Dada a importância da matéria, ainda
que seja para caracterização futura de procedimentos institucionais de dúbia
legitimidade, semelha de toda importância que procure sumarizar o que fez o
Diretor do Federal Bureau of Investigations (FBI), James Comey,
quanto à situação jurídica do servidor particular de e-mails do computador da candidata democrata à Presidência, Hillary Clinton.
Os leitores desta coluna já terão
lido meus comentários sobre a questão. Agora me calo, para que se tenham
presentes as observações de David Cole,
articulista para questões jurídicas da New
York Review, e Professor de Direito da Universidade de Georgetown, na
cadeira de Direito e Políticas Públicas.
A premissa do articulista é a
seguinte: não importa o que se possa dizer sobre a recém-concluída eleição
presidencial de 2016, uma coisa é certa: o Diretor do FBI James Comey
desempenhou um papel de tamanho engrandecido e excepcionalmente fora de
propósito.
Com efeito, o seu anúncio altamente
prejudicial, a 28 de outubro, a apenas onze
dias antes da eleição, que ele tinha reaberto investigação sobre o servidor
privado de e-mails do computador de
Hillary Clinton, iria garantir que os últimos e críticos dias da campanha fossem
tomados por insinuações e suposições desencadeadas pela ação do diretor do FBI.
Então, quando Comey anunciou em
cinco de novembro, a dois dias da eleição, que, de acordo com renovado exame da
matéria, ele de novo não encontrara fundamento para acreditar que (a senhora)
Clinton houvesse cometido algum crime, essa declaração apenas sublinhou o
caráter fora de propósito do anúncio de 28 de outubro. Houvesse ele conduzido a
análise em sigilo, como requerem as regras do Departamento de Justiça, a
inteira questão teria sido resolvida sem qualquer interferência com a eleição.
Como as coisas aconteceram, o seu anúncio de 28 de outubro alterou de forma
dramática a trajetória da campanha, desviando a atenção dos consideráveis
problemas enfrentados por Donald Trump, e inevitavelmente influenciou as
escolhas de muitos votantes antecipados.
Comey tornara pública a renovação
da investigação contra a política e as regras do Departamento de Justiça, desrespeitando
as objeções do Procurador-Geral e várias outras autoridades do Departamento de
Justiça. Ele procedeu dessa forma, a despeito de não haver sequer visto as
novas provas, e muito menos se tais provas acaso sugerissem alguma ação delituosa de parte da senhora
Clinton. O anúncio como era previsível caíu direto nas mãos de Trump, que de
imediato aproveitou a ocasião para
repetir a sua acusação de que Clinton
deveria ser presa (locked up). Nada
disso deveria ter acontecido; sob a prática desde muito estabelecida pelo
Departamento de Justiça, Comey deveria ter mantido silêncio acerca do fato da
ulterior investigação, em especial estando tão próximo da eleição.
Se acaso a intervenção
imprudente de Comey mudou o resultado da eleição presidencial, de toda maneira
o prejuízo quanto a integridade de tanto os processos político quanto o
criminal já tinha sido feito,.
O processo criminal tinha sido
politizado, e o processo político manchado pelo abuso do poder oficial. A questão por resolver é o que deveria
acontecer agora. Minimamente pelo
menos, as normas políticas do
Departamento de Justiça que Comey violou devem ser reforçadas e formalizadas de
modo a assegurar que isto nunca mais ocorra.
A primeira regra - que Comey
não levou em consideração - requer que as autoridades de implementação da lei
(law enforcement officials) devem evitar
comentários públicos sobre investigações em curso. As diretivas do Departamento da Justiça sobre
"Revelação de Informação concernente investigações em curso"
estabelecida no Manual dos Procuradores dos Estados Unidos, estabelecem que
como disposição geral as autoridades "não devem responder a perguntas
acerca da existência de uma investigação em curso ou comentar acerca de sua
natureza ou progresso." A regra reconhece que acerca de "matérias que
já tiveram substancial publicidade" ou quando a segurança pública o requer,
"comentários a respeito ou confirmação de investigação em curso podem
necessitar de ser feitos."
