sábado, 11 de abril de 2015

Por mares nunca dantes navegados

                                  

          Há muitas lendas sobre o Povo brasileiro. Talvez a maior seja que as grandes mutações em nossa história tenham sido realizadas de forma incruenta. E junto com essa que a nossa gente prefira resolver as grandes questões nacionais e os seus avanços por métodos de conciliação, que expressem e realizem o nosso jeito pacífico e mesmo cordato, para resolver aqueles momentos em que forças contrárias se defrontem.

         Desde os bancos escolares nos repetem tais estórias, seja os professores, seja os historiadores, a levantar as capas de pomposas designações, para tentar mostrar-nos que, como em muitas outras coisas em Pindorama, não nos devemos fiar por aparências, por mais encanecidas que se mostrem.

         Tive grande professor de geografia que, pela erudição e dom pedagógico, nos mostrou uma ciência nova, que nada tinha a ver com o decoreba da corografia. E ao apresentar-nos essa velha disciplina, Hilgard O’Reilly Sternberg nos revelou que a relatividade também se insinua na antiga ciência de Strabo. Dada a excelência do mestre, as suas apostilas se tornavam bulas, e como tal eram conhecidas. Recordo-me com prazer de uma das mais impactantes, a ‘Malgrado a toponímia’. Tal ‘bula’ magistral nos ensinava que a despeito das designações – Serra do Mar, Serra da Mantiqueira, etc. – o relevo no Brasil se caracteriza por formações antigas, já bastante erodidas pelos elementos, e, por isso, carecia distinguir-se entre as denominações, e a realidade orográfica, suavizada pelo tempo.

         Com licença do mestre, creio que nesta vereda específica o seu saber constitua a óbvia metáfora. Aceitemo-las como os manuais de história nos apresentam, mas condimentadas como segunda natureza. Se lutas houve, e se a violência não faltou, muita vez sobrepairou uma espécie de superego freudiano, que, com liberdade poética, já existia mesmo antes da presença na terra do criador da psicanálise e de suas básicas invenções.

         Por isso, a batalha de Itararé foi importante a despeito de nunca haver sido travada. Ao escolhermos a legitimidade, aplainamos o caminho da independência. Decerto morreu muita gente pelas costas desses brasis afora, na senda da consolidação do Primeiro Reinado. E, sem embargo, José Bonifácio e as elites de então souberam aplanar tais vias, ao escolher a legitimidade do herdeiro português da Coroa para fundar o Império do Brasil.

         Não há negar que na Regência, fossem trinas ou unas, o menor quociente de legitimidade favoreceria os movimentos revolucionários, mas a situação encontraria sempre o punho enérgico de legitimidade ersatz (o Padre Feijó, o jovem Caxias) para antecipar de certa forma a ordem instituída que traria o Segundo Reinado.

        E então o Marquês de Olinda seria surpreendido pelo ‘Quero já!’ da maioridade antecipada de Pedro II. Nada mais brasileiro do que a construção de emancipação antecipada, ainda que imperial.

        O jovem primogênito, duplamente órfão, encontraria tutores do valor de um José Bonifácio de Andrada, que colocaria os fundamentos para um grande monarca do século XIX. O Império do Brasil na verdade seria uma grande república e conduziria o Povo a dez lustros de democracia, a ponto de que a quartelada que derrubou Pedro II fosse designada por estadista argentino como o fim da última república sul-americana.

       O pronunciamiento militar trouxe de volta as rebeliões e os confrontos. A despeito de grandes nomes, como Rio Branco, a Primeira República já nasceu velha. Por baixo dos pernósticos oradores e do vestuário inadequado para um país tropical, a ordem estabelecida mascarava a violência nas províncias, e as pacificações sangrentas, de que Os Sertões de Euclides da Cunha nos mostram um exemplo.

       O ciclo de Getúlio Vargas viria depois, estendendo-se de 1930 a 24 de agosto de 1954. No intermezzo, a Constituição de 1946 de que Vargas se empenharia em cumprir, quiçá na mais amarga ironia da história brasileira. O seu suicídio e entrada na História, lhe sinalizaria a redescoberta pelo Povo brasileiro de o que perdera na manhã de 24 de agosto. Pela violência extrema, mas individual, Getúlio, com o próprio sacrifício, trouxe multidões para as ruas que lhe prantearam o valor e lhe aquilataram o significado, varrendo de cena os que brindavam pelo desaparecimento político da velha nêmesis.

       A chamada redentora não é senão a farsa que sói suceder às tragédias. Por peculiar traço, teria mais ou menos a duração do fascismo do duce Benito Mussolini. A violência voltaria à cena, com afinco e extensão que surpreendeu a muitos. Trouxe manifestações – em geral nos porões e nos presídios – de sevícias e brutalidades, enquanto na face externa vestiam a carantonha do adesismo ou do reencontro com as fantasias da opressão que sóem caracterizar esse fosco, plúmbeo domínio.

       Sua contribuição à política dizimaria as grandes lideranças civis, mas, consoante a regra não-escrita, com muitas baixarias e humilhações de varões da República, porém com mortes de brasileiros, muitos dos quais permaneceram insepultos por uma Comissão da Verdade que muito a la tupiniquim não disse ao que veio, e tampouco ousou ser o prenúncio do império do poder civil.

