domingo, 24 de agosto de 2014

Lembranças de um Menino


                                           

          Menino ainda acompanhou acontecimentos que, mal sabia, marcariam o fim de longa existência política. Ao acordar na manhã de 24 de agosto ignorava a mudança radical que o ato extremo provocaria.

          Em agosto, após o atentado que vitimou o Major Rubem Florentino Vaz, a impopularidade do Presidente Getúlio Vargas que o cercava por toda a parte, das ruas até o Jockey Club, onde a previsível vaia seria sufocada por uma banda colocada ao pé da tribuna, não o surpreendeu, pois já se acostumara às vozes da oposição, cada vez mais alçadas e agudas a perseguirem, implacáveis, o Chefe da Nação.

         A imprensa, em todos os seus diapasões, fustigava Getúlio. Havia para todos os gostos: da estridência da Tribuna da Imprensa aos artigos de primeira página do vespertino O Globo, em que o companheiro de lutas João Neves da Fontoura, modulava noutro tom, em que com as atenções de estilo avançava um discurso que não era favorável ao velho conterrâneo.

         Com exceção da Última Hora, que defendia o Presidente, não se divisavam muitos partidários de Getúlio. Na própria televisão, dominava Lacerda e sua grei, com as exigências e incriminações a crescerem no compasso dos dias.

         Na noite de 23 para 24 de agosto, ele soube da reunião ministerial no Palácio do Catete.

         Concluída de madrugada, o rumor correu de que o Presidente aceitara tirar uma licença.

         A arrogância da Aeronáutica e o surdo apoio do Exército fazia correr na boca do povo, que não era para valer. Ele se licencia sim, mas não volta.

         De repente, no entanto, muda a chacota das ruas.

         É que no quarto do Presidente, de repente, um tiro de revólver ecoou.

         Como? Então o Presidente se matou?

         E não tardou muito para que a poeira baixasse. Emudece a estridência dos inimigos, militares e paisanos.

         Faz-se o vácuo da surpresa, a que sucede a dor do arrependimento.

         Acossado pelas campanhas e calúnias, ele se matou ?!

         E o mar dos impropérios recua.

         A notícia se espalha. E a conscientização, também.

         Outra gente aparece, e em muito maior número. O seu luto, será misturado a princípio, com um sentimento de culpa – por que deixamos que as coisas ficassem assim, e não aparecemos para dar-lhe o nosso apoio ?

           Mas a raiva se alimenta da realização embora tardia de quem estava certo, e merecia apoio, e não o recebeu.

           As aglomerações se transformam em multidões e em certos casos em turbas com sede de retribuição. São os empastelamentos de jornais, e as tentativas que falham, mas deixam a marca.

          Nas ruas, praças e logradouros a turba enraivecida e enojada se transforma em  Povo. Dir-se-ia um rio, imensa caudal  a portar nos seus ombros, o gigante morto, em impressionante cortejo sem ouropéis nem luxo, mas com majestosa dignidade, de que o menino só veria algo similar decênios mais tarde, em outro enterro nos ombros do Povão, o de JK, em Brasília, nas barbas da ditadura militar, no chamado Eixo Monumental.

           São impressões de um filme de que o menino ignorava ser personagem. 

            Na tarde de 24 de agosto, entra na fila de banca de jornal para comprar a edição extra de O Globo.  Na sua frente, dois homens jovens, com vestes melhores, conversam. Para o menino, são universitários.

            “Parece que deixou carta-testamento.”

            “É. Dizem que é apócrifa...”

             O menino ignora o termo. Chegando em casa, irá procurá-lo no dicionário.

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