Há muitas lendas sobre o Povo
brasileiro. Talvez a maior seja que as grandes mutações em nossa história
tenham sido realizadas de forma incruenta. E junto com essa que a nossa gente
prefira resolver as grandes questões nacionais e os seus avanços por métodos de
conciliação, que expressem e realizem o nosso jeito pacífico e mesmo cordato, para
resolver aqueles momentos em que forças contrárias se defrontem.
Desde os
bancos escolares nos repetem tais estórias, seja os professores, seja os
historiadores, a levantar as capas de pomposas designações, para tentar
mostrar-nos que, como em muitas outras coisas em Pindorama, não nos devemos fiar por aparências, por mais
encanecidas que se mostrem.
Tive grande
professor de geografia que, pela erudição e dom pedagógico, nos mostrou uma
ciência nova, que nada tinha a ver com o decoreba da corografia. E ao
apresentar-nos essa velha disciplina, Hilgard
O’Reilly Sternberg nos revelou que a relatividade também se insinua na antiga
ciência de Strabo. Dada a excelência
do mestre, as suas apostilas se tornavam bulas,
e como tal eram conhecidas. Recordo-me com prazer de uma das mais impactantes,
a ‘Malgrado a toponímia’. Tal ‘bula’
magistral nos ensinava que a despeito das designações – Serra do Mar, Serra da
Mantiqueira, etc. – o relevo no Brasil se caracteriza por formações antigas, já
bastante erodidas pelos elementos, e, por isso, carecia distinguir-se entre as
denominações, e a realidade orográfica, suavizada pelo tempo.
Com licença do
mestre, creio que nesta vereda específica o seu saber constitua a óbvia
metáfora. Aceitemo-las como os manuais de história nos apresentam, mas condimentadas
como segunda natureza. Se lutas houve, e se a violência não faltou, muita vez
sobrepairou uma espécie de superego
freudiano, que, com liberdade poética, já existia mesmo antes da presença na
terra do criador da psicanálise e de suas básicas invenções.
Por isso, a
batalha de Itararé foi importante a despeito de nunca haver sido travada. Ao
escolhermos a legitimidade, aplainamos o caminho da independência. Decerto
morreu muita gente pelas costas desses brasis afora, na senda da consolidação
do Primeiro Reinado. E, sem embargo, José Bonifácio e as elites de então
souberam aplanar tais vias, ao escolher a legitimidade do herdeiro português da
Coroa para fundar o Império do Brasil.
Não há negar
que na Regência, fossem trinas ou unas, o menor quociente de legitimidade
favoreceria os movimentos revolucionários, mas a situação encontraria sempre o
punho enérgico de legitimidade ersatz (o
Padre Feijó, o jovem Caxias) para antecipar de certa forma a
ordem instituída que traria o Segundo Reinado.
E então o Marquês de Olinda seria surpreendido
pelo ‘Quero já!’ da maioridade
antecipada de Pedro II. Nada mais
brasileiro do que a construção de emancipação antecipada, ainda que imperial.
O jovem
primogênito, duplamente órfão, encontraria tutores do valor de um José Bonifácio
de Andrada, que colocaria os fundamentos para um grande monarca do século
XIX. O Império do Brasil na verdade seria uma grande república e conduziria o
Povo a dez lustros de democracia, a ponto de que a quartelada que derrubou
Pedro II fosse designada por estadista argentino como o fim da última república
sul-americana.
O pronunciamiento militar trouxe de volta
as rebeliões e os confrontos. A despeito de grandes nomes, como Rio Branco, a Primeira República já
nasceu velha. Por baixo dos pernósticos oradores e do vestuário inadequado para
um país tropical, a ordem estabelecida mascarava a violência nas províncias, e
as pacificações sangrentas, de que Os
Sertões de Euclides da Cunha nos mostram um exemplo.
O ciclo de Getúlio Vargas viria depois,
estendendo-se de 1930 a 24 de agosto de 1954. No intermezzo, a Constituição de 1946 de que Vargas se empenharia em
cumprir, quiçá na mais amarga ironia da história brasileira. O seu suicídio e entrada
na História, lhe sinalizaria a redescoberta pelo Povo brasileiro de o que
perdera na manhã de 24 de agosto. Pela violência extrema, mas individual,
Getúlio, com o próprio sacrifício, trouxe multidões para as ruas que lhe prantearam
o valor e lhe aquilataram o significado, varrendo de cena os que brindavam pelo
desaparecimento político da velha nêmesis.
A chamada redentora não é senão a farsa que sói
suceder às tragédias. Por peculiar traço, teria mais ou menos a duração do
fascismo do duce Benito Mussolini. A
violência voltaria à cena, com afinco e extensão que surpreendeu a muitos.
Trouxe manifestações – em geral nos porões e nos presídios – de sevícias e
brutalidades, enquanto na face externa vestiam a carantonha do adesismo ou do
reencontro com as fantasias da opressão que sóem caracterizar esse fosco,
plúmbeo domínio.
Sua
contribuição à política dizimaria as grandes lideranças civis, mas, consoante a
regra não-escrita, com muitas baixarias e humilhações de varões da República,
porém com mortes de brasileiros, muitos dos quais permaneceram insepultos por
uma Comissão da Verdade que muito a la tupiniquim não disse ao que veio, e
tampouco ousou ser o prenúncio do império do poder civil.
