quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Brasil: Corrupção e Burocracia (III)


                             

         Pero Vaz de Caminha, o escrivão da armada, que aqui veio oficialmente 'descobrir' a Terra da Santa Cruz, está associado à descoberta do Brasil pela sua famosa carta a el-Rey Dom Manuel, dito o Venturoso, para comunicar-lhe o ditoso evento de sua descoberta. Há outra circunstância nessa célebre correspondência, que é solicitação especial à sua Majestade real.

         O ledo evento da esquadra comandada por Pedro Álvares Cabral justificaria, no entender do escrivão, o particular pedido feito por um parente seu ao soberano português. Talvez a circunstância de servir por terceira vez na corte de el-Rey, desse a Caminha a motivação necessária.  De qualquer forma, a inusitada e oportunista inserção na epístola constitui o primeiro exemplo de tráfico de influência ao ensejo do surgimento da novel colônia da Coroa lusitana.

         Portugal, debruçado que estava sobre o Atlântico já se tornara uma potência naval graças ao Infante dom Henrique no século XV. A circumnavegação da África fora encetada e com esta o caminho das Índias. As especiarias abriam nova rota de comércio, enquanto condenavam outra.

         O grande problema da Coroa lusa estava em garantir as rotas, diante da cobiça das potências maiores. Os segredos dos velhos mapas não eram fruto do acaso, mas de longas porfias em mares cruéis, e de meticulosas anotações. Por isso, os seus riscos seriam guardados a sete chaves, e sobre eventuais indiscrições ou cousa pior caíam penas com a severidade que hoje protege os códigos de comunicação. As velhas cartas náuticas valiam o seu peso em ouro, não só pelas fainas e sacrifícios de que seus desenhos eram a marca, mas também pelos perigos que a sua tradição para outras mãos traria consigo.

         Por tudo isso, e os grandes empenhos e desafios que rondavam as naus e caravelas de el-Rey, as cartas era mister defender com a própria vida.

        Sozinho em seu gabinete, D. João III, já no século XVI, escrevia de suas angústias, face aos parcos recursos daquele balcão de terra, cercado por quase todos os lados, pelos domínios de Espanha, e os maus ventos que o provérbio lhe atribuía. El-Rey se amofinava perante os desafios que sentia maiores que a capacidade e sobretudo o número da própria gente, a que o Infante dom Henrique, pelo estudo, as informações e os desenhos traçara na Escola de Sagres as rotas de África e quiçá além.

        Suas naves, em chegando até as Molucas, pela extensão dos caminhos sobre que pairam brisas inconstantes, feros vendavais e a exasperante pasmaceira das calmarias, alternando-se em jogos tão fementidos quão imprevistos, arrostavam outra sorte de perigos, que cercavam as vias mais estreitas e próximas dos entrepostos. Ali, como se elas fossem caça já cansada por provações e sobretudo a escassez das provisões, atravessavam angustas sendas, nos ares o pérfido perigo das letais investidas de gente ignota, saída não se sabe de onde, tangida pela fome e a cobiça.

         As más novas mais tardavam do que as boas, porque estas tornavam com alegria e saúde; aquelas, quando muito, vinham enroladas em papéis manchados e as vazias contagens da boa gente perdida, nas refregas, borrascas e redemoinhos que a má-sorte trazia. E el-Rey funda sentia a ironia dos parcos recursos de que dispunha a brava gente, partindo para longas e traiçoeiras expedições, enquanto nas vilas e povoados escasseavam os braços.

          Por isso, sob as pesadas vistas das ávidas potências, a que desagradava o estro e a ardida coragem da lusa gente que

          "por mares nunca de antes navegados,

           passaram inda além da Taprobana"[1]

          continua a magna prova, a que se junta ingente provação, e o resoluto, ardido destemor.

           Soa talvez a grande e bela hora do pequeno, mas valeroso reino. Dada a extensão da Terra da Santa Cruz, a que mais tarde o pau brasil o nome mudaria, se faziam mister obras de engenharia, com a localização de fortes e fortins, para defender contra a cobiça alienígena, o acesso ao longo litoral, com suas praias e a mata atlântica, verde e densa, mas prenhe de indígenas ferozes, como já o provaram pobres náufragos, que os arrecifes da costa terão colhido nas suas pérfidas, cortantes malhas.

          Cresce a cobiça das potências maiores. Ao norte cumpre proteger de naus intrusas o Amazonas, com o seu caudaloso rio, as florestas indevassáveis e a promessa de grandes farturas. Ali se colocam fortes destinados a defender a imensa bacia, sem desvendar-lhes o acesso.

         Em vão, a princípio, as naves estrangeiras tentam adentrar a pujante corrente, mas, por muito, os acessos traiçoeiros e as falsas rotas fazem encalhar as avaras naves dos emboabas.

