quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Putin e Erdogan senhores da paz síria ?

                              

          É difícil não ver com desalento a paz na Síria, administrada por gospodin Vladimir V. Putin e Recip T. Erdogan, respectivamente grão- senhores da Rússia e da Turquia.

          Iniciada em março de 2011, por corajosos partidários da democracia na terra do tirano Bashar al-Assad, e pensando seguir no rumo da Primavera Árabe, lançada pela auto-imolação de modesto verdureiro tunisiano, Mohamed Bouzizi, como condiz aos grandes movimentos da Humanidade, essa Primavera, a um tempo tão caluniada e vilipendiada, torpemente combatida e temida, ela se afirma como um fanal do Terceiro-Mundo Árabe, com alguns inegáveis êxitos, magníficas tentativas malogradas, e um escárnio em progresso, que é a possibilidade, crua e nua, de o déspota que lhe dera origem - que sucedera ao pai, Hafez al-Assad - venha eventualmente a subpresidir  à refundação do tirânico protetorado.

          Como em toda a revolução - e a da Terra da Passagem disso não difere - no respectivo início, em damasquinas passeatas que justiça pediam (pensando nos reclamos de Deraa ao Sul) - um pouco de bom-senso, misturado com doses moderadas de inteligência - teria sido marco de concórdia, com a silenciosa salvação de milhões de infelizes e mártires.

           Para perdurar no poder, como ora parece ser o caso, será forçoso reconhecer que além de umas poucas e franzinas qualidades, Bashar logrou também subornar a sorte para o seu lado, embora tal lhe haja custado caro, e mais ruinoso ainda promete ser o porvir, com essa condição de semiprotetorado em que o regime alauíta ameaça transformar-se.

            Leão no nome, Bashar, por ora, carece de ser cordeiro, e abaixar a cabeça ao corredor polonês de humilhações por que terá de passar.

            O seu porvir, por enquanto se anuncia transido de dúvidas e talvez cruéis trampas. Pelo que fez, e pelo que deixou fazer, não é hora de queixar-se. Ele próprio, como modestamente descrevi em relato pregresso, foi como antigo potentado africano em visita de súplica ao Senhor do Kremlin. Deixando a majestade para os próprios infelizes súditos, para ele a audiência seria a da cessão da liberdade em troca da salvação in extremis. Dada a ambição de grão-duque Vladimir Putin em restabelecer a antiga soviética pujança, Bashar trazia, com a compunção do cliente carente, a secreta certeza de que prevaleceria a seu modo, cedendo a própria soberania, em troca de favores que lhe acenavam com o permanência no poder, posto que com a cessão da antiga autonomia.

                Para Bashar, a travessia está longe de ser terminada. Muitos perigos ainda o contemplam. Por ora, a ameaça maior vem da aliança russo-turca, uma estranha criação que só a necessidade política pode engendrar.

                Mas para o Presidente sírio a situação poderia ser ainda pior,  caso Barack Obama tivesse concordado com o plano de ajuda aos rebeldes que lhe fora apresentado pela Secretária de Estado Hillary Clinton, com o apoio das demais autoridades americanas nesta área.

                O que ajuda Obama é que o seu não foi há bastante tempo. Os que não esqueceram, hoje são vozes no deserto. Podem gritar e até como no filme Lawrence of Arabia (1962), ouvir o clamor respectivo repetir-se várias vezes na monotonia do eco. Mas, como naquele episódio da obra prima de David Lean, serão igualmente brados que podem repetir-se ad infinitum, mas permanecerão tão belos quanto inócuos.

                   O que decerto não ajuda a Barack Obama é que será pequeno o espaço - se houver - para a cadeira estadunidense nas negociações de paz. O 45º presidente pode ter apodado Putin de presidente de poder continental, mas o Senhor do Kremlin garantiu senhora presença na mesa de negociações desta paz de campos santos[1], que em nada pode ser comparada com a do americano, pelo volume dos respectivos aportes, e, sobretudo, pela velha regra da influência determinante na paz para quem a criou com a faina da guerra.     
  
                 Há inegável ironia no que tange a Barack Obama em termos a conflitos armados. Pelo seu marcante discurso de 2003 ele começou a empunhar a presidência americana, diante do rotundo e ruinoso fracasso do antecessor George W. Bush na guerra do Iraque. Nas porfias, o que conta será como terminam. E se aquela lhe trouxe a Casa Branca - e a negou, por primeira vez, a Hillary, por apoiar a aventura iraquiana - vemos agora que a opção da paz pode ser uma aparente má-partida, se nos permitirmos ficar sem o peso necessário para construir a pacificação duradoura.
                                                                                                                                    ( a continuar )


(Fontes: The New York Times, Lawrence of Arabia de David Lean, Folha de S. Paulo)



[1] Assim os italianos chamam os cemitérios... 

Nenhum comentário: