quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Barbárie

                                                
 
           É difícil definir de outro modo a decapitação do jornalista americano James Foley, mostrada em vídeo da milícia do Estado Islâmico  (ISIS).
           O Presidente Barack Obama, ao confirmar a morte de James Foley por essa milícia radical disse que os governos do Oriente Médio devem fazer esforço comum para “extrair o câncer” representado pela facção, “antes que ele se espalhe”.

           Ainda segundo Obama, todo o mundo ficou ‘aterrorizado’ com a brutalidade do assassinato de Foley, que foi decapitado diante de uma câmera. 

           “Uma coisa em que todos concordamos é que não há espaço para um grupo como o ISIS  no século XXI”.

           Não me passa pela cabeça justificar essa ignomínia. Desde muito – quase dois anos – era acompanhada a situação do jornalista americano. Foley havia sido sequestrado desde novembro de 2012, com a radicalização da guerra civil na Síria, que surgiu por uma conjunção de fatores: o continuado apoio da Rússia ao ditador Bashar al-Assad (por motivos estratégicos, i.e., a base naval em porto de águas quentes no Mediterrâneo oriental), de países de fé xiita (Irã e o Iraque de al-Maliki), e da milícia Hezbollah, de Nasrallah, com base no Líbano.

            Do lado contrário, o governo revolucionário reconhecido pela Liga Árabe não dispôs de apoio equivalente. Assim, a frente ‘moderada’, se teve o suporte dos governos sunitas da Arábia Saudita, do Qatar e da própria Turquia, esse auxílio às forças insurgentes contra al-Assad não teve o peso equivalente àquele fornecido  pelos aliados do governo sírio. 

            Além disso, surgiu um complicador na guerra civil síria. Repontou como elemento desagregador a facção da chamada al Nusra, que é a versão transplantada da conhecida al-Qaida, com a sua versão extremista da ala majoritária do Islã, i.e. a via sunita.  

            Infelizmente, nessa encruzilhada de uma longa guerra, malgrado as indicações de que a ditadura alauíta (seita minoritária e sincrética do xiismo) já dava amplos sinais de adentrar o bulevar do crepúsculo, o Presidente Barack Obama resolveu recusar o conselho de seus então quatro principais assessores em segurança e relações exteriores[1] de armar a Liga Rebelde, de forma que tivesse condições de enfrentar Bashar al-Assad.

            Não há negar que, sob um determinado ponto de vista, a decisão presidencial objetivava evitar o eventual repontar de uma ulterior radicalização na guerra civil síria. O 44° Presidente tinha muito presente o perigo de perenização do conflito, como ocorreu no Afeganistão. Todavia, como no caso de outras boas intenções, não se poderia dizer que o decorrente enfraquecimento da Liga Rebelde tenha sido  um resultado benfazejo não só para a Síria, senão para a comunidade internacional.

            Houve, em consequência,  um reforço dos extremos e a resultante debilitação da Liga, que constituía a principal adversária da ditadura de al-Assad. Esta, por seu lado, não recuou diante de qualquer meio no sentido de debilitar a frente revolucionária. Chegou mesmo a valer-se de recursos mais do que questionáveis, como a negação à população em territórios sob controle da Liga de vacinas e medicamentos contra a poliomielite. Existem nesse sentido – consoante documentado por artigo em The New York Review of Books - acusações ainda mais graves no que tange a órgão internacional que deveria cuidar do mandato de evitar a todo preço eventual ressurgência de tal flagelo.

              Não foi por isso por acaso que o ditador Bashar al-Assad pôde encenar a sua reeleição, dada a mudança no terreno que, no mínimo, conduziu à reversão na sorte da guerra.  Se antes se discutia acerca das sombrias alternativas abertas para o presidente sírio – ou o Tribunal Penal Internacional ou algum refúgio sob  bandeira que não reconheça o poder supranacional do foro da Haia – o consequente enfraquecimento da Liga Rebelde diante da retomada – que tem ares de estratégica – da capacidade bélica do regime de  Damasco, reabriu na prática o inferno de uma guerra que dá a impressão de encaminhar-se para um final que não aparenta ser em nada conforme às expectativas dos primeiros e pacíficos  manifestantes na Síria.

                E é aí que se insere a sorte madrasta do pobre repórter sacrificado pela milícia radical do Estado Islâmico. Profissionais corajosos, que não medem riscos, sempre os haverá. O século XX, com o seu baú de dissídios, conflitos, guerras civis e planetárias matanças, nos traz o exemplo de Robert Capa, o do instantâneo famoso do miliciano espanhol que tomba para a morte.

               O infeliz James Foley, cujo arriscado mister alimentava a agência France Presse e o site americano ‘Global Post’, era um veterano profissional que condicionara a própria sorte ao fio da navalha de regimes tão brutais, quanto imprevisíveis. Colecionava cativeiros, eis que trabalhou na Líbia de Muammar Kaddafi, bem como no Iraque e Afeganistão.

               Foley aliava a bravura à  simpatia, e terá acreditado que, com o seu destemor e a disposição de retratar esse peculiar mundo da rebeldia, teria o invisível salvo-conduto para que atravessasse o mundo do radicalismo islâmico.

               Como se recorda, não será o primeiro a ser decapitado. Daniel Pearl teve a cabeça decepada pelos paquistaneses da Al-Qaida, em 2002.

               Segundo a descrição da jornalista Clare Gillis, Foley era pessoa fácil de lidar. É aí que mora o perigo. A boa vontade, a simplicidade e a coragem não são documentos suficientes para proteger esses profissionais. Para os militantes do ISIS – como para outros radicais – os repórteres seriam espiões de um poder maior.

               O que esses profissionais, na sua intrepidez, esquecem é que ao ingressar nas terras sob o domínio dessas facções radicais, eles na verdade adentram um mundo afastado no tempo do Ocidente e do público a que a própria coragem visa trazer matéria de leitura.

               Melhor colocar-se sob o império das hordas muçulmanas que irromperam da Arabia Felix. A menos de uma conversão súbita, sob a sombra da cimitarra, a visão dos exércitos do profeta não conhecia qualquer tolerância. E ai daqueles que pensavam valer-se dos argumentos da palavra.

               Para entendê-los melhor  - e, por conseguinte, evitar contatos, que, como se vê, são tão perigosos quanto fatais -  valeria uma leitura até mesmo da versão abreviada de Um Estudo da História, de Arnold Toynbee. Pena que esteja fora de moda.

 

 

(Fontes:  Folha de S. Paulo, The New York Review of Books, A Study of History,de A.Toynbee)




[1] Hillary Clinton (Departamento de Estado), Leon Panetta (Departamento da Defesa), general David Petreus( CIA), e general Martin Dempsey (Estado Maior das Forças Armadas)_

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