Com tudo o
que se precipitou sobre a Ucrânia no ano passado, pareceria que a queda de Viktor Yanukovich seria um evento
longínquo. Na verdade, a revolução da Praça
Maidan irrompera em 2013, para provocar-lhe a derrubada em fevereiro de
2014. Hoje, pesquisas especializadas assinalam que a saída do poder de
Yanukovich foi ultimada pelo total abandono sofrido de parte das forças
políticas, inclusive do próprio partido das Regiões. Assim, a irrelevância
política do presidente pró-Rússia teria sido, na verdade, a causa eficiente de
sua fuga.
De qualquer
forma, a opção majoritária da Ucrânia pela via comunitária, foi causa
determinante da invasão e do consequente estado de guerra larvar com Moscou. A
invasão da Criméia – e sua anexação pela Federação Russa após referendo
inquinado de irregularidades (a começar pela sua imposição através de mal-disfarçada
prévia ocupação militar)[1]- trouxe
de volta para a comunidade internacional o fantasma do imperialismo que
despreza o direito internacional público e a regra básica dos pacta sunt servanda.
Entretanto,
a atual crise econômico-financeira padecida pela Rússia tem dupla paternidade.
De um lado, o despencar da cotação no mercado internacional do barril de
petróleo, e o consequente nervosismo financeiro, com o mergulho cambial do
rublo. Assim o ‘poder regional’ (na designação de Barack Obama) ver-se com o
principal produto a afundar nos sessenta e poucos dólares não significa apenas
uma forte e hostil sacudida no principal artigo de exportação do ambicioso
império de gospodin Vladimir Vladimirovich Putin.
Nesse ponto,
entra outro fator com alto potencial negativo nos planos desse Senhor de todas
as Rússias. O precedente contexto – que
com a cotação do barril de petróleo a mais de cem dólares semelhara assaz
favorável - agora muda de figura. A
guerra larvar contra a Ucrânia – na qual o Kremlin buscara desestabilizar (e
eventualmente incorporar de alguma forma) a sua região oriental, assume agora
um formato que não estava exatamente nos planos do presidente russo.
A ambição de
Putin pode lidar com pequenos países como a Georgia e a Ossetia, mas o domínio
de Kiev – que ele terá julgado como a seguinte refeição – pelo seu tamanho, a
opção manifestada pela revolução do ano passado quanto à aliança com a União
Europeia, e a inquietude levantada por anacrônica empresa de conquista, indica de forma crescente que o ex-dirigente
da KGB terá cometido erro de avaliação ao dosar as dificuldades com que se
depararia para deglutir o oriente ucraniano.
Nesse
contexto, se afigura tentador explicar-lhe a passagem para a guerra
não-declarada contra o vizinho do sul na
respectiva húbris, desencadeada pela
extrema facilidade
com que a pilhagem da Crimeia fora levada a termo.
Por outro
lado, na guerra larvar contra a Ucrânia, o Kremlin
buscou desestabilizar a parte oriental desse país. Dividida entre ocidente que
fala ucraniano, e oriente onde predomina o idioma russo, o domínio de Kiev, na
sua região oriental, pareceria a um dirigente como Putin (que, em período de
vacas gordas, mandara até elaborar uma
ideologia eurasiana para o seu projeto de poder) o alvo ideal para incursão imperialista modelo século XIX.
As guerras,
mesmo aquelas não-declaradas, têm efeito deletério, não só sobre a vítima da
vez, senão no que tange ao agressor. Escritores russos que não rezam pela
cartilha de Putin, como Masha Gessen, se reportam abertamente à circunstância
de que a sociedade russa vive sob a consciência de estar em guerra. É uma
condição naturalmente reconhecida, como um fato do conhecimento geral.
Os conflitos,
além de interferirem nas realidades econômicas dos países envolvidos, têm outra
característica que pode ser socialmente bem mais pesada. Dessarte, os voluntários arrebanhados nessa empresa
neocolonial podem ser acometidos por circunstâncias que lhes impeçam de voltar
ao paraíso russo na condição em foram enviados. Os body-bags[2]
que os trazem de volta para a mãe-pátria são de ocultação dificultosa, e
portanto um fator de insatisfação permanente.
A par disso, a
invasão e a desestabilização da Ucrânia, ao chocarem a Europa e Estados Unidos
– além de reacender o temor nos espaços vizinhos, notadamente os países
bálticos – levou mesmo os mais prudentes e moderados à conscientização da
necessidade de alguma forma de reação a esse incôngruo e impudente
neoimperialismo político.
Desde algum
tempo, os procedimentos autoritários do regime russo têm levado o Congresso
americano a medidas pontuais como a Lei Magnitsky, que impõe sanções a funcionários (russos) direta
ou indiretamente envolvidos na morte do auditor Sergei Magnitsky (1972-2009).
