É segredo de
Polichinelo que na França cresce desproporcionalmente ao restante da população
a sua componente islâmica. Esse
incremento, no entanto, não se limita àquele país, verificando-se, outrossim, e
em parcelas que ameaçam a identidade étnica de outros Estados, na Alemanha, nos
Países Baixos e no Reino Unido.
Como é
notório, por força da taxa de natalidade muito mais alta do que as dos demais
nacionais europeus, sejam franceses, alemães, holandeses e ingleses, a sua
presença no país respectivo tem muita vez a integração dificultada seja por
diferenças culturais e notadamente pela respectiva absorção em correntes de
menores recursos, mais baixa educação, residente em bairros periféricos, e
muita vez com postura ambígua no país de residência, dadas as dificuldades
relativas à própria absorção pela nacionalidade respectiva.
O episódio de
ontem é decorrência indireta dessa situação.
Não devemos esquecer as enormes disparidades em termos de valores culturais.
Sem querer desculpar o indesculpável, estamos diante de extratos bastante
diferenciados. Na França, a maior parte da componente islâmica é de origem
árabe-argelina, o que constitui decorrência da estreita relação entre a antiga
colônia (que chegou a ser considerada
como parte da metrópole) e o chamado hexágono
(que é a forma da França europeia).
Desde muito, a
França tem acolhido essas correntes demográficas. Com a independência da
Argélia, no início dos anos sessenta do século passado, teve igualmente de
receber a comunidade de origem europeia (os chamados pieds noirs – pés negros) que fora expulsa da antiga colônia.
Também abriu espaço para os harkis
(árabes aculturados com a França e que seriam trucidados se ficassem na
Argélia).
Tudo isso, no
caso francês, criou comunidade franco-muçulmana que é bastante grande. Quando
Sarkozy era Ministro da Ordem Pública, ocorreram na França – e nos arredores de Paris e das grandes cidades
provinciais, em particular – as queimas de automóveis. Essa atividade
piromaníaca fluía de enorme insatisfação com suas condições de vida e residência. Ao chamar
tais manifestantes noturnos de ‘racaille’
(ralé), Sarkozy garantiu a sua eleição para presidente da república. Quantos
muçulmanos existam na nação francesa virou segredo de estado (eram oito milhões
no fim do século passado. Hoje, pela alta natalidade, devem folgados adentrar a
dezena de milhões).
Os islâmicos
constituem, em boa parte, o que Toynbee chamara
de proletariado interno[1],
no que importava sobretudo a identificação (ou não) com as normas de uma
república laica, oriunda da Revolução Francesa. Nesse contexto, os recorrentes
problemas, como o uso do lenço pelas mulheres (inclusive jovens nos liceus)
marca o relacionamento e as dificuldades de participação (e absorção) dessas
comunidades.
Sem querer
justificar o injustificável, há uma grande sensibilidade da larga comunidade
islâmica na França (e na Europa, em geral, como se verificou na Dinamarca) com
as formas da imprensa e de cartunistas de dispensar igualdade de tratamento aos
símbolos religiosos do Islã, com o Profeta Maomé à frente.
Como o
Islamismo é um credo relativamente novo se cotejado, v.g., ao cristianismo, há
grandes diferenças na maneira em que os seus principais símbolos possam ser
objeto de tratamento editorial.
A par disso,
a religião muçulmana – por força notadamente da seita xiita, conquanto não se
excluam os sunitas, como o próprio exército islâmico o tem demonstrado para
horror da civilização e do Ocidente – passa por um momento de radicalismo e de marcada afirmação. Exemplos
dessa por vezes triste realidade se acham no Irã dos ayatollahs, e em episódios
de perseguições a velhas comunidades cristãs há muito radicadas no Oriente, e
que hoje arrostam perigos seja de aniquilação (os cristãos caldaicos, v.g.),
seja de perseguição (os cristãos coptas, que chegaram a dez por cento da
população egípcia, e hoje muita vez são constrangidos ao exílio pela
perseguição, seja sistemática, seja como ‘bodes expiatórios’ de problemas a que
convém a maioria imputar-lhe a responsabilidade).
Não é meu
desejo exculpar o inexculpável. O
crime cometido contra a publicação satírica Charlie
Hebdo não tem qualquer justificativa. Ele é fruto do preconceito mais acirrado
– além de enorme insegurança e desejo de afirmação – que pode alcançar
massacres da crueldade que marcou a eliminação de doze pessoas, sendo dois
policiais e dez jornalistas, dentre os quais alguns dos mais dotados
caricaturistas na França.
No entanto, a ameaça há de continuar, se
persistirem as condições de desigualdade sistêmica entre a França europeia e a
França muçulmana. Basta percorrer Paris – já não digo Marselha - para que o observador estrangeiro se dê
conta do difícil equilíbrio existente, e da necessidade de abrir novas
perspectivas a esses franceses, que não podem permanecer eternamente confinados
a uma segunda ordem, que é a cultura mais adequada para aprofundar e agravar
ainda mais essa situação.
( Fontes: O Globo, Folha de S. Paulo, Um Estudo da
História, deAJ Toynbee )
[1] Para o grande historiador,
no tardo império romano, havia dois tipos de proletariado (o externo e o
interno). Ambos se assinalavam pelos fracos liames com o ethos romano, e
constituíam fonte perene de insatisfação e eventual secessão. (V. A Study of
History, em 12 vol.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário