segunda-feira, 20 de abril de 2015

Tropeços e Tragédias da Humanidade

                                   

Tragédia humanitária africana

 

          Na madrugada de domingo, dezenove de abril, repetiu-se cenário já demasiado conhecido. Movidos por conjunto de circunstâncias adversas, migrantes africanos procuraram alcançar por mar a Itália. Sem trabalho, e com precárias condições existenciais nos países de origem, levas de africanos buscam melhorar a própria vida, lotando velhas embarcações, a maior parte delas sem qualquer segurança.
          Desta feita, o grande naufrágio se originou da Líbia, mais um estado no limite do fracasso depois da vitoriosa sublevação contra o regime de Muamar Kadafi. A desordem naquele país, que beira a anarquia entre facções armadas que se digladiam, defronte de impotente governo legal, facilita a ação de traficantes, e a carência de qualquer segurança.

          Que multidão de cerca oitocentos refugiados tenha embarcado em decrépito pesqueiro, despojado de mínimas condições de navegabilidade, já diz muito acerca da falta de alternativas dessa imigração irregular.

          Sobrecarregado por carga humana movida pelo desespero, o pesqueiro afundou próximo da Sicília.  O sinistro reedita, na circundante precariedade e agora por falta de requisitos mínimos de navegabilidade, a tragédia do Titanic. Se esta fora causada pela húbris de transatlântico supostamente inafundável, por meio do choque com desgarrado iceberg nos mares do Norte, e a carência de botes salva-vidas, e se as vítimas de então estavam bem-alimentadas,  o pesqueiro que soçobrou na costa da Sicília, foi para as profundezas do velho mar mediterrâneo carregando consigo a carga da  miséria, desesperança,  falta de alternativas, e, como cruel arabesco final a ausência de mínimas condições de sobrevivência.

           Sabe-se lá como, vinte e oito pessoas sobreviveram.  

            O Primeiro Ministro da Itália, Matteo Renzi,  pediu a dezenove de abril reunião de todos os líderes europeus. Ao deixar claro que o seu país – a que se dirige a maioria dessa corrente -  precisa de ajuda urgentemente, disse Renzi:  “essa é tragédia europeia e não é apenas  problema da Itália”. Nesse sentido, o chefe do governo italiano contactou o presidente da França, François Hollande, a Chanceler alemã, Angela Merkel e o Primeiro Ministro do Reino Unido, David Cameron.

            O primeiro ministro de Malta – outro país na linha dessa migrção - Joseph Muscar, afirmou: “O que está ocorrendo tem proporções épicas.  Se a Europa continuar a se fazer de cega, seremos todos julgados da mesma forma que a Europa foi julgada quando virou o rosto diante de genocídios.”

            O Papa Francisco, que tem mostrado muito empenho na questão, fez duras críticas aos governos europeus. Por sua vez, nas Nações Unidas, foram acusados os governos da Europa pela circunstância de não agirem para não perder votos em eleições. Nesse contexto, se solicitou  fosse estabelecida em caráter permanente uma operação de resgate.

 
O  ‘Califado Islâmico’

 
          Esse fenômeno do chamado Isis, através de várias ações, muitas delas supostamente midiáticas, tem afirmado a sua presença e vem atuando com intrigante capacidade de ação em diversas áreas geográficas, conectadas de alguma forma com o interior da Síria.

          Ao cabo do primeiro governo Barack Obama, os dirigentes da área de segurança militar e diplomática (Hillary Clinton e os demais chefes de departamentos e agências que seguiam a então revolução síria) recomendaram ao Presidente que armasse a Liga Síria na sua luta contra Bashar al-Assad.

          O Presidente americano, temendo iniciar processo similar ao do Viet-Nam, não aprovou a conjunta recomendação de seu gabinete de segurança.

          Em função disso, ocorreu desenvolvimento imprevisto, que tem conexão com situação de anarquia – tanto política e militar, quanto sanitária (como surtos de endemias havidas como controladas têm assinalado).  De certa forma, o ditador de Damasco consolidou (com a ajuda russa e iraniana) o domínio sobre os principais centros da Síria, enquanto cresceu na campanha o poder do Isis (o chamado estado islâmico), que é a feição radical sunita da insurreição.

