Cinquenta Anos esta Noite
O livro de memórias de José Serra “Cinquenta Anos Esta Noite” nos relata os
anos que levaram a 1964, vistos pelo então presidente da UNE, o paulista José
Serra, a que se segue o trauma do golpe militar, em que o jovem personagem se
descobre em outro mundo, aquele dos perseguidos e com a cabeça a prêmio.
Da travessia do exilado, da súbita
mudança de condição, do aturado esforço, sob outro compasso, ditado este pelo desterro,
na companhia obstinada da esperança, e da luta sobretudo para mergulhar na
terra estranha, e tentar transformá-la em conhecida, Serra nos conta com o
cabedal da experiência, as peripécias – cômicas as vezes, mas também perigosas
e traiçoeiras - que amiúde perseguem os viajantes do infortúnio.
Com estilo escorreito, Serra nos transmite
a experiência vivida em condições em que
facilidades e tranquilidade costumam ser
a exceção e não a regra.
Ao ler as suas duzentas e cinquenta
páginas, o que mais impressiona é a capacidade de lidar com desafios e
dificuldades, sem desfalecer diante dos mais árduos e chatos, retirando das
muitas experiências lições úteis para o futuro.
Nas páginas da própria vivência, em que se conjugam a formação do lar e da
família, no Chile pré-Pinochet, os estudos universitários sob céus
estrangeiros, e os abruptos transes dos golpes, repontam também a regrada
burocracia italiana, e o ocasional nirvana do espaço acadêmico americano.
Nesses anos de formação que a deusa
Fortuna, por vezes cruel, por vezes generosa, torna realidade, o leitor colhe
igualmente a prazerosa impressão de anos de preparação a um futuro que se intui
ou se deseja quem sabe ainda inconcluso.
Guerra Israel – Hamas
O desequilíbrio nesse
enésimo conflito entre Israel e o Hamas (Faixa
de Gaza) se reflete nas estatísticas de óbitos, ou melhor, na gritante disparidade
do número de vítimas. Lançada pelo governo israelense a oito de julho último, a
Operação Margem de Proteção, registra
mais de 1600 palestinos mortos e sessenta israelenses. Nesses cômputos, mais de
trezentas crianças, as mais das vezes dentro das escolas bombardeadas.
Enquanto o número de baixas em Gaza
reflete a absoluta preponderância de civis palestinos, no que tange a Israel,
são poucas as vítimas civis e proporcionalmente avultam os militares.
Veiculou-se a captura do
segundo-tenente israelense conscrito, Hadar Goldin, de 23 anos. O Hamas nega, e
o Tsahal fez frenéticas tentativas de descobrir o paradeiro do jovem soldado. O
apresamento de um militar de Israel representa para Tel-Aviv o começo de um
pesadelo e de longa negociação, pois um prisioneiro vivo na complicada
matemática do conflito vale número exponencialmente maior de palestinos presos
pela justiça israelense, como a recente última troca de soldado capturado o
demonstra (o praça Gilad Shalit permaneceu 5 anos e quatro meses em cativeiro,
até ser trocado por 1027 presos palestinos, a 18 de outubro de 2011).
Pouco depois, as negativas do Hamas
são aceitas por Israel. Há elementos para inferir que não há um cativo, mas sim
um cadáver. É o que confirma Israel. Na
frieza da comunicação, pressente-se um quase alívio.
As causas profundas da
conflagração estão na negativa de Israel de fazer a paz com a Autoridade
Palestina, com a distribuição do território em disputa de acordo com as
inúmeras resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Tais
determinações são ignoradas ou sabotadas pelo governo de Tel Aviv. A negativa
israelense de proceder à partilha e de retirar as causas desse conflito tem
mais de sessenta anos. Embora haja inúmeras resoluções do Conselho que
determinam a devolução da terra à Autoridade Palestina por Israel (sobretudo na
margem ocidental do Jordão), a negativa de Tel Aviv se sustenta, na prática,
pelo apoio de Washington.
Embora a relação entre EUA e Israel seja
clientelar, desde os anos setenta Tel Aviv assegurou posição dominante na
prática. A despeito de empenho político de presidentes americanos, o apoio que
Israel tem no Congresso e povo americanos na prática inviabiliza o cumprimento
das resoluções do CSNU. A injustiça com o povo palestino está na raiz de todas
as guerras na região. E como há um processo em marcha – o da expulsão dos
palestinos de suas terras em proveito dos chamados colonos, com a consequente
construção de assentamentos ilegais, mas coonestados por governo e justiça
israelenses – a perspectiva é a da sucessão dos conflitos. Não haverá paz
enquanto não houver justiça.
Os opositores palestinos de
Israel podem variar na sua atuação. A Autoridade Palestina, com sede em
Ramallah, se esforça em respaldar-se nas Nações Unidas, e em métodos pacíficos.
Por sua vez, o Hamas, que Israel considera terrorista, domina a Faixa de Gaza,
uma língua de terra superpovoada, que é cercada por Israel e pelo Egito. Por
seus métodos, é combatida por Tel-Aviv, e atualmente tampouco tem boas relações
com o Cairo. Outro inimigo de Israel está no Hezbollah, organização considerada terrorista pelo governo
israelense. Esta última, chefiada pelo clérigo Nasrallah tem o apoio do Irã,
dispõe de milícia bem armada, com condições até de enfrentar o exército judeu, tem grande implantação no Líbano, e constitui
um dos fatores do ressurgimento de Bashar al-Assad, na interminável guerra civil
na Síria.
As condições existenciais
em Gaza são caracterizadas pela
hiper-população, a exiguidade de recursos, e o domínio da área pelo Hamas. Na
prática, a comunidade civil nessa área é refém do grupo Hamas, e paga um preço
exorbitante em vidas humanas por ocasião de tais conflitos. Na atualidade, como
os moradores não têm para onde ir, são os que pagam a trágica conta das
operações de Israel, em geral motivadas pelo lançamento de foguetes pelo Hamas,
que são ou arcaicos, ou artesanais, contra o território israelense vizinho. A
diferença de nível de vida é enorme, e o Hamas julga assim combater quem no seu
entender é o invasor das antigas terras palestinas. Uma das tecnologias
americanas cedidas a Tel-Aviv destrói desses mísseis cerca de 75 a 80 %. Mas a porta entreaberta da estatística, nesse
caso, também mata e destrói.
Dessarte, as reações (e
invasões) de Israel são periódicas, e sua principal causa está na abissal
diferença entre os níveis de vida. Não terá sido por acaso que o então primeiro
ministro, Ariel Sharon (falecido em janeiro de 2014, depois de longo coma), decidiu
pela retirada de Israel da ocupação da Faixa de Gaza, em janeiro de 2005.
A resolução de Sharon, imposta com punho
de ferro, não tinha qualquer motivo altruísta.
Visou a evitar o custo que implicava uma população crescente palestina
(então 1,3 milhão), contra apenas nove mil colonos judeus.
Se políticos corajosos, com a
visão que os distingue da raia-miúda, enveredarem pela construção de uma paz
verdadeira – que no momento não se divisa, quiçá sufocada pela fumaça dos
artefatos bélicos – haverá condição para colocar-lhe as fundações. Por
enquanto, tal não se afigura factível. Se a afluente minoria de Israel não
ouvir no futuro os reclamos da razão, da justiça e do bom-senso, até Jeová pode cansar-se desta luta infinda.
(Fontes: Cinquenta Anos esta noite, The
New York Review; O Globo; Folha de S.Paulo)
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