O que parece
demasiado fácil deve ser visto com extremo cuidado. Nessa afirmação, que para
alguns beira a tautologia, cabe, por exemplo, o exame do surgimento, afirmação
e exercício pleno do político Donald John Trump na política
americana. Tal fenômeno não se exerce no vácuo. Para explicá-lo, existem razões
muito fortes, que nos levam a pensar no processo do declínio, como estudado, entre outros, por George Packer, no New Yorker.
Lançado na política americana através
da absurda assertiva de que o Presidente estadunidense Barack Hussein Obama não
era um americano nato, mas sim filho de quenianos, com falso nascimento no Havaí,
essa calúnia seria transformada na teoria do birtherism. Por anos a fio, malgrado a oposição da imprensa e de
grande parte da opinião pública, o desconhecido Trump se asseguraria a
exposição na mídia, como se se
reservasse a essa deslavada infâmia todas as mesuras e oportunidades de
vindicação junto ao grande público.
Fundada apenas na insolente audácia de
seu proponente, deu-se a tal assertiva absurda o tempo que se reserva às
hipóteses científicas. Terminada a própria serventia, permitiu-se que ela
desaparecesse como se fora algo que perdera a respectiva verossimilidade pela exposição
na mídia, sendo por fim afastada da geral consideração, sem que a sua falsidade
implicasse em qualquer prejuízo para a personalidade que a urdira sem dispor
para tanto de nenhuma base fática. Aplicou-se, no caso, a célebre frase de dom Basílio:
Caluniai ! sempre fica alguma coisa! (Barbeiro de Sevilla, Beaumarchais, sec. XVIII)
Assim, como se a assertiva não
passasse de jogo inocente, permitiu -se
que o respectivo autor a tratasse, ao cabo, como algo venial, que na prática
não passaria de experimento de que o tempo fizera passar a respectiva
pertinência.
A mesma técnica seria utilizada na
eleição, em que, verdade e mentira constituiriam as faces intercambiáveis do
mesmo fenômeno, isto é, do interesse do candidato de fazer prevalecer junto ao
eleitorado o que entendia como a sua
verdade. Contou, para tanto, com o
prestimoso auxílio do diretor do FBI, James
Comey, que, primo, em comunicação
ao Congresso manteria viva a suposta pertinência de o que poderia ser colhido
junto ao servidor privado do computador utilizado por Hillary Clinton, enquanto
Secretária de Estado, e, secondo, de
modo muito mais inquietante, de o que poderia ser encontrado de negativo contra
a Secretária de Estado, nesse mesmo servidor privado de computador, informação
esta que foi levantada junto ao eleitorado, exatamente no período reservado à
votação antecipada pelos eleitores quanto à escolha do futuro presidente, i.e.,
Hillary
ou Trump. A candidata Hillary
Clinton, nesse particular, responsabilizou James Comey perante a opinião
pública com em grande parte responsável por sua derrota na eleição
presidencial.
Saber-se-ia posteriormente que hackers (possivelmente russos) penetraram
nas comunicações do Diretório Democrata, movidos pela ânsia de divulgar tudo o
que pudesse ser interpretado como negativo para a candidata Hillary.
Há outros inúmeros contatos entre
elementos proeminentes do grupo que favorecia a Trump, e representantes do
estamento russo nos Estados Unidos. Como
referido por relevantes representantes da mídia, como Paul Krugman, existe fundado temor de que as ligações entre o
candidato-eleito e o presidente da Federação Russa sejam maiores de o que
veiculado até agora pela mídia.
Por outro lado, se comparado -
quando porventura completado - com
clássicos exemplos, os primeiros cem dias de Donald Trump só poderão refletir a
capacidade interna do 45º Presidente.
E essa capacidade, como o asseveram
observadores importantes, tende a transmitir visão deveras inquietante no que
concerne às suas potenciais realizações.
A politóloga Elizabeth Drew na sua relevante comunicação (V. New York Review) nos mostra o presidente recém-eleito como alguém muito mal
informado e com escassa formação presidencial. Por não dominar este mister
único, Trump tende a ficar em grande parte nas mãos de assessores, que podem
levá-lo a firmar como se fossem suas, diretivas que, em verdade, tendem muita
vez a não corresponderem ao próprio pensamento.
Abundam, por outro lado, os
exemplos de iniciativas pouco felizes, como aquela do banimento de sete
nacionalidades árabes, escolhidas de forma desordenada, e muita vez no intúito
de não prejudicar laços de negócio do interesse do grupo Trump.
Por outro lado, a investida
contra os moínhos de vento dos imigrantes estrangeiros - em especial muçulmanos
- já está prejudicando as universidades americanas, em que os seus préstimos
podem ser de grande utilidade.
Além disso, o aumento
desproporcional das inversões militares, a investida contra a luta da Humanidade
para combater o aquecimento global constitui prova ou de má-fé, ou de
ignorância só comparável às supertições das antigas tribus selvagens contra os
espíritos da floresta. Quem hoje afirma - depois das pesquisas e das
descobertas dos cientistas - que o aquecimento global é uma impostura, ou é
um patife, ou um ignorante. Nos dois casos, semelha difícil entrever a
utilidade de tal pessoa para exercer tarefa tão complexa quanto a presidencial.
Por outro lado, o fator Trump
pode ser cruel, ao apresentar para os
seus partidários de escassa instrução e com a real ameaça do desemprego não
mais temporário, como sendo possível trazer
de volta as indústrias do cinturão da ferrugem,
quando se sabe que inexistem possibilidades fáticas de reconstituí-las, sendo o
seu desaparecimento apenas a consequência de uma série de fatores que, na
prática, lhes inviabilizam o restabelecimento.
A par disso, o que justifica a
diminuição ou o corte dos recursos orçamentários direcionados para as classes
menos providas? Dar melhores condições
financeiras a esses segmentos é trabalhar por um país mais aberto, generoso e saudável. Cortar os
recursos do Ato do Tratamento Custeável (ACA) das classes menos favorecidas não
é só crueldade direcionada, mas também um ato de vindita, ao responsabilizar
eleitores do Partido Democrata, pela simples razão de que o partido de
Roosevelt lhes proporciona mais elementos e mais recursos para se afirmarem
como membros plenos da sociedade americana. Por que o seu partido e Vossa
Excelência buscam condená-los aos baixios da pobreza? Mesmo o mais interesseiro
dos políticos republicanos nisso veria um ato de falta de descortínio político,
pois incentivar a miséria na população é providência burra e temerária, por
aumentar a insatisfação e as enfermidades no Povo americano. (a continuar)
( Fontes: Elizabeth Drew, George Packer, Beaumarchais,
Paul Krugman, Miguel de Cervantes, The New York Review, The New York Times, The
New Yorker )
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