       Alguns afirmam – e essa interpretação tende a crescer diante de muitos líderes que se dizem revolucionários – que a revolução ainda está por ser feita, à moda talvez da mexicana (mas, cuidado!, se atentarmos no que ocorreu com os chamados revolucionários do P.R.I.).  A violência que se abate sobre o Povo brasileiro é diuturna. Se alguém quer experimentá-la, basta frequentar favelas ditas pacificadas, como o Complexo do Alemão, por exemplo, para que se tenha ideia dos riscos que se abatem sobre as comunidades que lá, por falta de escolha, devem viver.

        O Brasil não é mais o país pitoresco do Zé Carioca e de Carmen Miranda, mas tampouco passa imagem de Sétima Economia Mundial. Vemos um país com as chagas dos presídios (masmorras medievais como a de Porto Alegre e a de São Luís), mas não nos enganemos com a esmagadora maioria das outras cadeias,  visitadas pelo tráfico e o império de corrupção  específica, que pouco têm a ver com a outra, combatida pelo juízo do Mensalão (Ação Penal 470) e agora pelas ações da Lava-Jato e sua descendência.

       Não é a primeira vez que cito a máxima de Lord Acton – o poder corrompe e o poder absoluto corrompe de forma absoluta. Através do Mensalão - de que o Ministro Joaquim Barbosa seria o grande condutor, inclusive por intermédio de teoria específica para a caracterização penal - se pensara haver qualificado a húbris de estrutura petista no intento de conduzir o Congresso.

          Não obstante, através da operação Lava-Jato, do Ministério Público, e do Juiz Sergio Moro, novas balizas foram colocadas na repressão da criminalidade e do insano projeto petista de aparelhar a Petróleo Brasileiro S.A., com o que resultou o longo interregno na Petrobrás, com a corrupção prevalente, através das propinas e da cartelização das grandes empreiteiras, com molestos resultados para a nossa maior empresa.

          Somente por meio da invocação da máxima de Lord Acton, se pode ter ideia da insanidade desse plano de colocar na prática a Petrobrás como financiadora de um grande partido, de maneira a que alcançasse no Brasil o status que teve o famigerado PRI no México, como detentor do poder (havia três ou quatro outros partidos, que eram preservados como reféns de uma inexistente pluralidade partidária. Existiam apenas para dar uma caução democrático, que era, na verdade, partido único, pois enfeixava todo o poder).

           Os projetos como o do Petrolão são decorrência da circunstância de que a corrupção abrangente acaba por ‘auto-justificar-se’, por força da ilusão do controle supostamente total das entidades envolvidas. A esse grupo de beneficiários diretos e indiretos, se agrega um outro, que recorre ao artificialismo do não-conhecimento (que mais parece aquele biombo de seda que protegia o imperador chinês das vistas do alto-servidor que vinha submeter questões para a decisão do soberano). Esse silêncio não é outra coisa que a omertà siciliana. O interessado, tudo sabendo, finge nada saber. Esses papéis também se inserem no drama da Petrobrás, por não ser humanamente possível imaginar do exercício de um poder no vácuo, com acompanhamento diuturno das questões da empresa, mas pontual ignorância no que tange aos ditos malfeitos ou corrupção.

            É nesse contexto que deve ser entendido a oportuna informação transmitida na coluna de sábado, onze de abril corrente, por Merval Pereira: “O procurador Carlos Fernandes Santos Lima definiu a Operação Lava-Jato como ainda ‘no início’ e disse que ela levará as investigações ‘por mares nunca dantes navegados’, numa alusão a áreas tidas como intocáveis até o momento.”  E para que o leitor não perca o fio da meada, nem deixe escapar a apreensão pela relevância dos novos passos dessa Operação, o articulista observa: “É interessante notar como o juiz Sérgio Moro e os procuradores do Ministério Público têm a noção exata de que precisam do apoio da opinião pública para avançar nas investigações.”

             A ofensiva, para ter êxito, carece do apoio de uma opinião pública informada para que os passos seguintes sejam dados não só com segurança, mas também com a certeza de dar continuidade a uma busca que tem começo, meio e fim.

             Entra-se, por conseguinte, na fase de fechar o círculo, para que, além dos operadores do esquema, ele venha a ser complementado pelas redes auxiliares de apoio e tudo o mais, que porventura conste do mecanismo infernal, a que só faltaria agregar que é o capo dei capi(o chefe dos chefes). Na Itália, a operação da Justiça Mãos limpas, lograria enorme êxito, não só ao desvelar os chefes criminosos da Onorata Società, mas também deu morte política a parlamentares de grande renome, como Giulio Andreotti.

             O Povo brasileiro aguarda com compreensível ansiedade a eventual divulgação dos nomes das pessoas que até o momento não foram convocadas ou visitadas pelas autoridades judiciárias competentes.

( Fontes:  O Globo, coluna de Merval Pereira – Mares desconhecidos; Lira Neto - GETÚLIO, Companhia Das Letras, 3 vols. )

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