O novo livro da
professora Karen Dawisha adota uma tese diversa daquela que até hoje
prevalece sobre o fracasso da democracia e o crescimento de Vladimir Putin. Na introdução, a autora
explica que ao invés de encarar a política russa como um nascente sistema
democrático que é derrubado pela história, autocratas acidentais, a inércia
popular, a incompetência burocrática ou a deficiente assessoria ocidental, ela
conclui que desde o começo Putin e seu círculo buscara criar um regime
autoritário dirigido por uma coesa cabala, que se valeu da democracia apenas
com fins decorativos e não de direção.
Em outras palavras, segundo o artigo
de Anne Applebaum, a história mais
importante dos últimos vinte anos pode não ser a do malogro da democracia, mas
a da ascensão de nova forma de autoritarismo russo. Dessarte, ao invés de tentar explicar os
fracassos dos reformistas e intelectuais que tentaram implementar mudança radical,
deveríamos ao invés concentrarmo-nos na espantosa história de um grupo de
oficiais da KGB, convictos,
sem-escrúpulos e determinados, horrorizados diante do colapso da URSS e da
perspectiva de sua consequente perda de influência. Aliados com o crime
organizado russo, e começando em fins dos anos oitenta, eles planejaram
exitosamente a volta ao poder. Assim, com a assistência da inescrupulosa
atividade de empresas internacionais bancárias offshore, eles furtaram
dinheiro que pertencia ao estado russo, o levaram para o exterior por motivo de
segurança, e depois o reinvestiram na Rússia, e mais tarde, bocado por bocado,
se apropriaram do Estado. Alcançado o mando, eles trouxeram de volta métodos
soviéticos de controle político – os únicos que eles conheciam – só que atualizados
para os tempos modernos.
Que a corrupção fazia parte do
sistema é algo conhecido há bastante tempo. Chrystia
Freeland, no seu livro Venda do
Século (2000) nos descreve a sua
descoberta do esquema. Ela percebeu que os regulamentos confusos e as leis
contraditórias que manietavam os negócios russos nos anos noventa não eram
problema temporário que seria logo afastado por administrador competente. Ao
contrário, a elite russa desejava que todos operassem em violação de uma ou
outra lei, porque dessa forma todos eram passíveis a qualquer tempo de prisão.
As regras contraditórias não eram um equívoco, mas uma forma de controle.
Dawisha vai além. Antes mesmo que
tais abomináveis regras fossem escritas, o sistema já havia sido trucado em
favor de certo número de pessoas e de grupos de interesse. Inexistia um campo
aberto a todos, e o recurso a mercados competitivos nunca foi empregado. Ninguém ficou rico pela própria inventiva, ou
pela respectiva auto-ajuda. Ao invés, quem ficou rico o deve a favores
concedidos ou furtados do estado. E na expressão de Applebaum, quando a poeira baixou, Vladimir Putin
emergiu como o rei dos ladrões.
Para enfrentar o desafio de estória
de tais dimensões, a autora se vale de muitas fontes, inclusive provas
apresentadas em juízo em causas que depois estancaram por motivos políticos;
material coletado por repórteres investigativos; revistas de direito russas,
muitas já não mais editadas (out of print).O
livro também se vale de entrevistas com banqueiros e empresários, assim como de
elementos trazidos por outras obras como “O
homem sem face”(2012),, de Masha Gessen (já assinalado por este
blog); “Mr Putin: Operador no Kremlin!” (2013), de Clifford Gaddy e Fiona Hill; e “Ascensão do Kremlin”(2005) de Peter
Baker e Susan Glasser.
Diante da quantidade de detalhes
que Dawisha fornece sobre as operações criminosas (incluindo nomes, datas e
números), a autora encontrou dificuldades em ter o livro publicado. A própria Cambridge
University Press preferiu não
publicá-lo depois de estar inicialmente disposta a fazê-lo. Temia cair em
violação das leis anti-difamatórias do Reino Unido.
Valendo-se desses elementos de prova, segundo a autora
a volta ao poder do KGB começa não em
2000, quando Putin se torna presidente, mas no fim dos anos oitenta. Nessa
época, os chefes do KGB, que não
confiavam em Gorbachev, começaram a
transferir dinheiro que pertencia ao Partido Comunista Soviético fora da URSS
e em contas offshore, aos cuidados de
bancos suíços e britânicos. Pelo menos inicialmente, tais transferências foram
feitas com a ciência do Partido. Funcionários do KGB que já tinham experiência de manejar contas em bancos
estrangeiros passaram a encarregar-se disso.