         Será mais tarde que Pedro Teixeira surgirá como magno sertanista, e logrará com sua brava expedição a grande travessia do inferno verde chegando, para horror e surpresa de seus habitantes à plácida San Francisco de Quito, depois de cruzar a densa mata do Oriente equatoriano. Chegada a notícia a Madri, a revolta da Academia das Indias Espanholas, diante da audácia do luso-brasileiro, reclamaria em vão por medidas e castigos, que a nova separação ibérica tornaria irrelevantes.

        Mais ao sul, da vila de São Paulo e o curso do Tietê avançaria uma corrente humana, com as suas bandeiras em busca de pedras preciosas. Tais incursões pelos sertões não se cingiam decerto a tal. Muitas adentravam em outras missões, como para trazer indígenas.

         Os bandeirantes alargariam os espaços do brasileiro, chegando mesmo a penetrar em áreas já habitadas pelo castelhano, muita vez trazendo o medo e até o terror pelas temidas incursões de o que surgia vindo do leste quase como piratas da terra firme.

         Além das entradas, que eram expedições oficiais, as bandeiras, em geral partindo da vila de São Paulo, buscavam escopos comerciais, embora fosse um tanto lata a interpretação que davam ao termo os calejados bandeirantes.

          Por vezes, acompanhavam as bandeiras os chamados padres matemáticos, que marcavam as posições cartográficas em suas anotações, o que seria de grande serventia para que fossem preparadas cartas atualizadas dos avanços da gente paulista, e dos eventuais povoados que surgissem por força de tais penetrações.

           Na primeira metade do século XVIII, o moço de escrivaninha de D. Joâo V, o brasileiro Alexandre de Gusmão coordenaria à distância tais atividades. Viria ao Brasil, apesar da dificuldade na travessia e aos encargos que tinha como auxiliar direto de el-Rey,  para coordenar as eventuais missões, tendo muito presentes os trabalhos cartográficos, eis que a eventualidade de negociações com o Rei de Espanha sobre a divisão do continente já pairavam como perspectivas.

           Toda a sua existência em Portugal serviria como prólogo e ocasião para a coleta de dados, das indispensáveis cartas e das informações próprias para a negociação. O empenho do secretário de el-Rey será descrito na obra de Jaime Cortesão, através da paciente e minudente coleta de pormenores e informes, de maneira a constituir sólida base de conhecimentos topográficos e corográficos, com os elementos necessários para fundamentar as reivindicações portuguesas nas negociações de que o Senhor Gusmão seria o provedor oculto dos negociadores portugueses. Preparando, com a necessária minúcia, as  instruções aos embaixadores de el-Rey,  Gusmão seria na verdade, pelo próprio conhecimento e cultura, o principal responsável pela posição defendida pelos enviados de D. João V.  Dada a sua erudição, a profusão de cartas e os demais informes que enviava, em pormenorizadas instruções aos representantes de el-Rey na negociação com Castela,  Alexandre de Gusmão mereceria, à distância, o respeito e a admiração do plenipotenciário espanhol, Lencastre.

           O Tratado de Madri, apesar de sua curta existência, dada a superveniência de D. José e sobretudo do Marquês de Pombal, teria forte influência sobre o sucessivo traçado das fronteiras. Quanto à Colônia do Sacramento, a secular luta de Portugal por uma presença na Banda Oriental, seria objeto de uma troca de territórios.

           Através do grande precursor da diplomacia brasileiro, Alexandre de Gusmão, e dos diplomatas do Império que culminariam no Barão do Rio Branco, os limites do Império do Brasil e depois da República, seriam confirmados por negociações  e nos casos mais anosos, através das questões de limites com a Argentina e a França, e os respectivos laudos arbitrais com os triunfos do Barão do Rio Branco, e sua consequente glória. A trajetória que culminaria com o nosso Patrono é a prova da validez perene da diplomacia brasileira, que nunca confundiu a perenidade do Estado com o temporário da política, como seria o hábito de nossos vizinhos.

( Fontes: Obras de Jaime Cortesão, Enciclopédia Delta-Larousse, Rio Branco , de Alvaro Lins. )                                 

Nota Aditiva.
         Como o leitor não deixará de notar, embora não sejam textos iguais, os blogs Brasil (II) e (III)
são em certos trechos coincidentes. Pelo fato de serem também complementares, pareceu ao responsável que seria mais apropriado - com o risco de algumas repetições - editá-los a ambos.
Os textos, como se verifica, partem de premissas similares, mas por vezes se servem de argumentos diversos. Foi com esse intuito do enriquecimento eventual da matéria que foi considerado preferível mantê-los, ao invés da alternativa condensação.

[1] Lusíadas, L.de Camões, canto 1°, I.

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