Alguns afirmam –
e essa interpretação tende a crescer diante de muitos líderes que se dizem
revolucionários – que a revolução ainda está por ser feita, à moda talvez da
mexicana (mas, cuidado!, se atentarmos no que ocorreu com os chamados
revolucionários do P.R.I.). A violência
que se abate sobre o Povo brasileiro é diuturna. Se alguém quer experimentá-la,
basta frequentar favelas ditas pacificadas, como o Complexo do Alemão, por
exemplo, para que se tenha ideia dos riscos que se abatem sobre as comunidades
que lá, por falta de escolha, devem viver.
O Brasil não é
mais o país pitoresco do Zé Carioca e
de Carmen Miranda, mas tampouco passa
imagem de Sétima Economia Mundial. Vemos um país com as chagas dos presídios
(masmorras medievais como a de Porto Alegre e a de São Luís), mas não nos
enganemos com a esmagadora maioria das outras cadeias, visitadas pelo tráfico e o império de
corrupção específica, que pouco têm a
ver com a outra, combatida pelo juízo do Mensalão (Ação Penal 470) e agora pelas ações da Lava-Jato e sua descendência.
Não é a
primeira vez que cito a máxima de Lord
Acton – o poder corrompe e o poder absoluto corrompe de forma absoluta.
Através do Mensalão - de que o Ministro Joaquim Barbosa seria o grande condutor,
inclusive por intermédio de teoria específica para a caracterização penal - se
pensara haver qualificado a húbris de
estrutura petista no intento de conduzir o Congresso.
Não
obstante, através da operação Lava-Jato,
do Ministério Público, e do Juiz Sergio Moro, novas balizas
foram colocadas na repressão da criminalidade e do insano projeto petista de
aparelhar a Petróleo Brasileiro S.A., com o que resultou o longo interregno na
Petrobrás, com a corrupção prevalente, através das propinas e da cartelização
das grandes empreiteiras, com molestos resultados para a nossa maior empresa.
Somente por
meio da invocação da máxima de Lord Acton,
se pode ter ideia da insanidade desse plano de colocar na prática a Petrobrás como
financiadora de um grande partido, de maneira a que alcançasse no Brasil o status que teve o famigerado PRI no México, como detentor do poder
(havia três ou quatro outros partidos, que eram preservados como reféns de uma
inexistente pluralidade partidária. Existiam apenas para dar uma caução
democrático, que era, na verdade, partido único, pois enfeixava todo o poder).
Os projetos
como o do Petrolão são decorrência da circunstância de que a corrupção abrangente
acaba por ‘auto-justificar-se’, por força da ilusão do controle supostamente
total das entidades envolvidas. A esse grupo de beneficiários diretos e
indiretos, se agrega um outro, que recorre ao artificialismo do
não-conhecimento (que mais parece aquele biombo de seda que protegia o imperador
chinês das vistas do alto-servidor que vinha submeter questões para a decisão
do soberano). Esse silêncio não é outra coisa que a omertà siciliana. O
interessado, tudo sabendo, finge nada saber. Esses papéis também se inserem no
drama da Petrobrás, por não ser humanamente possível imaginar do exercício de
um poder no vácuo, com acompanhamento diuturno das questões da empresa, mas
pontual ignorância no que tange aos ditos malfeitos ou corrupção.
É nesse
contexto que deve ser entendido a oportuna informação transmitida na coluna de
sábado, onze de abril corrente, por Merval Pereira: “O procurador Carlos
Fernandes Santos Lima definiu a Operação Lava-Jato como ainda ‘no início’ e
disse que ela levará as investigações ‘por mares nunca dantes navegados’, numa
alusão a áreas tidas como intocáveis até o momento.” E para que o leitor não perca o fio da meada,
nem deixe escapar a apreensão pela relevância dos novos passos dessa Operação,
o articulista observa: “É interessante notar como o juiz Sérgio Moro e os
procuradores do Ministério Público têm a noção exata de que precisam do apoio
da opinião pública para avançar nas investigações.”
A ofensiva, para ter êxito, carece
do apoio de uma opinião pública informada para que os passos seguintes sejam
dados não só com segurança, mas também com a certeza de dar continuidade a uma
busca que tem começo, meio e fim.
Entra-se,
por conseguinte, na fase de fechar o círculo, para que, além dos operadores do
esquema, ele venha a ser complementado pelas redes auxiliares de apoio e tudo o
mais, que porventura conste do mecanismo infernal, a que só faltaria agregar
que é o capo dei capi(o chefe dos chefes).
Na Itália, a operação da Justiça Mãos
limpas, lograria enorme êxito, não só ao desvelar os chefes criminosos da Onorata
Società, mas também deu morte política a parlamentares de grande renome, como
Giulio Andreotti.
O Povo brasileiro aguarda com
compreensível ansiedade a eventual divulgação dos nomes das pessoas que até o
momento não foram convocadas ou visitadas pelas autoridades judiciárias
competentes.
( Fontes: O Globo, coluna de Merval Pereira – Mares desconhecidos; Lira Neto - GETÚLIO, Companhia Das Letras, 3 vols.
)
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