Depois do malogro do golpe dirigido
pelo KGB contra Gorbachev, cerca de 4
bilhões de dólares que pertenciam ao Partidão foram distribuídos em centenas de
bancos sob a direção do PC, do Konsomol
e do KGB. Em momento no qual a
economia funcionava precariamente e as reservas em divisas eram na prática
inexistentes, tais fundos e as pessoas que os manipulavam tinham condições de
tornar-se o fundamento real da economia na Russia pós-soviética. Assim, um
pequeno grupo de pessoas se descobria enriquecido pelo Estado e passando a ter
os meios de adquirir-lhe a propriedade.
A participação de Putin nesse
processo vai muito além de sua indicação para Primeiro Ministro e a posterior
substituição de Boris Ieltsin. Este é o parecer de Dawisha. Em Dresden, no fim
dos anos oitenta, ele era um funcionário do KGB,
que via com apreensão o processo em curso, com o desfazimento da União
Soviética e de seu império. Esse período, segundo o biógrafo alemão de Putin,
Alexander Rahr, está coberto por ‘espesso nevoeiro de silêncio’. Mas a par do empenho desse funcionário de
queimar os maços da sede do KGB em
Dresden, talvez ele se tenha empenhado em preparar a agência para a temida
dissolução do império soviético. Nesse sentido, a contra-inteligência alemã
iniciou investigação para determinar se Putin havia ou não recrutado agentes
que permaneceriam leais ao KGB mesmo
depois do colapso do governo comunista. A principal preocupação alemã era,
segundo a autora, que Vladimir Putin houvesse engajado uma renda de quinta-colunas dentro da Alemanha unificada.
É ignorada a escala – e o relativo
êxito – desse esforço in extremis,
mas alguns dos contatos de Putin em Dresden tiveram ótima progressão nas
décadas seguintes a 1989. Dessarte, Matthias
Warnig, funcionário da Stasi[1] e
colega de Putin, abriu em 1991 a primeira sucursal do Dresdner Bank em São Petersburgo (justamente na época em que Putin
lá vivia). Em 2000, Warnig chefiava toda a operação do banco na Rússia. Dando
sequência à estreita colaboração com o agora presidente Putin, em 2003, o banco
participou alacremente do desmembramento da Yukos,
companhia petrolífera então de propriedade do magnata Mikhail Khodorkovsky[2], preso
e condenado ao encarceramento, com direito a nova sentença pela dócil justiça
russa.
Por outro lado, desde 2006, Warnig
é o diretor-executivo do Projeto de Oleduto da Corrente Norte Russo-Alemã. Essa
companhia recebeu licença para operar no
mandato do Chanceler alemão Gerhard Schröder, a qual, mais tarde, engajaria
o ex-Chanceler Schröder para servir na respectiva Junta diretiva. Warnig
continuou, por sua vez, a ser prestigiado pelo governo Putin: em 2012 se tornou
membro da junta de diretores do Banco
Rossiya, um dos bancos atualmente sob sanção pelos EUA.
Sobre a participação de Putin no
governo municipal de São Petersburgo, o livro de Masha Gessen, recenseado pelo
blog, já dá suficientes detalhes. Aí ele foi processado por Marina Salye,
edil no conselho citadino, com a
acusação de ter exportado, com contratos dolosos, centenas de milhões de dólares
em produtos de base, em troca de alimentos (que nunca chegaram). Apesar do
conselho ter votado a sua destituição, nada aconteceu. Como tinha protetores em
nível superior, escapou indene, enquanto
Salye, assustada pelas ameaças, fugiu e desapareceu da política russa.
Segundo indica Dawisha, com os
fundos comunistas de Putin e mais o crime organizado, diversas empresas
surgiram, como o Bank Rossiya e a Ozero Dacha Cooperativa de Consumidores.
Esta última apesar de constituir um pequeno grupo, ao disponibilizar quantias
imprecisas de misteriosas fontes de recursos, logo transformaria os membros da
cooperativa em milionários e até bilionários.
A atuação de Putin não se restringiu
a tais companhias. A SPAG, um holding
de propriedades de raiz em São Petersburgo é uma terceira empresa a ele ligada.
A Agência Federal Alemã de Inteligência (BND)
investigou a SPAG e publicou
relatório que a acusava de lavar dinheiro para criminosos russos e colombianos.
Quando Schröder foi Chanceler alemão,
a investigação foi retardada. De qualquer forma, não constava o nome de Putin.
Muitos de seus membros foram indiciados pelos tribunais do Liechtenstein.
