Milhares de manifestantes - segundo os organizadores do evento, cerca de
oito-centos mil - saíram às ruas estreitas e tortuosas de Hong Kong, a oito de
dezembro, para participarem de uma das maiores manifestações das últimas
semanas, que coincide com os seis meses do início dos protestos antigoverno - a
princípio da então novel governa-dora Carrie
Lam e seu mal-avisado apoio a projeto de lei que buscara instituir a extradição
para a China Continental.
De
acordo com a Frente Cívica para os Direitos Humanos, que se ocupou da
organização do evento - cerca de oitocentas mil pessoas compareceram.
A
mobilização teve apoio nos resultados das últimas eleições regionais, há duas
semanas, quando o parlamento local foi eleito com maioria de candidatos pro-democracia,
aplicando pesado revés à habitual hegemonia da RPC. Pautas como a brutalidade
da polícia e a demanda pelo sufrágio universal foram defendidas pelos
manifestantes, em ato que se caracterizou como majoritáriamente pacífico.
Outro aspecto inédito está em que a autorização para a manifestação haja
sido concedida pela Polícia, e válida para toda a Ilha, algo que não sucedia
desde agosto passado. Dessarte, pautas
como a brutalidade policial e a demanda pelo sufrágio universal foram
defendidas pelos manifestantes, em ato que se assinalou por majoritariamente
pacífico.
O que, de resto, sublinha tal caráter em que se desenrolou a colossal
passeata foi a circuns-tância de que somente duas facas e uma pistola foram apreendidas,
e onze pessoas foram detidas.
Dentro de uma perspectiva em que a ex-colônia britânica era vista por
muitos observadores como mergulhada em sua pior crise desde a sua devolução
para a China, em 1997, e o território é palco de manifestações desde junho
último, com frequências quase diárias, para reivindicar reformas democráticas,
assim como investigação imparcial da atuação da polícia durantes os protestos.
No entanto, sem fáceis otimismos, se lográssemos deter o relógio do
tempo, se veria uma atmosfera de menos confrontação, e de maior compreensão,
ainda que com doses substanciais de boa vontade. E a existência dessa atitude
reflete pluralidade de fatores. Primo,
o glamour, se assim pudéssemos
chamá-lo, de manifestação em que a ênfase não está na violência, e sim na
reivindicação dos próprios direitos. Secondo,
o sucesso mundial e a consequente maior repercussão dessas gigan-tescas
passeatas, que com o passar do tempo revelam entre suas marcas as frases
inteligentes - que correm mundo à fora - e que, apartando-se da violência,
assinalam a originalidade e a respectiva
beleza no gesto, eis que o traço da habilidade embeleza as reivindicações, e,
por conseguinte, as torna mais palatáveis e, também, mais difíceis de serem
rejeitadas com o bate-pronto das negações maquinais. Não se deva, de resto
esquecer, que a beleza e a originalidade dos slogans e das palavras-de-ordem, vem a conferir-lhes
características que participam da inteligência do povo cosmopolita de Hong
Kong, e a que as invisíveis aduanas desse mundo,
vasto mundo, estejam prontos a acolhê-las nos seus mercados da notícia, com
as pressurosas atenções que se reservam à inteligência e à veia artistica e
cultural no ultramar da inteligência e originalidade.
É difícil contornar a realidade e,
sobretudo, a eficácia dessa inteligência, máxime quando se defende as verdades
da democracia - exclusão da brutalidade policial, demanda pelo sufrágio
universal - enquanto aceitos ainda que pro
forma - trazem para essas multitudinárias demonstrações a pátina da
democracia, que com seus adereços, ainda mais luzentes do que as
"jóias" de Cornélia, na Roma
antiga, conferem aos partícipes desses atos-monstro, em que se entoam vivas! a
esses gigantes da política, nascidos
e embalados pela Gloriosa, pela Francesa, e com direito à antiguidade na
primazia, na simplicidade dos Helenos, cabendo aos seus cultores na Modernidade
o placet quase irrefutável a esse
abre-alas que ignora milhares de quilômetros, por trazer esses coruscantes
adereços que se envolvem nas jóias singelas da liberdade de pensa-mento e dos
direitos com que acenam ao mundo as grandes revoluções do conhecimento e da
política, que habilitam aos manifestantes de Hong Kong desconhecer as
bestas-fera da Injustiça e da Negação, enquanto tantos servos do poder
se vêem constrangidos a aceitarem o que os respectivos amos e senhores
abominam, mas a que não ousam denegar, pela força de uma aceitação determinada
pela inteligência e as luzes do respeito devido à originalidade.
(Fontes:
Carlos Drummond de Andrade, O Estado de S. Paulo )
Nenhum comentário:
Postar um comentário