Tragédia humanitária africana
Na madrugada de domingo, dezenove de abril,
repetiu-se cenário já demasiado conhecido. Movidos por conjunto de
circunstâncias adversas, migrantes africanos procuraram alcançar por mar a
Itália. Sem trabalho, e com precárias condições existenciais nos países de
origem, levas de africanos buscam melhorar a própria vida, lotando velhas
embarcações, a maior parte delas sem qualquer segurança.
Desta feita,
o grande naufrágio se originou da Líbia, mais um estado no limite do fracasso
depois da vitoriosa sublevação contra o regime de Muamar Kadafi. A desordem
naquele país, que beira a anarquia entre facções armadas que se digladiam,
defronte de impotente governo legal, facilita a ação de traficantes, e a
carência de qualquer segurança.
Que multidão
de cerca oitocentos refugiados tenha embarcado em decrépito pesqueiro,
despojado de mínimas condições de navegabilidade, já diz muito acerca da falta
de alternativas dessa imigração irregular.
Sobrecarregado por carga humana movida pelo desespero, o pesqueiro
afundou próximo da Sicília. O sinistro
reedita, na circundante precariedade e agora por falta de requisitos mínimos de
navegabilidade, a tragédia do Titanic. Se esta fora causada pela húbris de
transatlântico supostamente inafundável, por meio do choque com desgarrado
iceberg nos mares do Norte, e a carência de botes salva-vidas, e se as vítimas
de então estavam bem-alimentadas, o
pesqueiro que soçobrou na costa da Sicília, foi para as profundezas do velho
mar mediterrâneo carregando consigo a carga da
miséria, desesperança, falta de
alternativas, e, como cruel arabesco final a ausência de mínimas condições de
sobrevivência.
Sabe-se lá
como, vinte e oito pessoas sobreviveram.
O Primeiro
Ministro da Itália, Matteo Renzi, pediu
a dezenove de abril reunião de todos os líderes europeus. Ao deixar claro que o
seu país – a que se dirige a maioria dessa corrente - precisa de ajuda urgentemente, disse
Renzi: “essa é tragédia europeia e não é
apenas problema da Itália”. Nesse
sentido, o chefe do governo italiano contactou o presidente da França, François
Hollande, a Chanceler alemã, Angela Merkel e o Primeiro Ministro do Reino
Unido, David Cameron.
O primeiro
ministro de Malta – outro país na linha dessa migrção - Joseph Muscar, afirmou:
“O que está ocorrendo tem proporções épicas.
Se a Europa continuar a se fazer de cega, seremos todos julgados da
mesma forma que a Europa foi julgada quando virou o rosto diante de
genocídios.”
O Papa
Francisco, que tem mostrado muito empenho na questão, fez duras críticas aos
governos europeus. Por sua vez, nas Nações Unidas, foram acusados os governos
da Europa pela circunstância de não agirem para não perder votos em eleições.
Nesse contexto, se solicitou fosse
estabelecida em caráter permanente uma operação de resgate.
O ‘Califado Islâmico’
Ao cabo do
primeiro governo Barack Obama, os dirigentes da área de segurança militar e
diplomática (Hillary Clinton e os demais chefes de departamentos e agências que
seguiam a então revolução síria) recomendaram ao Presidente que armasse a Liga
Síria na sua luta contra Bashar al-Assad.
O Presidente
americano, temendo iniciar processo similar ao do Viet-Nam, não aprovou a
conjunta recomendação de seu gabinete de segurança.
Em função
disso, ocorreu desenvolvimento imprevisto, que tem conexão com situação de
anarquia – tanto política e militar, quanto sanitária (como surtos de endemias
havidas como controladas têm assinalado).
De certa forma, o ditador de Damasco consolidou (com a ajuda russa e
iraniana) o domínio sobre os principais centros da Síria, enquanto cresceu na
campanha o poder do Isis (o chamado estado islâmico), que é a feição radical sunita
da insurreição.
