sábado, 18 de janeiro de 2014

A Tragédia de Benghazi

                                   

        A morte do embaixador J. Christopher Stevens, a dez de setembro de 2012, ainda não foi processada politicamente em todas as respectivas conexões. Acontecida às vésperas da eleição presidencial, o candidato republicano tentara inserir esse grave fato político entre as questões (issues) a serem debatidas nos comícios de novembro. Por uma série de circunstâncias, no entanto, esse trágico evento não teve maior peso no pleito, e não afetou a vitória de Barack Obama sobre Mitt Romney, tanto na eleição indireta (a que conta), quanto no cômputo geral dos votos.
        O candidato republicano não dispôs de argumentos para implicar diretamente o presidente Obama em eventual responsabilidade com o desaparecimento de seu embaixador em Benghazi. No que tange à então Secretária de Estado Hillary Clinton, tampouco havia elementos relevantes no levantamento feito acerca da ocorrência, e sobretudo no que concerne às implicações de segurança.

        No que tange aos embaixadores da superpotência, o último a sucumbir a serviço foi John Gordon Mein, alvejado por guerrilheiros das Forças Armadas Rebeldes (FAR) em plena avenida da Reforma, na cidade da Guatemala, a 28 de agosto de 1968. A intenção dos revolucionários era o sequestro do embaixador, para a posterior negociação com os generais no governo, com vistas a sua liberação em troca de certo número de prisioneiros. Gordon Mein, no entanto, ao tentar fugir, foi atingido e morto.
         Esse formato seria decerto o exemplo para o posterior sequestro do Embaixador Charles Elbrick, em Humaitá, no Rio de Janeiro, a quatro de setembro de 1969, com a exigência de libertação de quinze presos políticos. Com a chegada ao México do grupo, o comando guerrilheiro liberou o embaixador (retido em Santa Teresa) a seis de setembro. Elbrick permaneceria como embaixador no Rio  mais alguns meses, para em seguida regressar a Washington.  

        Estamos em 2014, e o assassínio de J. Christopher Stevens, na noite de terça-feira, dez de setembro de 2012, continua a ser objeto de uma série de procedimentos em Washington D.C. Como semelha óbvio, tais procedimentos têm o escopo específico de  produzir análise tão completa quanto possível dos antecedentes, tanto burocráticos, quanto in loco, do acontecimento, assim como das implicações em termos de responsabilidade funcional e, porventura, pessoal, que sejam acaso suscetíveis de enquadramento.

        Muitas dessas ações possuem a qualificação de ‘classified’, vale dizer de acesso restrito às instâncias oficiais. Sem embargo, por confidencial ou secreto ou ultra-secreto que um tópico seja,  as consequências serão eventualmente do conhecimento público, se as responsabilidades forem determinadas de modo inequívoco.
     O Washington oficial – aquele que é circundado pelo anel rodoviário – se tem ocupado de forma sistêmica e progressiva do post-mortem do evento, dirigido para a determinação de responsabilidades.

     Na investigação de 2013, realizada pelo ex-embaixador Thomas Pickering e o Almirante Mike Mullen (antigo presidente dos Chefes do Estado Maior),   no respectivo relatório se culpou o Departamento de Estado por “falhas sistêmicas e deficiências de liderança e de gerenciamento”.

       Antes de chegar ao relatório bipartidário do Comitê de Inteligência do Senado, a chaga aberta do assassinato de J. Christopher Stevens já provocara perdas colaterais na Administração Obama. Com efeito, a mensagem de indicação de Susan Rice, até então Embaixadora junto às Nações Unidas (posto que nos EUA tem nível ministerial) foi afinal retirada do Senado, eis que a indicada de Barack Obama, com base em notas para efeito de divulgação (talking points) por redes de tevê a cabo, fora objeto de questionamentos de congressistas republicanos. A ênfase política das críticas – tanto da Casa de Representantes (com maioria do GOP) – e de senadores também republicanos mostrara a virtual inviabilidade da posição da embaixadora, questionada por uma apresentação julgada não-satisfatória dos eventos de Benghazi. Por tal motivo, o Presidente preferiu designá-la sua Assessora de Segurança Nacional, um posto executivo que independe de autorização do Congresso, ainda que de grande importância (Henry Kissinger, v.g., foi assessor de segurança nacional de Richard Nixon).

       De acordo com os múltiplos elementos recolhidos pelo Relatório do Comitê de Inteligência, pode-se asseverar que o problema ou a ‘crise’ que afetou a Missão estadunidense em Benghazi era algo antes anunciado. Consoante o resumo do New York Times a que me reporto, o comitê assinala centenas de análises da comunidade de inteligência, com a advertência de que milícias e grupos terroristas e afiliados detinham a capacidade e o propósito de atacar o pessoal e as instalações (facilities) americanas e ocidentais, na Líbia. |Uma semana antes do ataque, o Comando dos EUA para a África advertiu acerca de crescente ameaça para americanos, especialmente no nordeste da Líbia.