          O Estado Sírio - que através da repressão mantivera por muito tempo uma aparência de ordem – agora ‘compartilha’ o respectivo poder com o Isis. Sem o armamento necessário, a autoridade rebelde (com a chancela da Liga Árabe) se mantém em determinadas áreas, mas está distante dos tempos em que Bashar temia pela próxima queda.

          Dentro desse vazio estratégico formado pelo antes próspero hinterland sírio, o chamado Califado Islâmico, na sua versão radical sunita, tem procurado expandir-se, às custas das lutas entre as três correntes principais: os alauítas, através da dinastia dos Al Assad, com o apoio da Rússia, do Irã dos ayatollahs (pela cercania dessa crença heteróclita com o ramo xiita), os sunitas moderados (com o apoio do Qatar e da Arábia Saudita), e o ramo dissidente xiita de Teerã (representado pela milícia do Hezbollah, com base no Líbano).

          Por um conjunto infeliz de circunstâncias,  o Estado Islâmico se tem espalhado nesse hinterland da antiga terra da passagem, hoje irreconhecível pelas ruínas de suas principais cidades, pela crise da sua agricultura, e pelos surtos de endemias oportunistas,  entre as quais se inclui a poliomielite (que tem afetado inclusive o Paquistão). Aliás, nesse contexto, na sua perseguição ao autor intelectual do ataque terrorista às Torres Gêmeas, Osama bin Laden, os Estados Unidos cometeram grande erro, que foi o de tentar instrumentalizar vacinação rotineira no Paquistão para obter elementos do DNA do arqui-terrorista. Foi jogada míope e irresponsável, porque contribuíu para lançar suspeita sobre qualquer operação sanitária de vacinação, em um meio muito suscetível a teorias conspiratórias (e a fortiori, se correspondentes a tentativas reais  de localizar a então nêmesis do Ocidente).

            O Estado Islâmico se tem mostrado capaz de arregimentar jovens no Ocidente altamente desenvolvido, junto ao proletariado[1] intelectual e econômico, que vive nos ghetos respectivos.

            É uma política estulta a de tentar reprimir esses jovens através de controle policiesco. O que deveria ser feito é a integração deles no tecido social em que se formaram. Ora, para tanto, métodos tipo Sarkozy são ineficazes. É a mente dessa comunidade que se sente incompreendida ou até rejeitada que carece de ser persuadida das vantagens da civilização ocidental.

            Depois da aventura de George Bush – que muito contribuíu para o declínio dos Estados Unidos – é juntar a violência à burrice tentar impedir a migração dos jovens para o paraíso do radicalismo islâmico, com as suas decapitações midiática et al.

            Quero crer que a política no Ocidente terá capacidade de dirigir esses jovens para melhores objetivos, sobretudo menos destrutivos que a alucinada destruição de ruínas das civilizações antigas. A bestialidade do sistema do califado na ocupação do território deve ser contra-arrestada por intervenções pontuais contra as forças que só logram produzir as ignomínias mostradas pela televisão, porque atuam  em estados à beira do fracasso, como o Iraque. Já o projeto do Curdistão que existe no norte iraquiano carece de reforços de equipamento militar para dar à milícia peshawar as condições de enfrentar os fanáticos do Isis.

            Veja, ilustre passageiro da nave planetária, no que deu a apatia de não dar armas à entidade reconhecida pela Liga Árabe como governo da Síria. Vários monstros, que devem a sua existência àquela pouco sábia decisão acima referida, agora vagueiam por aqueles páramos e planícies, destruindo relíquias da história do homem, decapitando a seus semelhantes pelo simples fato de professarem outra religião, e instituindo ‘estados’ que são melancólica regressão diante daquelas pedras e mármores, espelhos de uma etapa anterior da caminhada do homo sapiens que a displicência de uns e a boçalidade de outros cria as condições para um ulterior episódio de destruição sem sentido.

 

( Fontes: Estado de S. Paulo, A.J. Toynbee - A Study of History )



[1] O proletariado intelectual em questão se reporta ao conceito toynbeeano de populações que viviam dentro do Império Romano do Ocidente, em situação de não-assimilação social ou existencial.

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