A próxima fase da carreira de Putin
teve a presença determinante de um dos favoritos de Boris Ieltsin, Boris Berezovsky. Após transferir-se de
São Petersburgo para Moscou e assumir (até agosto de 1999) a chefia da
sucessora do KGB, a FSB, Vladimir Putin convenceu – em episódio bem conhecido –
o oligarca Berezovsky (e outros compadres de Ieltsin) a apadrinhá-lo, e
colocá-lo no posto do já impopular e doente Ieltsin. Ele Putin – e seus colegas do FSB – seriam os
garantes da fortuna de Berezovsky e dos demais oligarcas.
O grupo em torno de Ieltsin, minado
pela bebida e doente, cometeram o ‘erro’ que é tão comum na história. Pensaram
que através de um homo novus poderiam
continuar a controlar a política russa, atravessando a salvo a fase da
crescente impopularidade de seu antigo chefe.
Putin, desde logo, no entanto, foi
mostrando que não viera para ser um títere. A própria defenestração de Khodorkovsky – por mostrar pretensões
políticas – iria indicar, sem sombra de dúvida, quem estava nos controles.
Assim, colocou na Gazprom dois cupinchas de São
Petersburgo: Dmitri Medvedev, advogado e colega de Putin
nos tempos da prefeitura, e Aleksei
Miller, seu antigo substituto no Comitê de São Petersburgo para ligação
externa. A nova direção da Gazprom sabia exatamente a quem devia a colocação, e
forneceria a Putin os fundos necessários.
Por outro lado, sob os ventos do onze
de setembro de 2001, Putin decidiu estabelecer uma aliança tática com o
Ocidente contra o radicalismo muçulmano na Ásia Central. Aberto a novas
relações com a OTAN e os líderes europeus e americanos, em 2004 chegou a dizer
que se a Ucrânia deseja associar-se à U.E. não veria impedimento, pelas
relações especiais que mantinha com Kiev.
Nesse sentido, abriram-se para
Vladimir Putin e a Federação Russa as reuniões periódicas do G8, cujas regras
foram alteradas para permitir a adesão de Moscou.
Tampouco se deve minimizar o golpe de
relações públicas do Presidente Putin permitindo a candidatura de Dmitri
Medvedev a presidente (Putin continuou entre 2008 e 2012 como Primeiro
Ministro). Por um tempo, persistiu o logro voluntário no Ocidente de que o
moderado Medvedev poderia ser inclusive reeleito como Presidente, assegurando
assim ao Kremlin uma aparência mais bem-comportada.
Segundo Dawisha foi um
extraordinário golpe de relações públicas. Forneceu ao Ocidente a visão de um
presidente moderado, pró-ocidental e na aparência pró-normais relações de
comércio. Fez valer o que essencialmente um títere como a oportunidade de uma
virada (reset) nas relações com
Moscou. O Ocidente teria sido engodado e embalado em aceitar um Estado bandido
como um difícil porém legítimo parceiro. Dessarte, a suposta détente ensejou a diminuição na
prontidão da OTAN, e as instituições financeiras ocidentais ficaram mais
dependentes do dinheiro russo.
Apesar do discurso sobre reformas,
Putin não fez nenhum esforço para estimular o capitalismo empresarial a par de
criar um sistema legal que permitisse o crescimento de pequenas empresas. As Cortes de Justiça se tornaram cada vez
mais dóceis e politizadas, e os mercados sempre mais distorcidos. Os oligarcas
e empresários que não participavam consoante as regras do sistema seriam
destruídos (a vítima mais famosa foi Mikhail Khodorkovsky e a sua liquidada
companhia Yukos, de que já tratei
acima).
O quadro econômico das relações com
investidores ocidentais foi também convulsionado. Algumas empresas ocidentais
floresceram, mas só na medida em que aproveitaram a Putin e seus cupinchas. Ocidentais que incomodaram o regime, ou cujos
negócios fossem cobiçados por russos poderosos seriam destruídos com cobranças
tributárias, processos legais, sem excluir procedimentos ainda piores.
Por outro lado, a ação de Putin no
campo político foi a de sistematicamente destruir as nascentes instituições de
uma sociedade liberal democrática. Nesse sentido, a dissidência e a oposição se
tornou uma atividade perigosa, como o destino de Anna Politovskaya o
indica. Ela foi abatida a tiros no hall de
modesto prédio moscovita, quando se aprestava a retornar a seu
apartamento. A Politovskaya, jornalista de grande bravura, denunciara muitos
atentados contra os direitos humanos na
Tchechenia. Vários processos legais para determinar os mandantes do
assassínio não foram além dos capangas que a abateram.