       Ainda segundo a mesma fonte, não haveria indicação de que a CIA e outras agências (de informação) tivessem ciência do tempo e do lugar de um ataque específico. O ataque é descrito como ‘oportunístico’ e não ‘uma conspiração (plot) altamente coordenada’.

        É aqui que entra o alegado móvel para o ataque, colocado pela indignação provocada por um vídeo anti-islâmico.

        Quanto ao papel da CIA no episódio, ele parece mais demonstrativo da virtual descoordenação dos diversos serviços estadunidenses. Com a deterioração da situação na Líbia nos meses que precederam o ataque, a CIA reforçou a segurança nas suas instalações, que dista um quilômetro e meio da missão diplomática.  Por sua vez, dentro da descoordenação que caracteriza o processo, o Departamento de Estado não adotou precauções similares no que respeita à proteção de seu complexo.

       Dentro do quadro da descoordenação entre as agências de segurança (a despeito das injunções dos ataques terroristas contra New York e Washington de 11 de setembro de 2001), avulta o comportamento do Chefe da Missão, J.Christopher Stevens. A sua atitude deve ser vista, no entanto, em quadro abrangente. Stevens era um arabista e especialista nas questões do mundo árabe. Tinha uma visão simpática aos árabes, e à Líbia em particular. Sentira inclusive particular prazer em voltar a atuar em Benghazi.

       Não deve ser esquecido que postos em situações especiais (como era a Líbia) colocam responsabilidade maior no chefe da missão, responsabilidade esta eventualmente acrescida por eventual carência de pessoal qualificado.  Stevens, dentro de um contexto de relativa solidão (no que tange à assessoramento paralelo e de nível superior) encaminhou ao Departamento de Estado solicitações de mais recursos de segurança, pedidos esses que mereceram poucas melhorias significativas.

       Quando a situação se agravou em junho, ele recomendou o treinamento de guardas líbios locais como equipe de segurança em Tripoli e Benghazi. Ao tramitar essa solicitação, Stevens demonstrava confiança no pessoal local – conexa à própria simpatia pelo posto e sua gente – mas é forçoso reconhecer as implicações de tal decisão, que teria consequências desastrosas na noite do ataque.

       Por outro lado, é difícil não questionar o acerto da decisão do Embaixador  Stevens que negou por duas vezes o oferecimento do General Carter, líder do Comando da África, que perguntou por duas vezes se a missão diplomática precisava de mais pessoal militar. Stevens declinou, também por duas vezes, o oferecimento.

      Diante desse cenário, se o Departamento de Estado tem alguma responsabilidade, fica muito difícil acentuá-la. Por sua formação, o Embaixador J.Christopher Stevens terá confiado de forma excessiva no que poderia ter de uma base local em matéria de segurança, como o demonstra a sua preferência pelo treinamento de líbios para fornecer segurança. Por outro lado,  recusando a presença de pessoal militar qualificado, o embaixador, sem o saber, enfraquecia ainda mais a capacidade da missão de resistir a um ataque, como as efetivas condições na noite azíaga de dez de setembro o demonstrariam.

      Nesse quadro, não convence demasiado o argumento de que o Departamento de Estado é o culpado da vez. A Casa de Representantes, com maioria do GOP, recusara verbas para missões diplomáticas. Dessarte, o State Department não disporia de fundos para situações de postos difíceis, como a missão na Líbia.

      Com a tragédia, muitas das alegadas fraquezas no Departamento estão sendo corrigidas, inclusive a criação de uma posição de maior responsabilidade (e força burocrática) para supervisionar as missões em países com maior ameaça política. A par disso, com a casa arrombada, o Congresso apoiou a contratação de 151 postos funcionais de pessoal de segurança diplomática. Quanto aos fundos, ainda não chegaram, mas estariam a caminho.

     Dado o exame minucioso das causas de o que infelizmente ocorreu naquela terça-feira, dez de setembro de 2012, muita coisa pode e deverá melhorar. Como toda grande organização burocrática, o State Department não está imune aos erros. O processo de correção é, por vezes, doloroso e, em algumas oportunidades, tem causas macabras, que teria sido melhor evitar.

      Por causa da minudência do levantamento – de o que já é conhecido e de tudo o que o tempo ensejará no futuro aprofundar  - das muitas certezas que se possa colher está a circunstância de que a então Secretária de Estado Hillary Clinton não pode ser responsabilizada por uma análise isenta e não eivada de interesse partidário por ser, de alguma forma, responsabilizável pela morte do Embaixador J. Christopher Stevens.

 

(Fonte: The New York Times)

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