Qual foi o ‘crime’ de gospodin
Magnitsky? Como contador, ele denunciara uma roubalheira generalizada e em
milhões de rublos. ‘Culpado’ de apontar desvios de fundos no erário, Magnitsky
foi mantido em masmorra sem acesso à qualquer medicação, o que lhe causou a
morte por pancreatite.
O crescente envolvimento de Moscou na
subversão do regime na Ucrânia oriental -
intervenção essa que levou, inclusive, ao abatimento de aeronave de
passageiros cujo único erro foi
atravessar o domínio aéreo ucraniano. Apesar da revolta ocidental, e das
autoridades da Holanda e da Austrália, os países com maiores perdas de
nacionais, Vladimir Putin, a par do desconforto e das descomposturas sofridas,
atravessou indene essa crise humanitária.
Sem embargo,
as inúmeras sanções pontuais aplicadas pelos Estados Unidos e pela União
Europeia criam uma série de transtornos e obstáculos sobretudo financeiros para
a Federação Russa.
Se
computarmos os custos da aventura imperialista (anexação da Crimeia e ataques aos
principais centros industriais e demográficos da Ucrânia oriental), a par dos
inúmeros empecilhos criados pelas sanções pontuais, Moscou se defronta, ao
ensejo da crise do rublo e da depreciação do barril de petróleo, em um cenário
com dificuldades adicionais na obtenção de fundos e de meios para obter
melhorias em sua situação econômico-financeira.
Desse
modo, ao empreender uma guerra não-declarada de desestabilização e de eventual
conquista (a Crimeia já seria província do Império Russo, legitimada por Duma e Senado), o presidente Vladimir Putin pode
estar-se metendo em camisa de onze varas. Nesse contexto, a ambição da
conquista pode criar-lhe óbices suplementares no seu intento de reconsolidar os
fundamentos da economia russa.
Por outro
lado, o governo do Presidente Poroshenko está empenhado em campanha contra o
flagelo da corrupção. Esse problema – de que
o Brasil vem tendo uma experiência bastante informativa nos últimos
governos petistas, agora agravada com o chamado ‘petrolão’ – é um velho desafio
com que se deparam as antigas repúblicas soviéticas (excetuados, para sua
honra, os Estados bálticos).
Em
artigo publicado pelo New York Times, de
Sabrina Tavernise, a nova batalha a ser encarada pela Ucrânia está em
empreender reforma que a livre da corrupção. Nesse sentido, Dmytro Shymkiv tem
essa missão, ao ser o subchefe da Administração Presidencial. O seu encargo
pode ser alentador – ou desalentador -, tudo dependendo do quociente de
otimismo com que ele é enfrentado. Se atentarmos para o passado, recente ou
não, a presença dos chamados oligarcas e até de políticos com penetração popular,
serão necessariamente mescladas e dúbias as esperanças de sucesso em reforma
para valer.
A própria
Yulia Timoshenko – que sofreu
processo iniquo que a consignara a cerca de três anos de prisão em cárcere
interiorano, que findaram apenas com a queda do inimigo Yanukovich - infelizmente não está livre de suspeitas
nesse campo.
Por isso,
o ceticismo é compreensível, tanto mais que em 2005 malogrou um similar intento.
Dessa feita, os reformistas na luta contra a corrupção vêm notadamente do meio
empresarial. Por outro lado, no gabinete do milionário Poroshenko, apenas dois dos ministros da nova leva não falam inglês, o inverso
oposto do governo Yanukovych em que apenas dois eram fluentes na atual língua franca
mundial.
Para
países interessados em pesquisar meios e modos de combater e, eventualmente,
desbaratar a corrupção, a Ucrânia pode constituir um modelo sobretudo de o que
se deva evitar. As ameaças são tão grandes que podem até servir de estímulo, no
sentido de que se outro país eventualmente pensar livrar-se do pesadelo da
corrupção, quiçá as condições a enfrentar não seriam tão difíceis quanto as da
Ucrânia, em que até a cercania de Putin pode representar um empurrão para
continuar no presente chavascal. Assim, segundo Keith Darden, professor de
Ciência Política na Universidade Americana, em Washington, ‘a Rússia seria o diabo cochichando no ouvido
da Ucrânia: não dêem importância a essa bobajada da União Europeia. Aceitem os
nossos bilhões e estará tudo resolvido.’
( Fontes: The New York Times, New Yorker - artigo de Masha Gessen )
[1] A aprovação por parte do
governo de Dilma Rousseff da gritante agressão constitui grave erro – e mancha
– na política externa brasileira. Bem assinalaram em artigo ‘Os perigos do
revisionismo territorial’ de Monica Herz e João Nogueira, publicado em O Globo
de três de maio de 2014, ao afirmarem: “A complacência brasileira diante da
intervenção na Crimeia em abril (de 2014) compromete a credibilidade de política
externa que (...) se pauta pela defesa
dos princípios da igualdade e da não-intervenção.”
[2] Sacos para transportar
cadáveres.
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