O filme de
Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado deve ser visto por muitos e não apenas o
público de cineclubes. Porque não é só uma lição de e para a vida, mas também
de um estranho otimismo, que nasce de uma experiência existencial e do
testemunho do maior fotógrafo de nossos dias.
Sebastião Salgado pode não ter sido
julgado por merecer o Oscar, por esse
magnífico documentário do alemão Wim Wenders e de seu filho, Juliano
Ribeiro Salgado. Que importância se deve dar à famosa Academia que
nunca deu um Oscar ao maior gênio da cinematografia, Charlie Chaplin. Que o leitor me perdoe o falso erro, pois não
considero como Oscars verdadeiros
aqueles dados por conjunto de obra, que não passam ou de prêmios de consolação
ou de arrependimentos tardios.
Como
Chaplin, este pela veia cômica, e Salgado, pelo empenho humano e ecológico, terão
sido julgados demasiado próximos do povo e, portanto, da esquerda, para
merecerem honrarias de uma Academia, que confunde empenho e denúncia, com
perigosos desvios de esquerda.
Mas deixemos
de lado tais considerações episódicas, que apenas incidentalmente acenam para o
que significam Sebastião Salgado e sua obra.
Se a sua fotografia
é um orgulho do Brasil, ela é também mundial, por refletir a dedicação de vida
de Salgado e de sua esposa e colaboradora, Lélia Ribeiro Salgado, ao nosso
planeta. O seu gosto pelo Povo surge quando ele se projeta e na verdade explode
para o mundo com a sua vivência em Serra
Pelada. Ao contrário do formigueiro humano que lá estava, ele não se
interessava em ouro, naquele pó e nas suas pepitas em que aquele conjunto da
sociedade brasileira – pois todos para lá acorreram, e não só a gente pobre e
miserável – mas antes no seu efeito sobre aquele macro microcosmo do povão, as
suas regras simples, a vida dura, a
promessa da riqueza, com os seus enganos, a formigante metáfora de uma
sociedade que almeja o muito, enquanto se agarra no espaço escorregadio daquelas
veias abertas para serem explotadas por todos e sobretudo pelos miseráveis.
Ali, naquele cenário construído e escavado pelo homem, nasceria a fotografia de
Sebastião Salgado.
Além da dos
homens-formiga, além da dura faina que não tem outro capataz que a ânsia de
melhor vida, o preto-branco de Salgado, resgatado sem firulas, e com o risco
partilhado com aqueles mineiros do ar-livre, se propunha levar para o mundo
além da paradigmática Serra Pelada, um espaço em que se refletem imagens daquele
brutal dia-a-dia, mas não só dele, senão de um especial relicário, com
indizível riqueza de metáforas prodigadas por visões quase austeras na sua
paradigmática. Ali revemos o quadro emblemático do policial armado e acuado por
um homem do povo, que com a simplicidade dos fortes lhe empunha a arma, ao
mesmo que o traz para a realidade do respeito devido à gente simples, imposto
pelo denodo que nasce da coragem e da consciência do que lhe é devido.
Este filme
da vida e obra de Sebastião Salgado e de sua esposa Juliana deveria ser exposto
em muitas salas, não somente por mostrar-nos da arte de um dos maiores
fotógrafos sem limitações geográficas, mas também por traçar a trajetória
simples e, sem embargo, linear desse homem que se afastou do Brasil por causa
da ditadura militar, e voltou às Minas Gerais, com torrencial lição de vida,
herdada não só da figura paterna, mas da experiência do périplo pelo sal da
terra, compartilhando muitas vezes por empenho humano e sem oportunismo
midiático a existência e em especial as inenarráveis misérias visitadas sobre a gente de muitas dessas fotos.
A fotografia
de Sebastião Salgado é telúrica, está impregnada da natureza virgem e não tão
virgem, quando desfeita pelo bicho homem,
através de seus inúmeros conflitos com que este último não só atazana o próprio
semelhante, mas o que é muito pior, o rebaixa a condições infra-humanas.
Assistindo
ao documentário, o espectador é levado, quer queira, quer não, a contemplar o
duro espaço palmilhado por Sebastião. Ele se sente chamado para ver e, sobretudo,
denunciar a miséria, a inanição, o ódio racial e tribal, e ele dá o seu
testemunho com a intenção de advertir e se possível contra-arrestar essa
corrida insana que o mundo compartimenta por vezes em instantâneos isolados de
trêmulas e macilentas criaturas à beira da inanição e da morte, e que espoucam
no Sahel, na África Oriental e
Ocidental, por toda a parte em que o mal investe contra os desprotegidos da Terra.
A lente de
Salgado deseja mostrar a vida, e por vezes se descobre constrangida a exibir a
sua famélica, esquelética antítese na agonia de fome criada por outrem, cujos
fins mergulham no poço escuro de muitos antis,
que resumem a boçalidade e a selvageria que, muita vez, distingue o bicho-homem
dos demais animais.
A fotografia
de Sebastião Salgado, diria que é o subtexto desse magnífico documentário. Ela
será sempre honesta e aberta, e assim convive com as brincadeiras das orcas e
dos ursos brancos no norte da Rússia, mas também se apresenta como testemunha
das maldades do onipresente bicho-homem, espalhadas pelos continentes que a
arte do grande fotógrafo visita. Se ele não trepida em vivenciar o alarma, e a
necessidade de contra-arrestá-lo, quer
ser também mensagem de esperança ecológica, como tão bem o demonstra no modo
aparentemente simples de trazer o verde de volta. Na perene imagem do filho que
torna ao espaço da fazenda paterna, e que o desmatamento impiedoso transformara
em terra sáfara, ele agora documenta renascer na singela maravilha do replantio
e da criação fundada na paciência do dia a dia.
Por isso,
não posso terminar esse esboço da obra gigantesca de compatrício nosso que nos
honra, não só pela arte, mas também pelo respectivo exemplo e o de sua família.
Em mundo
de cinismo e devastação, a figura e a obra de Sebastião Salgado são para toda a
boa gente, exemplo de arte posta a serviço da vida.
Assistam O Sal da Terra. Nele não encontrarão ficção
e sim a realidade contemplada com a Arte do respectivo instrumento de trabalho.
E que exemplo nos prodiga de caminhada
em testemunho e a serviço da Vida!
Um comentário:
Brilhante avaliação. Não conseguimos ver ontem, estava esgotado. Vamos hoje.
O texto confirma e aumenta a vontade de ver esta obra de arte. Já ouvi alguns fotógrafos dizerem que a fotografia de Sebastião Salgado não evoluiu, ele, segundo eles, é por demais literal. Será que sua fotografia expandida, que não tem limites geográficos e enfrenta, com emoção,a realidade de homens excluídos pode ser considerada estagnada?
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