quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Origens da Carnificina

                                          

        É segredo de Polichinelo que na França cresce desproporcionalmente ao restante da população a sua componente islâmica.  Esse incremento, no entanto, não se limita àquele país, verificando-se, outrossim, e em parcelas que ameaçam a identidade étnica de outros Estados, na Alemanha, nos Países Baixos e no Reino Unido.

        Como é notório, por força da taxa de natalidade muito mais alta do que as dos demais nacionais europeus, sejam franceses, alemães, holandeses e ingleses, a sua presença no país respectivo tem muita vez a integração dificultada seja por diferenças culturais e notadamente pela respectiva absorção em correntes de menores recursos, mais baixa educação, residente em bairros periféricos, e muita vez com postura ambígua no país de residência, dadas as dificuldades relativas à própria absorção pela nacionalidade respectiva.

        O episódio de ontem é  decorrência indireta dessa situação. Não devemos esquecer as enormes disparidades em termos de valores culturais. Sem querer desculpar o indesculpável, estamos diante de extratos bastante diferenciados. Na França, a maior parte da componente islâmica é de origem árabe-argelina, o que constitui decorrência da estreita relação entre a antiga colônia (que chegou  a ser considerada como parte da metrópole) e o chamado hexágono (que é a forma da França europeia).

        Desde muito, a França tem acolhido essas correntes demográficas. Com a independência da Argélia, no início dos anos sessenta do século passado, teve igualmente de receber a comunidade de origem europeia (os chamados pieds noirs – pés negros) que fora expulsa da antiga colônia. Também abriu espaço para os harkis (árabes aculturados com a França e que seriam trucidados se ficassem na Argélia).

         Tudo isso, no caso francês, criou comunidade franco-muçulmana que é bastante grande. Quando Sarkozy era Ministro da Ordem Pública, ocorreram na França – e  nos arredores de Paris e das grandes cidades provinciais, em particular – as queimas de automóveis. Essa atividade piromaníaca fluía de enorme insatisfação com  suas condições de vida e residência. Ao chamar tais manifestantes noturnos de ‘racaille’ (ralé), Sarkozy garantiu a sua eleição para presidente da república. Quantos muçulmanos existam na nação francesa virou segredo de estado (eram oito milhões no fim do século passado. Hoje, pela alta natalidade, devem folgados adentrar a dezena de milhões).

          Os islâmicos constituem, em boa parte, o que Toynbee chamara de proletariado interno[1], no que importava sobretudo a identificação (ou não) com as normas de uma república laica, oriunda da Revolução Francesa. Nesse contexto, os recorrentes problemas, como o uso do lenço pelas mulheres (inclusive jovens nos liceus) marca o relacionamento e as dificuldades de participação (e absorção) dessas comunidades.

          Sem querer justificar o injustificável, há uma grande sensibilidade da larga comunidade islâmica na França (e na Europa, em geral, como se verificou na Dinamarca) com as formas da imprensa e de cartunistas de dispensar igualdade de tratamento aos símbolos religiosos do Islã, com o Profeta Maomé à frente.

          Como o Islamismo é um credo relativamente novo se cotejado, v.g., ao cristianismo, há grandes diferenças na maneira em que os seus principais símbolos possam ser objeto de tratamento editorial.

          A par disso, a religião muçulmana – por força notadamente da seita xiita, conquanto não se excluam os sunitas, como o próprio exército islâmico o tem demonstrado para horror da civilização e do Ocidente – passa por um momento de  radicalismo e de marcada afirmação. Exemplos dessa por vezes triste realidade se acham no Irã dos ayatollahs, e em episódios de perseguições a velhas comunidades cristãs há muito radicadas no Oriente, e que hoje arrostam perigos seja de aniquilação (os cristãos caldaicos, v.g.), seja de perseguição (os cristãos coptas, que chegaram a dez por cento da população egípcia, e hoje muita vez são constrangidos ao exílio pela perseguição, seja sistemática, seja como ‘bodes expiatórios’ de problemas a que convém a maioria imputar-lhe a responsabilidade).

            Não é meu desejo exculpar o inexculpável. O crime cometido contra a publicação satírica Charlie Hebdo não tem qualquer justificativa. Ele é fruto do preconceito mais acirrado – além de enorme insegurança e desejo de afirmação – que pode alcançar massacres da crueldade que marcou a eliminação de doze pessoas, sendo dois policiais e dez jornalistas, dentre os quais alguns dos mais dotados caricaturistas na França.  

            No entanto, a ameaça há de continuar, se persistirem as condições de desigualdade sistêmica entre a França europeia e a França muçulmana. Basta percorrer Paris – já não digo Marselha  - para que o observador estrangeiro se dê conta do difícil equilíbrio existente, e da necessidade de abrir novas perspectivas a esses franceses, que não podem permanecer eternamente confinados a uma segunda ordem, que é a cultura mais adequada para aprofundar e agravar ainda mais essa situação.

 

( Fontes:  O Globo, Folha de S. Paulo, Um Estudo da História, deAJ Toynbee )




[1] Para o grande historiador, no tardo império romano, havia dois tipos de proletariado (o externo e o interno). Ambos se assinalavam pelos fracos liames com o ethos romano, e constituíam fonte perene de insatisfação e eventual secessão. (V. A Study of History, em 12 vol.)

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