Depois de intimidar a mídia,
especialmente as redes de tevê independentes, Putin lançou-se contra a
‘sociedade civil’, i.e. qualquer
organização – seja de caridade, educativa ou advocatícia – sobre que ele não
exerce controle direto. Nesse campo, é emblemática a sua ação contra Memorial, organização apolítica e
histórica de direitos humanos que produziu estudos elogiados no Ocidente
(crimes de Stalin, história do Gulag,
e mais em geral a história da repressão na Rússia. Tomando o pretexto de que Memorial recebera fundos do estrangeiro
– como a Fundação Ford - ela foi informada de que deveria registrar-se
como “agente estrangeiro”, uma frase
que na Rússia carrega pesada insinuação de espionagem estrangeira. Prosseguindo
na ação de pôr fim a Memorial, recentemente o Ministério da Justiça russo
entrou com ação legal que procura fechar o Memorial,
sob espúrios pretextos administrativos.
Em lugar de mídia independente e
de autêntica sociedade civil, Putin e seu círculo puseram em funcionamento um
sistema para faturar desinformação e mobilizar apoio em escala ambiciosa e até
espetacular. Além do presumível ataque ao Ocidente, e a tentativa de subverter
as instituições e o estamento ocidental, a Rússia de Putin apóia qualquer
movimento que possa ter escopos ditos subversivos, como v.g. o Ocupe Wall-Street. No seu afã destrutivo, a coerência não é o
forte do regime russo. Partem muita vez da premissa de que o inimigo de meu
inimigo é meu amigo.
Em recente artigo publicado em The Interpreter, publicação on-line que se dedica a denunciar a
desinformação do Kremlin, Anne Applebaum cita dois jornalistas – Peter
Pomerantsev e Michael Weiss - que sublinham ‘desde 2008 pelo menos os
pensadores militares e de inteligência falam de
informação não no sentido de ‘persuasão’,
‘diplomacia pública’ ou mesmo ‘propaganda’, mas em termos de um sentido armado
(weaponized), como instrumento para
confundir, chantagear, desmoralizar, subverter e paralisar.
Em velha tática de países autoritários,
reeditando como já foi dito no blog em diversas postagens sobre as agressões de
Putin (tanto na Criméia, quanto na Ucrânia), que seria por procedimentos das
vítimas, ou até mesmo ‘culpa’ do
Ocidente – que a Federação Russa se sentiria ameaçada pela expansão da OTAN ou
pela ocidental nos Bálcãs.
Na tese de Karen Dawisha, desde 2000 a Rússia vem sendo governada por elite
revanchista e revisionista, com base no velho KGB. Essa elite busca recuperar o poder desde o fim dos anos
oitenta, empregando o furto em larga escala, valendo-se do sigilo proporcionado
pelos abrigos off-shore do Ocidente,
e cooperando com o crime organizado.
Uma vez no poder, por intermédio de
seu primus inter pares Vladimir V.
Putin, a nova elite intenta manter o controle apelando para os mesmos
instrumentos do KGB: a manipulação da emoção pública, a subversão das
instituições do Ocidente, e de seus ideais, de todos os modos possíveis.
Nesse sentido, o gesto recente de
Putin – o desestabilizador da Ucrânia, o conquistador da Criméia – apenas
aumenta anteriores desígnios em países menores como a Geórgia do Sul e a
Abkhazia. No sentido de melhor alicerçar os respectivos propósitos – e deixar
de ser um ‘poder regional’ como o
apodou recentemente Barack Obama, recuperando quem sabe? a força e o peso do velho Império Russo – além da
desinformação (referida acima) Vladimir Putin parece reencarnar velhos
ditadores – o mais óbvio semelha ser Benito Mussolini. Na cultura do corpo e por semelhar mais alto
do que é, Putin repete métodos antigos e modernos, inclusive com o suposto
suporte de doutrina eurasiana, em que
faz empréstimos mais à direita do que à esquerda, posto que o objetivo
imperialista permaneça o mesmo. Ao seguir nesse caminho, talvez tenha presente
mais os êxitos do começo, do que o retrato do fim.
( Fontes: Artigo de Anne Applebaum “Como Ele e seus
cupinchas furtaram a Rússia”, em The New York Review of Books vol.LXL, n° 20; O
Homem sem Face, de Masha Gessen, Riverhead Books, 2012; The New York Times; Der
Spiegel)
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