Esta exceção é obviamente de
caráter estreito. A regra geral de
"sem comentários" tem o objetivo
de impedir promotores e autoridades de aplicação da lei de usarem a
própria autoridade para jogarem insinuações sobre as reputações dos cidadãos; o
seu trabalho é o de conduzir investigações, e não expor avaliações públicas de
caráter.
O pecado original de Comey
nesse respeito foi a sua altamente inusitada conferência de imprensa em julho,
na qual, ao invés de simplesmente reportar que ele tinha encerrado a investigação
relativa aos e-mails, porque ele não
encontrara qualquer indício de violação por Clinton de qualquer lei, ele foi
além ao censurá-la como "extremamente
descuidada". Ainda que o código penal federal seja por certo bizantino, a falta de cuidado não é um
crime federal, e portanto, como Diretor do FBI a Comey não cabia em absoluto
dar a respeito a sua opinião pessoal. A autoridade do investigador de maior
hierarquia na aplicação da lei vem acompanhada pela responsabilidade de sopesar
as próprias palavras e ações com todo cuidado; se algum reparo deva ser feito
neste caso, foi Comey quem fora "extremamente
descuidado".
Depois de violar uma
vez a regra contra comentários públicos, Comey então foi em frente, valendo-se
daquela violação para justificar outra infração. Em e-mail
para a sua equipe ele defendeu o seu
passo extraordinário de anunciar publicamente a retomada de uma investigação
penal confidencial (closed), ao
afirmar que ele tinha prometido manter o Congresso informado quando ele
testemunhasse em julho acerca do encerramento da investigação.
A missão do FBI,
contudo, não é proporcionar ao Congresso relatórios públicos de progresso acerca de investigações penais, mas conduzir tais investigações de forma confidencial, ao menos e até que elas justifiquem uma
incriminação ou fechamento (dismissal). E o "relatório" de 28 de
outubro, uma breve carta para o Congresso, tinha tudo para ser enganoso ('misleading'). O anúncio se seguiu à
descoberta de e-mails de
Huma Abedin, a chefe do staff da Senhora Clinton no Departamento de Estado, que estavam no
computador de Anthony Weiner, marido já separado de Abedin, e que está
submetido a investigação separada, por alegamente manter relações de "sexting" com menor de idade. Nem
Comey, nem o seu departamento tinham na verdade lido qualquer dos e-mails recentemente descobertos quando ele prontamente notificara
o Congresso, e por isso não tinha qualquer base para acreditar que eles
constituíssem prova de eventual delito. Sem embargo, esse anúncio, não obstante,
lançou uma rajada de renovadas acusações contra Clinton.
A segunda
política desrespeitada por Comey é ainda mais fundamental. Tal política, que tem sido endossada por
décadas pelos Procuradores-Gerais dos dois partidos, requer que as autoridades que
se ocupam da aplicação da Lei evitem indiciamentos mesmo já completados contra
candidatos a cargos públicos dentro de sessenta dias para a eleição. Como, respectivamente, explicaram ao Washington Post, Jamie Gorelick e Larry
Thompson, ex-vice-procuradores gerais nas administrações Clinton e George W.
Bush:
Há décadas
atrás, o Departamento decidira que no período de sessenta dias anterior à
eleição, deve-se evitar indiciar indivíduos que estejam disputando um cargo
eletivo, assim como sustar a divulgação de quaisquer medidas de
investigação. O raciocínio para tanto
está na circunstância de que, por mais importante seja a aplicação da Justiça, e por mais relevante seja para o
público saber o que a Justiça sabe, diante da circunstância de que tais alegações
não possam ser devidamente julgadas, por apresentarem essas ações ou revelações
o risco de afetarem o processo político.
Um memorandum que reflete essa escolha tem sido regularmente expedido a
cada quatro anos por muitos procuradores-gerais
e por um longo tempo, inclusive em 2016.