O Estado
Sírio - que através da repressão mantivera por muito tempo uma aparência de
ordem – agora ‘compartilha’ o respectivo poder com o Isis. Sem o armamento
necessário, a autoridade rebelde (com a chancela da Liga Árabe) se mantém em
determinadas áreas, mas está distante dos tempos em que Bashar temia pela
próxima queda.
Dentro desse
vazio estratégico formado pelo antes próspero hinterland sírio, o chamado Califado Islâmico, na sua versão
radical sunita, tem procurado expandir-se, às custas das lutas entre as três
correntes principais: os alauítas, através da dinastia dos Al Assad, com o
apoio da Rússia, do Irã dos ayatollahs (pela cercania dessa crença heteróclita
com o ramo xiita), os sunitas moderados (com o apoio do Qatar e da Arábia
Saudita), e o ramo dissidente xiita de Teerã (representado pela milícia do
Hezbollah, com base no Líbano).
Por um
conjunto infeliz de circunstâncias, o
Estado Islâmico se tem espalhado nesse hinterland da antiga terra da passagem,
hoje irreconhecível pelas ruínas de suas principais cidades, pela crise da sua
agricultura, e pelos surtos de endemias oportunistas, entre as quais se inclui a poliomielite (que
tem afetado inclusive o Paquistão). Aliás, nesse contexto, na sua perseguição
ao autor intelectual do ataque terrorista às Torres Gêmeas, Osama bin Laden, os
Estados Unidos cometeram grande erro, que foi o de tentar instrumentalizar vacinação
rotineira no Paquistão para obter elementos do DNA do arqui-terrorista. Foi
jogada míope e irresponsável, porque contribuíu para lançar suspeita sobre
qualquer operação sanitária de vacinação, em um meio muito suscetível a teorias
conspiratórias (e a fortiori, se
correspondentes a tentativas reais de
localizar a então nêmesis do Ocidente).
O Estado
Islâmico se tem mostrado capaz de arregimentar jovens no Ocidente altamente
desenvolvido, junto ao proletariado[1]
intelectual e econômico, que vive nos ghetos respectivos.
É uma
política estulta a de tentar reprimir esses jovens através de controle
policiesco. O que deveria ser feito é a integração deles no tecido social em
que se formaram. Ora, para tanto, métodos tipo Sarkozy são ineficazes. É a
mente dessa comunidade que se sente incompreendida ou até rejeitada que carece
de ser persuadida das vantagens da civilização ocidental.
Depois da aventura de George
Bush – que muito contribuíu para o declínio dos Estados Unidos – é juntar a
violência à burrice tentar impedir a migração dos jovens para o paraíso do
radicalismo islâmico, com as suas decapitações midiática et al.
Quero crer
que a política no Ocidente terá capacidade de dirigir esses jovens para
melhores objetivos, sobretudo menos destrutivos que a alucinada destruição de
ruínas das civilizações antigas. A bestialidade do sistema do califado na
ocupação do território deve ser contra-arrestada por intervenções pontuais
contra as forças que só logram produzir as ignomínias mostradas pela televisão,
porque atuam em estados à beira do
fracasso, como o Iraque. Já o projeto do Curdistão que existe no norte
iraquiano carece de reforços de equipamento militar para dar à milícia peshawar
as condições de enfrentar os fanáticos do Isis.
Veja, ilustre passageiro da nave planetária,
no que deu a apatia de não dar armas à entidade reconhecida pela Liga Árabe
como governo da Síria. Vários monstros, que devem a sua existência àquela pouco
sábia decisão acima referida, agora vagueiam por aqueles páramos e planícies,
destruindo relíquias da história do homem, decapitando a seus semelhantes pelo
simples fato de professarem outra religião, e instituindo ‘estados’ que são melancólica
regressão diante daquelas pedras e mármores, espelhos de uma etapa anterior da
caminhada do homo sapiens que a
displicência de uns e a boçalidade de outros cria as condições para um ulterior
episódio de destruição sem sentido.
( Fontes: Estado de S.
Paulo, A.J. Toynbee - A Study of History )
[1] O proletariado intelectual
em questão se reporta ao conceito toynbeeano de populações que viviam dentro do
Império Romano do Ocidente, em situação de não-assimilação social ou
existencial.
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