sábado, 15 de fevereiro de 2020

Pessoas viram Livro na Dinamarca


                            
      Na biblioteca de Albertslund, em Copenhague, estudante louro escolhe o título "Solitário", entre dezenas de livros. Poucos minutos depois,  homem de 38 anos e cabelos escuros caminha ao encontro do jovem. Sentam-se em torno de uma mesa e a leitura começa.
          Oscar Zytnik, o homem de cabelos escuros, vem a ser o livro. Aske Bruun Schmidt, o jovem louro, seu leitor.  Nas bibliotecas humanas, pessoas tornam-se  livros, e seus  títulos, suas histórias - muitas delas sobre o preconceito e suas variações.
           A ideia  do projeto visa a que, ao ouvi-las, os leitores se tornem mais tolerantes. Ou como diz Ronni Albergel, criador do programa, para que as pessoas "não julguem um livro pela capa".
             A primeira unidade das Bibliotecas Humanas, criadas em Copenhague, completa 20 anos em junho. Hoje, o projeto já se expandiu    para outros 84 paises - em seis continentes - entre eles o Brasil. Na capital dinamarquesa, os eventos com livros humanos acontecem de duas a três vezes  por mês em bibliotecas públicas, escolas e universidades.
                "Vamos dizer que você tem medo de pessoas com HIV ou é inseguro sobre quem crê no Islam ou até que é potencialmente homofóbico. Conhecer essas pessoas pode ajudá-lo a entender melhor os grupos que representam e as comunidades de onde vem", diz Abergel.
                 No início do mês, a biblioteca de Albertslund sediou um encontro, e Zytnik pode compartilhar  sua história.
                  O homem de cabelos escuros sofreu bullying na escola por, segundo ele, ser calado e não ter talento para esportes. Aos doze anos, foi amarrado sem roupas a um poste  durante o inverno de - cinco graus da Dinamarca. Ficou uma hora com as mãos atadas, até ser encontrado por policiais, que lhe ofereceram roupas para ele se aquecer.
                  "Eu tinha amigos na infãncia , mas que também sofriam bullying apenas por serem meus amigos. Depois que se afastaram, fiquei ainda mais sozinho. É muito difícil saber em quem posso confiar, porque foi assim minha vida inteira", diz ele, ao explicar o porquê de seu título ("solitário"). Após a leitura, Bruun-Schmidt diz que "aprendeu como pode ser difícil interagir com outras pessoas, porque quando você vê alguém solitário, pensa que a pessoa pode simplesmente tentar falar com pessoas novas".
                    Entre as opções de livros humanos, na lista do evento acompanhado pela reportagem da Folha, havia títulos como "cego", "refugiado", "muçulmano", "perseguida pelo marido" e  "Autista".

                    Nanna Juul Olsen, 28, tem dois títulos na Biblioteca Humana de Copenhague.Em uma mesa de conversa, a voluntária dinamarquesa é o livro "Bipolar". Minutos depois, em outra leitura, é "Bissexual".  O tema da conversa depende da escolha do leitor. Em alguns casos, quando os leitores perguntam relações e diferenças entre os livros, ela é, como na vida real, os dois títulos ao mesmo tempo.
                     Em "Bipolar" explica como o estágio depressivo da doença a deixa sem energia para sair de casa. Por anos, Nanna tentou trabalhar, mas deixava de ir ao emprego por não ter forças para se levantar da cama. "Compartilhar minha história ajuda as pessoas a desfazerem o estigma de que pessoas com doenças psiquiátricas são perigosas", afirma.
                        "Toda vez que sou retirada da biblioteca escuto uma pergunta para a qual eu não estava  preparada. Então aprendo algo sobre mim, porque escolho responder. E eles também aprendem, porque respondo a todas as perguntas. Os dois lados sáem mais sábios."

                          "Protagonista dos títulos 'Refugiado' e 'Muçulmano', Abdollah Shakib, 32, compartilha a história de como sua família fugiu da guerra civil no Afeganistão, em 2000, para a Dinamarca. Pouco depois do recomeço no novo país, veio o atentado às Torres Gêmeas, em Nova York, em 2001, e a caçada a Osama Bin Laden no Afeganistão.  Seu país era debatido no mundo inteiro.
                             "Meus colegas na escola me interrogavam se eu faria algo do tipo com eles. Eu dizia que não, mas não resolvia o problema.  A partir daí fiquei sem muitos amigos", conta Abdollah. Hoje o afegão é fluente em dinamarquês e  trabalha como geólogo em Copenhague. Há três anos, decidiu participar das  Bibliotecas Humanas.
                                "Eu também tento entender a razão de as pessoas fazerem o que fazem e falarem o que falam. Por isso estou aqui, para me conectar com as pessoas. Eu também tento remover meus preconceitos."

                                   No Brasil, as Bibliotecas Humanas foram organizadas em Manaus, na Universidade Federal do Amazonas, no ano passado.  Abergel, criador do programa, diz que o projeto - sem escopo lucrativo - ainda precisa de parceiros locais e espaços para outros eventos.
                                    Tanto os interessados em organizar filiais da biblioteca, quanto os que querem compartilhar suas histórias podem se tornar parceiros do programa por meio da página oficial da iniciativa.
                                       Não estamos aqui para convencer as pessoas de certa opinião ou visão. Estamos aqui para publicar informação, e o que você faz com essa informação é responsabilidade sua. Esperamos que você (a) use para entender melhor e respeitar as pessoas diferentes de você", diz o autor do projeto dinamarquês, Ronni Abergel.   

Fonte: Transcrição com algumas pequenas modificações dessa excelente reportagem da Folha de S. Paulo.   
Decerto, não é só na Dinamarca que existe bullying, esta união dos que se crêem mais fortes contra os supostamente mais fracos - o estrangeiro, o forasteiro e o diverso - são personagens preferidos dessa covarde união de os que se acreditam em posição de vantagem contra aqueles ocasionalmente mais fracos ou singularizados pelo fato de serem estranhos ao ambiente, estrangeiro, ou de qualquer forma destituídos de formas convincentes de proteção e de eventual castigo (porque a covardia é um dos traços psíquicos essenciais de quem recorre ao bullying)                

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