terça-feira, 3 de março de 2020

A Caminhada (IV)


                                                       

       Do estágio na embaixada em Paris - que foi o meu primeiro posto, guardo a boa lembrança que a Cidade-Luz impõe. Mas não cansarei o leitor com visões turísticas.

         Lá cheguei como Segundo Secretário, na velha chancelaria da avenue Montaigne, então sublotada pelos motivos já referidos.  O ministro Raul de Vincenzi era o Encarregado de Negócios da missão. Pelas razões já antes explicitadas, o plantel da embaixada não luzia como antes, e não estranhava que me dessem, por isso, a responsabilidade de cuidar do setor político.

         Além da placa comemorativa dos muitos anos em que o embaixador Souza Dantas estivera lotado na missão em Paris, havia nas sóbrias instalações daquela embaixada a marca dos anos. Depois de uns poucos degraus, aparecia a modesta sala para as visitas, com sofá e cadeiras.  Os gastos tapetes do posto conduziam a um corredor, que ligava as diversas dependências, das quais o setor administrativo - em que ficava a maioria das secretárias. Somente a sala do embaixador (então ocupada pelo Encarregado de Negócios) tinha sofá e poltronas de couro. Pesadas cortinas impediam que os eventuais transeuntes da Montaigne pudessem observar o interior do gabinete de Souza Dantas - impressionante a "presença" como verdadeiro numen tutelar na missão desse embaixador, cujo longo estágio - mais de vinte anos - em Paris o tornava um perene objeto da inveja (dissimulada decerto) não só de seus sucessores no corpo diplomático acreditado junto ao Ministére des Affaires Etrangères, se bem que de forma residual, dos próprios chèrs collègues chefes de missão, ainda que ele houvesse partido há muito ... Embora a reação dos pósteros não fosse confessável, ela dava a impressão de que a presença de Souza Dantás (como era pronunciado) ainda incomodasse... Sem falar dos mexericos e das supostas estórias galantes desse embaixador, a que se referiam, com o escopo aparente de fazê-lo menor de o que fora. Os grandes sóem incomodar.

          Mas retomemos a caminhada pela velha chancelaria.  Além dos espaços, mais para os fundos, reservados aos adidos militares, os secretários dispunham de salas em que se tinha a impressão de que reinava absoluto o tempo do velho casarão. Até havia um cubículo reservado para o encarregado das comunicações: um funcionário administrativo tinha a incumbência de codificar as minutas. O telex ainda não havia sido instalado,o que tornava laboriosa a função do administrativo que era encarregado do setor.  Tudo que era reproduzido por ele, e codificado, se fosse o caso, em consequência, tinha de ser levado para a necessária transmissão pelos Correios franceses.    

             Uma vez, passando pelo hall de entrada da missão, dei com um colega meu de classe no Rio Branco, a que a vida machucaria bastante. Ele estava então no chamado Leste europeu, em que ficavam as embaixadas junto aos países satélites. Viera com ele, como uma espécie de dama de companhia a Francisca, que tinha modos muito simples.  Ao dar comigo, ela exclamou, enquanto me apontava: "Ei, esse moço aí eu conheço". Assim era a Francisca, a quem o meu amigo Aloysio (e colega de classe) trouxera para o posto na então Cortina de Ferro. 
                Por vezes, quando era tempo de plantão,  a chefia nos delegava a presença junto aos eventuais visitantes, em geral simples turistas que queriam conhecer a embaixada do Brasil. Tudo o que posso dizer é que o afazer não era de ser considerado de somenos. Ali tínhamos contato com os viajantes brasileiros naquela época - e o quanto diferiam dos turistas hodiernos.

                  Havia um consulado-geral do Brasil perto da grande avenida des Champs Elysées. Se as comunicações consulares ficavam por conta do plantel para tanto acreditado - os consulados são autônomos e as suas tarefas diferem daquelas das missões diplomáticas - deve-se entender que o contato dos diplomatas com os visitantes brasileiros constituía uma consequência de nosso trabalho, e da atenção especial a que os turistas costumam dar às funções - misteriosas para eles - dos chèrs collègues que são os secretários, conselheiros, ministros e até Monsieur l'Ambassadeur,  naquela época - ao contrário do diplomata que virou mito na pessoa de Souza Dantas - bastante mais acessível que os diplomatas modernos, como nós, e que constituíam então objeto de indagações e perguntas, que o tempo já torna datadas, no quanto elas marcam da presente facilidade nas viagens, e na consequente evaporação da mágica então ligada aos diplomatas...

( Fonte: memórias do mister diplomático)

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