A política intervencionista do Presidente
Vladimir V. Putin no que tange à Ucrânia não é um capricho atual. Como o
muito bem documentado livro da professora Karen Dawisha o demonstra, não
é de hoje que o Senhor do Kremlin alimenta tal intenção.
Com efeito,
pouco antes de sua tomada de posse na presidência em maio de 2000, um alentado
documento – Reforma da Administração do Presidente da Federação Russa – foi vazado
para o jornal Kommersant. Tudo indica
que esse vazamento procedeu diretamente da Administração Presidencial do Kremlin, sob ordens diretas do futuro
Presidente. Dentre as disposições do referido Plano, merece atenção especial a
seguinte passagem: “Se ele (o presidente) realmente quer assegurar a ordem
social e a estabilidade no país durante o seu governo, então o sistema de autogoverno
político não é necessário. Ao invés disso, ele necessitará de uma estrutura politica (autoridade) dentro
da sua Administração, que não só há de prever e criar situações políticas ‘necessárias’
na Rússia, mas na verdade estar habilitada
a manejar processos sociais e políticos na Federação Russa e nos países do
próximo exterior”.[1]
Não é só de gospodin Vladimir Vladimirovich Putin
essa postura paternalista no que tange ao exterior próximo – trocando em miúdos
todos os países limítrofes da maior nação em extensão territorial do planeta.
Essa atitude com relação aos vizinhos da Rússia está informada por uma suposta
superioridade do velho urso russo. A própria inserção desse programa de reforma
da Administração Presidencial mostra como se afigura natural que o Kremlin tenha condições de manejar (ou
manipular) processos sociais e políticos tanta na Federação própria, quanto nos
países vizinhos do próximo exterior.
Por mais
moderada que seja a intenção de gerir tais processos em países além-fronteiras,
acha-se aí claramente estatuído o suposto direito (que para o Kremlin seria natural) de manipulá-los
nas esferas social e política que são vistas como óbvias projeções do poder
imperial do Senhor de todas as Rússias.
Pelo que vem
sucedendo com a Ucrânia – desde a anexação da Crimeia em abril de 2014 – não resta
a menor dúvida que Putin tem uma interpretação bastante lata dos alegados
direitos da Federação Russa sobre os seus vizinhos. Todas as nações vizinhas –
e não apenas aquelas que integravam a União Soviética – têm fundados motivos de
preocupação. Tal inquietude, portanto, que hoje seria apenas de Kiev – a explosão
de artefato explosivo na cidade de Kharkiv,
no leste da Ucrânia, longe do front,
mas muito próxima de Belgorod, na Rússia, que matou duas pessoas e deixou onze
feridas – já é na verdade sentida como ameaça por diversos países que são
inseríveis nesse ominoso, mas ainda difuso processo.
Assim, os
episódios da Ossétia do Sul e da Abkhazia do Sul, na Geórgia, e da Transnístria,
na Moldova – que na prática fragilizaram ainda mais as pequenas Geórgia e
Moldova – constituíram tão só um exercício preliminar, na estratégia de Putin. Nesses
termos, se o ataque contra a Ucrânia continuar com a desenvoltura dos chamados ‘rebeldes’
apoiados e armados pelas forças russas (que intervêm sempre que necessário,
quando o exército de Kiev ameace os objetivos dos ditos ‘separatistas’) a situação
dos vizinhos que tem a infelicidade de situar-se no próximo exterior tenderá a
agravar-se.
Barack Obama faz por vezes
ameaças – lembrem-se da linha vermelha que não poderia ser transposta– e cunha
expressões depreciativas (recordam-se da Rússia como ‘poder regional’ ?), que
muita vez podem servir como marcos de ultrapassagens futuras.
Tudo o que
se conhece sobre o Presidente Vladimir V. Putin mostra como ele pode ser
determinado na consecução de seus projetos. Dessa maneira, é risível pensar que
um epíteto de menoscabo o fará retroceder ou conformar-se.
Se os livros
sobre a personalidade e a progressão de Putin como “O Homem sem Rosto”, de
Masha Gessen[2] e “Putin’s Kleptocracy”, de Karen Dawisha, nos apresentam um
personagem hábil e articulado, sem escrúpulos, com grande determinação,
inclusive na implementação de seus objetivos, como o demonstra a sua ação
coordenada para tornar realidade o programa de poder que explicitara para a opinião
pública russa, através do vazamento para o jornal Kommersant, tampouco deveríamos subestimá-lo no que tange aos seus
propósitos com relação ao exterior
próximo.
Ora, é
justamente isso que o Ocidente está fazendo.
( Fontes: Karen Dawisha,
Putin’s Kleptocracy, O Globo )
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