sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Putin e Erdogan senhores da paz síria? (II)

                    

         O governo Assad   e  o seu protetor,  a  Rússia  de  Vladimir Putin, anunciaram na 5ª, 29 de dezembro, que haviam celebrado acordo de cessar-fogo com os rebeldes sírios, e seu principal aliado, a Turquia, de Recep T. Erdogan.

          Essa declaração pode ser nova e determinante evolução nessa longa guerra civil, que terá causado cerca de quinhentas mil mortes, entre combatentes e civis envolvidos no conflito, que já dura há quase seis anos.

          Encetadas pelos distúrbios em Deraa e, posteriormente, na capital Damasco, as hostilidades se internacionalizaram, com a participação da milícia xiita do Hezbollah, que na prática é um braço armado dos ayatollahs em Teerã.

          Não é por acaso decerto que este novo acordo de cessar-fogo tenha sido negociado e anunciado em Moscou. Se ele for respeitado no terreno - o que os anteriores não foram - a prevalência da tríade Síria, Rússia e Turquia se afirmará na sua eventual implementação. De um lado, o regime iraniano terá de retirar a própria milícia Hezbollah - o que não será de fácil deglutição dada a sua longa participação na sustentação do regime Assad, em especial nas horas mais difíceis, quando a Liga rebelde parecia prestes a levá-lo de vencida.

           Por outro lado, a ausência dos Estados Unidos das negociações de paz marca a redução da influência estadunidense  na determinação do pós-guerra, o que reflete tanto as realidades no terreno, quanto as incertezas de Barack Obama.

           Se este cessar-fogo firmar-se - ao contrário dos anteriores - há ainda muitos obstáculos no caminho da paz. De um lado, as forças excluídas do cessar-fogo terão tratamento diferenciado. O Exército Islâmico, nas suas bases em Raqqa e alhures promete pertinaz resistência, que a batalha pela retomada de Mosul no Iraque já o indica.

           Se com a queda de Aleppo, a força rebelde ficou bastante enfraquecida, ainda faltam áreas - como as cercanias de Damasco - que exigirão cuidados especiais do regime Assad.

            De todas as forças no terreno, os curdos estão melhor implantados, sobretudo ao norte, e a sua coexistência com o regime sírio deverá demandar concessões de Damasco.

             O cessar-fogo não será, por certo, de fácil implantação. Não só o desmantelamento do E.I., por exigir muito empenho da coalizão que apóia o presidente Bashar al-Assad, deve demandar tempo, a fortiori diante da situação da grei do califa al-Bagdahdi - cujo isolamento, se facilita a campanha pela restauração, também proporciona às suas hostes a energia do desespero, pela sua falta de aliados e opções.

              Por outro lado, a exigência da Turquia que o presidente da Síria seja afastado é um complicador notadamente para Vladimir Putin que investiu demasiado em al-Assad para eventualmente concordar com tal veto.

               A Turquia e a Rússia são no presente aliadas, mas gospodin Putin não ignora o longo histórico de oposição entre a guardiã dos Estreitos e o poder russo. O atual estado de coisas, que enfraquece o Ocidente, pode não perdurar por muito, eis que os fatores da divisão não surgiram por acaso.
               Tal não impede, contudo, que no curto prazo a posição do Ocidente - e notadamente de Washington - se descubra em desvantagem nesse grande jogo que se mede não em anos mas em décadas.
                Se desabar, como tudo parece indicar, o fortim  do Daesh (como é designado em árabe o ISIS) - a conformação do Oriente Médio não será necessariamente a mesma do formato ante-bellum, pois a etnia curda, malgrado a oposição turca, pode lograr estabelecer a primeira base territorial de o que lhe vem sendo negado desde a dissolução do império  otomano, determinada pelos tratados de paz relativos à derrota de Constantinopla na Grande Guerra.

                  Como se sabe, a tentativa helênica de manter a milenar implantação na Anatólia de milhões de gregos asiáticos foi derrotada por Mustafá Kemal (daí o cognome de Ataturk), ao cabo de decisiva batalha, que forçaria a chamada catástrofe, que foi a transferência de mais de dois milhões de gregos para o solo da Grécia européia.
  
             Se o projeto atual de restauração da Síria sob Bashar al-Assad lograr afirmar-se, a sede da liberdade que repontara nas passeatas de Damasco, e que ora se vê provavelmente contrariada, sob a atenta guarda do Senhor do Kremlin, poderá manter-se ou não, atendidas as forças no terreno.

                 É decerto difícil que a ditadura dos Assad tenha ganho a new lease of life[1], sobretudo se tivermos presente todo o sofrimento que o ainda jovem ditador Bashar cobrou do povo sírio, que antes vivia em condições mais favoráveis do que as populações à sua volta.

                 À vista dos exemplos na História, é uma aposta que poucos bookmakers concordariam em bancar. Se a liberdade, uma vez provada, se afigura como bem a ser tratado com todo o desvelo, cabe perguntar se o árduo caminho da reconstrução poderá ser encetado, como se todas as pregressas maldades - e padecimentos consequentes - devessem ser suportadas em silêncio ou na estranha paz dos campos santos.


( Fontes: The New York Times, Folha de S. Paulo, Der Neue Brockhaus)   



[1] nova concessão de vida

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