segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A Revolução na Ucrânia (II)

                     
      A visão do vídeo do correspondente especial do New York Times, Herszenhorn, mostra, com os seus lúridos detalhes, a real situação em Kiev, a capital da Ucrânia. A frágil trégua entre manifestantes e a polícia (incluída a violenta tropa de choque) dissolveu-se na noite posterior ao anúncio pelos líderes da oposição (Arseniy Yatsenyuk, do partido Pátria, e Vitali Klitschko, do Udar) de que rejeitavam a proposta do presidente Viktor Yanukovych.

      Antes que essa decisão fosse tomada, havia uma expectativa hostil das massas populares, que já assinalava a extensão (e profundidade) de sua negação à tentativa de Yanukovych de engodar com os ouropéis de posições de ilusório mando a liderança da reação ao súbito afastamento pelo presidente da proposta da UE.

      Dessarte, a recusa de Yatsenyuk e de Klitschko foi saudada com renovado entusiasmo pela multidão rebelada. Yatsenyuk, líder em funções do Pátria, recordou a necessidade de anular a prisão injusta de Yulia Timoshenko, a par da tomada de medidas que restabeleçam a negociação do acordo com a União Européia. E, por seu lado, o popular líder do Udar, Klitschko, sublinhou que de outro tipo de mudanças se batalhava nas ruas.

      Rompida a trégua, os choques entre revoltosos e as tropas policiais ocorreram nas cercanias do estádio do Dínamo, assim como na Praça da Independência. Há pelo menos cinco manifestantes mortos – alguns com sinais de tortura – e cresce a brutalidade nos embates. As tropas recorrem às famigeradas balas de borracha, e outros petrechos ditos não-letais do arsenal da repressão. Por sua vez, os rebeldes, servindo-se de placas de metal para proteção, a par de foguetes e porretes, se defendem com o engenho das antigas barricadas nos becos da Paris revolucionária[1] e também atacam, condicionados pelos caprichos da situação.

       Ai daquele manifestante que tombar nessa arena, pois como aves de rapina os meganhas sobre ele se precipitam, com a força cega dos golpes, e de preferência na cabeça. Os populares procuram, no entanto, respaldar-se pela mobilidade de grupos, e na dura experiência havida em embates desiguais recorrem à flexibilidade na reação defensiva, para cercar o companheiro caído, tornando demasiado custosa a sanha de grupelhos da tropa de choque, que vê a investida covarde contra o adversário caído de súbito transformada em uma rixa em que os desleais golpes contra o compatriota por terra atraem contra-ataques inesperados, que de repente jogam a confusão nas hostes policiais.

        Mais da metade da Ucrânia – a que se encontra o oeste, confina com o Bielo-Rússia ao norte e a Romênia ao sul, e onde se acha a capital Kiev – vê o futuro do país na proposta europeia da U.E. A outra parte, a oriental, lindeia a norte e  leste, com a antiga metrópole, hoje Federação Russa. Ao sul, está o Mar Negro – o Ponto Euxino dos gregos – com a Crimeia, em que mais se pratica o idioma russo.
        O próprio Primeiro Ministro Mykola Azarov – de que Yanukovych pensou liberar-se nas recentes ofertas à oposição - mal fala ucraniano.

       Não foi à toa que a tentativa de Viktor Yanukovych de contornar a fúria popular ao oferecer duas posições no gabinete, e acenar com mudanças liberais na Constituição, se dissipou rapidamente, como canhestra tentativa de eludir a verdadeira razão da cólera da multidão.

        Os rebeldes lutam por um ideal realizável e não arrefecerão o ímpeto por manobras de circunstância.

        Eles colocam na mesa de negociação qual deva ser o destino da Ucrânia: se bastam os penduricalhos de Vladimir Putin, com linhas de crédito e descontos na conta energética (além do reingresso debaixo da asa da águia do Kremlin, através da entrada na União Aduaneira russa), ou se deva prevalecer, como vocação nacional, a opção da Europa, com as suas conotações de liberdade e democracia, na sua negação histórica do medíocre, esquálido e sufocante domínio russo.

       A partida vai ficando cada vez mais problemática para Viktor Yanukovych. A sua base política está no oriente ucraniano, em que o idioma russo é língua franca. O seu padrinho, Vladimir V. Putin, lhe oferece o que possa sair de seu baú (que tem a pesada limitação dos grilhões e da mediocridade da opção nacional). E, sem embargo, tudo para ele, Yanukovych, correria no melhor dos mundos, se na própria capital, e em grande parte de seu reino, não houvesse gente rebarbativa, que acredita mais na liberdade e nos horizontes mais amplos e promissores do Ocidente.

        Como no presente estado de coisas – notadamente aos olhos de Bruxelas e de Washington – os malabarismos do atual presidente ucraniano sejam acompanhados atentamente, semelha muito difícil que Yanukovych considere possível uma repressão violenta para que tudo volte à santa paz dos movimentos trucidados, como ainda mais a leste a RPC – a presente encarnação do Império do Meio - logrou, para opróbrio do respectivo regime, aplicar através do massacre de Tiananmen.

       O povo ucraniano, pela sua preponderante escolha por liberdade e democracia, pretende conviver felizmente na Praça da Independência. Em Kiev, não há lugar para os amplos espaços da Paz Celestial, pois bem sabemos que ela pode ser a pacificação maldita que jaz nos cemitérios.

 

(Fontes: Folha de S. Paulo, O Globo, The New York Times)




[1] Anterior ao Barão de Haussmann, que a mando de Napoleão III pôs abaixo a Paris medieval, amiga dileta das barricadas e da luta contra o poder real.

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