme, e os poucos padres matemáticos saúdam.
Serendipity é
palavra inglesa que os portugueses e os colonos brasileiros, sem conhecê-la, a
tornaram na prática realidade, por meios das entradas e bandeiras, muitas delas
saídas da então mofina Paulicéia. Movidos pela cobiça das peças preciosas,
aquelas cuja riqueza prometida os homens enlouquece, e por mitos que algum
gênio indefinido plantou no sertão inacessível, as bandeiras principiaram a
palmilhar as paragens e as densas, cruéis, cruentas florestas, virgens de
homens brancos e pardos, mas enxameadas por tribos selvagens.
Assim o
bandeirante rasgaria o nosso interior, rindo-se sem sabê-lo das estultas
disposições do Tratado de Tordesilhas, e com a conjunção da Coroa e dos padres
matemáticos, e a audácia da bandeira - e de célebres entradas como a de Pedro
Teixeira, que sacudiria a centenária placidez de San Francisco de Quito, e
faria coléricas as impotentes autoridades da longínqua Corte de dom Felipe IV -
trabalhavam em alargar os confins das terras que então reivindicaria D. João
IV.
Como o seu
longínquo antepassado que se amofinava com os hercúleos desafios que o pequeno
Portugal tinha pela frente, agora o novo
rei tratava de compor-se com o vizinho
hostil e mais ao norte a ameaça dos Países Baixos, cujas ávidas garras
sobre o fértil Nordeste incumbia tentar
afastar.
No século
XVIII, tanto o anônimo trabalho quanto as célebres expedições culminariam com o
incoato desenho de uma realidade que ainda alguém com ciência e poder
conseguiria implantar, através dos cartógrafos, esses silenciosos obreiras de
trabalhos que não de Hércules, mas que diante deles crescem pela mágica
conjunção de amorfa realidade no terreno, de títulos e cartas grafados ao longo
de décadas - os quais encerram a maravilhosa expressão de um trabalho tão mudo
quanto ingente - até que apareça um moço de escrivaninha de el-Rei D. JoãoV e,
que congregando a experiência, a ousadia, o saber de um mudo exército de
sábios, logre desenhar a lídima expressão de um sonho nacional, que as cartas e
a douta, hábil e pertinaz negociação irá transformar em jóia da nacionalidade,
a saber a obra imortal de Alexandre de Gusmão, o grande precursor da nascente
diplomacia brasileira.
( Fontes: Luis de
Camões, Jaime Cortesão )
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