quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Conferência em Genebra: Atoleiro Sírio

                            

       Talvez a desastrada iniciativa do Secretário-Geral das Nações Unidas, o discreto Ban Ki-moon, de convidar para a mesa de negociações o Ministro do Exterior do Irã,  Mohammad Javad Zarif, haja iluminado não só as difíceis condições que cercam a conferência de paz relativa à situação na Síria, mas também a fragilidade do projeto.
       Dada a circunstância de que o Ministro Javad Zarif se tenha recusado a endossar o comunicado de 2012 – que estabelece como escopo da reunião o estabelecimento de administração transitória por mútuo consenso do governo de Bashar al-Assad e da Oposição Síria – o Secretário-Geral das Nações Unidas pôde retirar o convite, que bem refletia a inépcia da atual direção da ONU.

       A cólera do Secretário de Estado John Kerry é compreensível, embora a atual situação pouco tenha a ver com a presente  realidade que não mais pressagia o desmoronamento do regime alawita de Assad.
       Entrementes há uma série de circunstâncias, entre as quaise as indecisões de Barack Obama decerto reclamam  posto central nas condicionantes das fundas modificações havidas no cenário da guerra civil síria. Vai longe o tempo em que se tinha a queda (e a fuga para os braços do Tribunal Penal Internacional) do tirano Bashar al-Assad.

      A Guerra na Síria desde muito ultrapassou a macabra marca dos cem mil mortos. À presente conferência de paz – e que lugar mais próprio para reuni-la que em Genebra, malgrado tantas iniciativas malogradas para aí resolver conflitos de média e baixa intensidade – hoje se depara  cenário assaz diverso do que o de 2012.
      A despeito das esperanças que esse tipo de exercício suscita, convém ter presente  que ao sentar-se a mesa as várias partes, o que cada uma traz para dar substância aos respectivos projetos muito pouco tem a ver com o estado de coisas em 2012.

      De início, o Ministro Sergei Lavrov, da Federação Russa, representa o lado que reverteu a tendência anterior (que sinalizava a queda do ditador Bashar), e que vai amealhando ganhos no campo, com uma série de reconquistas (entorno de Damasco), ou de reversão (como em Aleppo, com os sistemáticos bombardeios contra objetivos civis da aviação de Bashar). A Liga Rebelde batalha não só contra o exército do ditador, mas também com a milícia do Hezbollah (provida pelo corredor aéreo do Iraque, mantido por cortesia do Primeiro Ministro xiita Nouri al-Maliki [1] de Bagdá, com os fornecimentos militares de Teerã). E os adversários da Liga Rebelde se estendem a outros opositores de Bashar, i.e. os militantes da al-Qaida, em luta intestina, que além de enfraquecer a parte (e a causa) revolucionária, trabalha objetivamente para o reforço do campo adversário.

       A Liga Rebelde, se recebeu o apoio da Arábia Saudita e do Qatar, não teve de Washington senão suporte muitas vezes verbal. Por outro lado, Barack Obama abusou do direito de errar. Após vetar a recomendação recebida de Hillary Clinton (State Department) e dos demais altos funcionários do estamento da defesa (Pentágono, CIA) com competência na matéria de fornecer armas à oposição síria, embarafustou em  confuso projeto de punir (por intermédio de Tomahawks, os mísseis de que Bill Clinton se servira nas suas tentativas de eliminar Osama Bin-Laden) o regime sírio, por conta de um floreio de ameaçada represália.

      Em tal caso, o que se viu foi Obama entrar em sinuosa linha – inclusive submetendo a questão ao aval do Congresso – e tornar-se prisioneiro virtual  da própria retórica.  V. a respeito a ameaça ao governo de Bashar de ultrapassar imaginária linha vermelha (na guerra química).

      Na oportunidade, Obama mostrou uma inexperiência de que não sofreram os seus predecessores, eis que o lançamento de ameaças pode vir depois transformar-se em inoportuno cobrador, se as circunstâncias descritas tornarem a inação demasiado embaraçosa.

     O que se viu foi o ‘salvamento’ da posição de Barack Obama por Vladimir Putin. Com a inesperada liberalidade de gospodin Putin, o Presidente dos Estados Unidos  se viu despojado de sua capacidade militar de retaliar contra o regime de Bashar al-Assad, e nessas condições forçoso será reconhecer que a superpotência ora se senta em Genebra na mesa de negociações em posição que está longe de ser a ideal.

      Nesse mítico poker genebrino, John Kerry – o sucessor de Hillary Clinton – ao olhar a sua mão de cartas, há de convir que dispõe de poucos e magros elementos para arrancar concessões de um Bashar al-Assad redivivo.

     A participação do Irã na mesa de negociações seria uma afronta para a fragilizada Liga Árabe. Daí a ameaça de seus líderes de abandonarem a reunião, se a presença iraniana fosse mantida. Na sua guerra paralela contra a esfera sunita, o Irã dos ayatollahs, através do seu presidente Hassan Rohani concordou em não participar da reunião de Genebra, para que tampouco tais questões invadissem (e eventualmente condicionassem) as conversações nucleares, que visam a reinserção de Teerã em outro e mais amplo horizonte.

     Não foi à toa que o calejado Ministro do Exterior da Federação Russa, Sergei Lavrov,  tem batalhado desde muito por uma conferência de paz acerca da guerra civil síria.  Como a orientação desse conflito mudou – com a crescente vantagem tática de Bashar e seus aliados – não será mistério que a fortiori Lavrov tenha pleiteado a oportunidade desse encontro.

      Nesta quarta-feira, 22 de janeiro, a conferência se abre em Montreux. Na sexta-feira, 24 de janeiro, ela se transfere para Genebra e  o Palais des Nations, para o primeiro encontro entre a oposição síria e o governo de Bashar. O grande refém nesse embate são os infindáveis acampamentos de refugiados da guerra (que existem na Jordânia, no Líbano e na Turquia).

       Resta saber se tais primeiros contatos – muita vez instrumentalizados pelas partes litigantes para ostentarem as respectivas ‘Verdades’ e ‘Direitos’ – terão presentes a perigosa situação médico-sanitária dos enormes ajuntamentos de infelizes sem mínimas condições de higiene, alimentação e vacinação indispensável (por força do caos, aumentam enfermidades como a poliomielite que muitos pensavam extinta).

       Em geral, as conferências de paz carimbam a situação no campo e não criam vencedores, mas sim reconhecem situações de força maior e refletem no papel predominâncias estabelecidas pelo próprio conflito.  Delas não se devem esperar milagres.

       O que, no entanto, seria de desejar – a par de fazer mesuras para personalidades que antes semelhavam votadas a Sunset Boulevard – seria evitar que as estatísticas avancem para as sinistras metas ladeadas por hediondos portais que sinalizam entre 150 mil e 200 mil mortos.

 




[1] Que a guerra de George Bush Jr., que arruinou boa parte dos Estados Unidos, tenha contribuído na sua ‘vitória’ contra Sadam Hussein para que o Iraque, de aliado americano passasse para parceiro do regime xiita de Teerã, é outra pesada ironia daquela malsinada expedição contra as armas de destruição de massa (WMD)...

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