sábado, 25 de abril de 2015

O Sal da Terra

                                            

          O filme de Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado deve ser visto por muitos e não apenas o público de cineclubes. Porque não é só uma lição de e para a vida, mas também de um estranho otimismo, que nasce de uma experiência existencial e do testemunho do maior fotógrafo de nossos dias.

          Sebastião Salgado pode não ter sido julgado por merecer o Oscar, por esse magnífico documentário do alemão Wim Wenders e de seu filho, Juliano Ribeiro Salgado. Que importância se deve dar à famosa Academia que nunca deu um Oscar ao maior gênio da cinematografia, Charlie Chaplin. Que o leitor me perdoe o falso erro, pois não considero como Oscars verdadeiros aqueles dados por conjunto de obra, que não passam ou de prêmios de consolação ou de arrependimentos tardios.

          Como Chaplin, este pela veia cômica, e Salgado, pelo empenho humano e ecológico, terão sido julgados demasiado próximos do povo e, portanto, da esquerda, para merecerem honrarias de uma Academia, que confunde empenho e denúncia, com perigosos desvios de esquerda.

          Mas deixemos de lado tais considerações episódicas, que apenas incidentalmente acenam para o que significam Sebastião Salgado e sua obra.

          Se a sua fotografia é um orgulho do Brasil, ela é também mundial, por refletir a dedicação de vida de Salgado e de sua esposa e colaboradora, Lélia Ribeiro Salgado, ao nosso planeta. O seu gosto pelo Povo surge quando ele se projeta e na verdade explode para o mundo com a sua vivência em Serra Pelada. Ao contrário do formigueiro humano que lá estava, ele não se interessava em ouro, naquele pó e nas suas pepitas em que aquele conjunto da sociedade brasileira – pois todos para lá acorreram, e não só a gente pobre e miserável – mas antes no seu efeito sobre aquele macro microcosmo do povão, as suas regras simples, a vida dura,  a promessa da riqueza, com os seus enganos, a formigante metáfora de uma sociedade que almeja o muito, enquanto se agarra no espaço escorregadio daquelas veias abertas para serem explotadas por todos e sobretudo pelos miseráveis. Ali, naquele cenário construído e escavado pelo homem, nasceria a fotografia de Sebastião Salgado.

         Além da dos homens-formiga, além da dura faina que não tem outro capataz que a ânsia de melhor vida, o preto-branco de Salgado, resgatado sem firulas, e com o risco partilhado com aqueles mineiros do ar-livre, se propunha levar para o mundo além da paradigmática Serra Pelada, um espaço em que se refletem imagens daquele brutal dia-a-dia, mas não só dele, senão de um especial relicário, com indizível riqueza de metáforas prodigadas por visões quase austeras na sua paradigmática. Ali revemos o quadro emblemático do policial armado e acuado por um homem do povo, que com a simplicidade dos fortes lhe empunha a arma, ao mesmo que o traz para a realidade do respeito devido à gente simples, imposto pelo denodo que nasce da coragem e da consciência do que lhe é devido.

          Este filme da vida e obra de Sebastião Salgado e de sua esposa Juliana deveria ser exposto em muitas salas, não somente por mostrar-nos da arte de um dos maiores fotógrafos sem limitações geográficas, mas também por traçar a trajetória simples e, sem embargo, linear desse homem que se afastou do Brasil por causa da ditadura militar, e voltou às Minas Gerais, com torrencial lição de vida, herdada não só da figura paterna, mas da experiência do périplo pelo sal da terra, compartilhando muitas vezes por empenho humano e sem oportunismo midiático a existência e em especial as inenarráveis misérias visitadas sobre  a gente de muitas dessas fotos.

          A fotografia de Sebastião Salgado é telúrica, está impregnada da natureza virgem e não tão virgem, quando desfeita pelo bicho homem, através de seus inúmeros conflitos com que este último não só atazana o próprio semelhante, mas o que é muito pior, o rebaixa a condições infra-humanas.

          Assistindo ao documentário, o espectador é levado, quer queira, quer não, a contemplar o duro espaço palmilhado por Sebastião. Ele se sente chamado para ver e, sobretudo, denunciar a miséria, a inanição, o ódio racial e tribal, e ele dá o seu testemunho com a intenção de advertir e se possível contra-arrestar essa corrida insana que o mundo compartimenta por vezes em instantâneos isolados de trêmulas e macilentas criaturas à beira da inanição e da morte, e que espoucam no Sahel, na África Oriental e Ocidental, por toda a parte em que o mal investe contra os desprotegidos  da Terra.

          A lente de Salgado deseja mostrar a vida, e por vezes se descobre constrangida a exibir a sua famélica, esquelética antítese na agonia de fome criada por outrem, cujos fins mergulham no poço escuro de muitos antis, que resumem a boçalidade e a selvageria que, muita vez, distingue o bicho-homem dos demais animais.

          A fotografia de Sebastião Salgado, diria que é o subtexto desse magnífico documentário. Ela será sempre honesta e aberta, e assim convive com as brincadeiras das orcas e dos ursos brancos no norte da Rússia, mas também se apresenta como testemunha das maldades do onipresente bicho-homem, espalhadas pelos continentes que a arte do grande fotógrafo visita. Se ele não trepida em vivenciar o alarma, e a necessidade de contra-arrestá-lo,  quer ser também mensagem de esperança ecológica, como tão bem o demonstra no modo aparentemente simples de trazer o verde de volta. Na perene imagem do filho que torna ao espaço da fazenda paterna, e que o desmatamento impiedoso transformara em terra sáfara, ele agora documenta renascer na singela maravilha do replantio e da criação fundada na paciência do dia a dia.

            Por isso, não posso terminar esse esboço da obra gigantesca de compatrício nosso que nos honra, não só pela arte, mas também pelo respectivo exemplo e o de sua família.

            Em mundo de cinismo e devastação, a figura e a obra de Sebastião Salgado são para toda a boa gente, exemplo de arte posta a serviço da vida.

            Assistam O Sal da Terra. Nele não encontrarão ficção e sim a realidade contemplada com a Arte do respectivo instrumento de trabalho.  E que exemplo nos prodiga de caminhada em testemunho e a serviço da Vida!  

Um comentário:

Maria Dalila Bohrer disse...

Brilhante avaliação. Não conseguimos ver ontem, estava esgotado. Vamos hoje.
O texto confirma e aumenta a vontade de ver esta obra de arte. Já ouvi alguns fotógrafos dizerem que a fotografia de Sebastião Salgado não evoluiu, ele, segundo eles, é por demais literal. Será que sua fotografia expandida, que não tem limites geográficos e enfrenta, com emoção,a realidade de homens excluídos pode ser considerada estagnada?