quarta-feira, 23 de abril de 2014

Era uma vez ...

                                                       

        Ainda nos anos cinquenta a rua Saint Roman – ladeira que sai da Sá Ferreira e sobe o morro – era uma via tranquila, ladeada por casas de classe média. Recordo-me que certa feita, junto com amigos e colegas, estive numa dessas residências, para ver sessão de cinema de diplomata brasileiro. A própria Sá Ferreira era outra rua calma, ladeada por prédios de qualidade, muitos deles dando as costas para o morro onde ainda não havia a favela do Pavão-Pavãozinho.
      Não muito depois todo aquele entorno de serenidade se modificaria. Com a abertura do túnel Sá Freire Alvim – ligando a artéria da Barata Ribeiro à Raul Pompeia – essa última, de plácida rua, praticamente sem tráfico, foi transformada em via de ligação não só entre o Posto Seis e o restante de Copacabana, mais também daria acesso através da Rainha Elizabeth ao Arpoador e sobretudo Ipanema.

     Começava, assim, a transformação daquele final de Copacabana, eis que ruas de bairro antes sonolentas e aprazíveis foram repuxadas para finalidades que até então se quedavam distantes de suas calçadas bem-cuidadas e que muita vez pareciam sair de um poema de Drummond acerca dos encantos dos arrabaldes.

     As mudanças nessa vizinhança – cujos braços hoje vão dos contrafortes de Ipanema e Lagoa, de um lado, e do entorno da Sá Ferreira e da Bulhões de Carvalho, entre os postos cinco e seis de Copacabana, de outro  -  têm o seu epicentro na favela do Pavão-Pavãozinho. Na política de pacificação das comunidades no Rio de Janeiro, levada à frente pelo Secretário José Mariano Beltrame, também essa ganhou a sua UPP, que é o símbolo-distintivo da entendida articulação da antiga favela com o asfalto da cidade.

      Para muitos, as UPPs são a sinalização da transformação – uma espécie de superação da cidade partida de que nos falara, de forma memorável, o cronista Zuenir Ventura.

      No entanto, as Unidades de Polícia Pacificadora, distribuídas pelo Rio de Janeiro, desde que tal política foi encetada na favela do Morro de Santa Marta, se têm sido vetores de esperança – e não só para as comunidades em que foram implantadas – vêm até o presente se espichando em uma trajetória, na qual a confiança em melhores dias tem repetidas vezes sido cruzada por disturbantes imagens de suposta reencarnação daquelas aldeias Poniatowski, que marcaram a longínqua visita da Tzarina Catarina a Grande a vastas glebas de seu Império.

       Os jornais de hoje e ontem a tevê trouxeram com a brutalidade costumeira dos dias correntes a revolta das comunidades do Pavão-Pavãozinho, pela morte de um seu morador, integrante do programa ‘Esquenta’ de Regina Casé, encontrado morto em creche dessa favela. Douglas Rafael da Silva Pereira, de 26 anos, fazia parte do elenco desse programa vespertino da Rede Globo, e foi o estopim do protesto, pela suspeita de ter sido espancado pelos PMs da UPP.

      A indignação dessa gente diante de o que seria ulterior violência da guarnição da Unidade Pacificadora veio súbita e com a força das reações desde muito sopitadas. O protesto abarcou toda a vizinhança, fechando a estação de metrô, General Osório, o túnel Sá Freire Alvim (em que se abrigaram as forças da PM), e as demais artérias dos postos cinco e seis de Copacabana, além dos quarteirões de Ipanema servidos pelas ruas e avenidas bloqueadas.

      Quiçá o maior símbolo do desafio que confronta a dita política de pacificação esteja inserido em duas discretas linhas de  chamada de primeira página da Folha de S. Paulo: Cercados na UPP do morro, dez PMs foram resgatados pelo BOPE”.

      É difícil não ver nessa imagem o que realmente confronta  a política de pacificação do Secretário Beltrame. Enquanto a P.M. for considerada um quisto dentro da comunidade, um fautor de discordância e revolta ao invés de promotora  de união, o simbolismo da imagem – de que só o Batalhão de elite da PM tem condições de salvar os PMs da gente a que são supostos proteger – não faltarão indícios e chamados para que se reforme essa política, de maneira a que seja um vetor de paz e de reintegração das comunidades das favelas dentro da cidade grande.

     Senão a Cidade Partida de Zuenir Ventura continua a prevalecer, com todas as explosões de uma raiva que não é nem entendida, nem resolvida, com mastros e bandeiras, a tremularem ao vento.

 

(Fontes: O Globo, Folha de S. Paulo) 

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