Esta norma de
ação é aplicada em todas as eleições, desde aquelas para simples juntas escolares
locais, até àquelas destinadas ao mais alto cargo da Nação. Dentre dessa
política, mesmo se o FBI tivesse coletado provas suficientes para
acusar Hillary Clinton formalmente pela transmissão consciente de informação
confidencial ou sobre outro aspecto de violação da Lei penal, este fato não
deveria ter sido tornado público até depois da eleição.
Não obstante, James Comey decidiu torná-lo
público, a apenas onze dias antes da eleição presidencial, mesmo sem dispor de base
para acreditar que as "novas" provas que lhe chegaram às mãos eram
realmente novas, sem falar de não ter qualquer prova de qualquer crime.
Não só tinham os funcionários do FBI não tinham
revisto os e-mails no computador de Weiner quando do anúncio de Comey a 28 de outubro.
Eles não tinham sequer ainda recebido qualquer autorização judicial para
examiná-los (a autorização foi obtida no domingo seguinte). Assim, o FBI não
dispunha de nenhuma base para acreditar que os e-mails ensejavam qualquer prova
de conduta criminosa da parte da senhora Clinton. De fato, como agora sabemos,
eles não ensejavam nenhuma prova incriminante, e muitos eram simples duplicatas
de e-mails anteriormente já revistos.
Por importante e largamente aceita que
seja a política contra interferência no que tange a uma próxima e imediata
eleição como se verifica dentro do Departamento de Justiça, essa política não
está formalmente refletida em qualquer
regra escrita. O memorandum que Gorelick e Thompson citam se refere somente
a investigações de "crimes eleitorais", e não a outros crimes. E a
regra dos sessenta dias também não está refletida no memorandum. É "costume", como foi dito a David
Cole. Mas se nós devemos evitar a repetição deste grande erro, a norma política deveria ser colocada por escrito e
integrada nos códigos competentes.
Alguns observadores asseveraram que Comey violou a Lei Hatch, ao tornar pública a
renovada investigação, mas David Cole não vê prova que embase esta
acusação. A Lei Hatch torna crime para
funcionários federais utilizar a sua
"autoridade oficial ou influência com o objetivo de interferir com ou afetar o resultado de uma eleição". O
anúncio de 28 de outubro certamente afetou os resultados da eleição de 2016,
mas não há prova de que ele tomou tal ação com esse objetivo, e na falta de tal
motivação, a Lei Hatch não está implicada.
Com
efeito,Comey se orgulha de ser independente.
Enquanto servia como vice-Procurador Geral sob o Presidente George W.
Bush, ele enfrentou bravamente o Conselheiro da Casa Branca Alberto Gonzales,
que esta procurando pressionar o hospitalizado
e sedado Procurador-Geral John Ashcroft a aprovar um programa da NSA
(Agência Nacional de Segurança) cuja
legalidade muitos funcionários do Departamento de Justiça tinham
questionado. Mas a independência pode
ser levada muito longe. Como disse outro
antigo vice-Procurador Geral para George W. Bush, George Terwilliger,
comentando a respeito das recentes ações de Comey: "Há uma diferença entre
ser independente e voar solo." Há
fortes razões para regras que limitem
comentários públicos sobre investigações criminais em andamento, e também
interferência em eleições muito próximas.
Um sentido elevado de sua própria "independência" não dá
excusas para quebrar essas regras.
Comey estava sem dúvida preocupado em
que, não houvesse ele informado o Congresso das novas provas, e que fosse
depois da eleição sabido que ele as deixara de lado sem mencioná-las - e
presumindo que os e-mails fossem de alguma importância - ele poderia ter sido
objeto de críticas por seu próprio Partido Republicano, e também de parte
de Donald Trump. Mas tais críticas constituem um dos fardos que um funcionário
governamental responsável deve
suportar. Seguir as regras era a coisa
certa a ser feita, mesmo se tal redundasse em algum custo para a reputação de
Comey no seu próprio partido. Ao alçar a respectiva preocupação com a
sua reputação acima das regras, Comey será para sempre lembrado como o diretor
do FBI que abusou do poder de seu cargo ao interferir sem qualquer base em uma
eleição presidencial iminente.
(Fonte: The New York
Review. 8 de dezembro de 2016. David Cole: o que James Comey Fez.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário