segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Ano Novo, Ucrânia nova ?


                                   

           Com tudo o que se precipitou sobre a Ucrânia no ano passado, pareceria que a queda de Viktor Yanukovich seria um evento longínquo. Na verdade, a revolução da Praça Maidan irrompera em 2013, para provocar-lhe a derrubada em fevereiro de 2014. Hoje, pesquisas especializadas assinalam que a saída do poder de Yanukovich foi ultimada pelo total abandono sofrido de parte das forças políticas, inclusive do próprio partido das Regiões. Assim, a irrelevância política do presidente pró-Rússia teria sido, na verdade, a causa eficiente de sua fuga.

           De qualquer forma, a opção majoritária da Ucrânia pela via comunitária, foi causa determinante da invasão e do consequente estado de guerra larvar com Moscou. A invasão da Criméia – e sua anexação pela Federação Russa após referendo inquinado de irregularidades (a começar pela sua imposição através de mal-disfarçada prévia ocupação militar)[1]- trouxe de volta para a comunidade internacional o fantasma do imperialismo que despreza o direito internacional público e a regra básica dos pacta sunt servanda.

          Entretanto, a atual crise econômico-financeira padecida pela Rússia tem dupla paternidade. De um lado, o despencar da cotação no mercado internacional do barril de petróleo, e o consequente nervosismo financeiro, com o mergulho cambial do rublo. Assim o ‘poder regional’ (na designação de Barack Obama) ver-se com o principal produto a afundar nos sessenta e poucos dólares não significa apenas uma forte e hostil sacudida no principal artigo de exportação do ambicioso império de gospodin Vladimir Vladimirovich Putin.

         Nesse ponto, entra outro fator com alto potencial negativo nos planos desse Senhor de todas as Rússias.  O precedente contexto – que com a cotação do barril de petróleo a mais de cem dólares semelhara assaz favorável  - agora muda de figura. A guerra larvar contra a Ucrânia – na qual o Kremlin buscara desestabilizar (e eventualmente incorporar de alguma forma) a sua região oriental, assume agora um formato que não estava exatamente nos planos do presidente russo.

        A ambição de Putin pode lidar com pequenos países como a Georgia e a Ossetia, mas o domínio de Kiev – que ele terá julgado como a seguinte refeição – pelo seu tamanho, a opção manifestada pela revolução do ano passado quanto à aliança com a União Europeia, e a inquietude levantada por anacrônica empresa de conquista,  indica de forma crescente que o ex-dirigente da KGB terá cometido erro de avaliação ao dosar as dificuldades com que se depararia para deglutir o oriente ucraniano.

        Nesse contexto, se afigura tentador explicar-lhe a passagem para a guerra não-declarada  contra o vizinho do sul na respectiva húbris, desencadeada pela extrema   facilidade com que a pilhagem da Crimeia fora levada a termo.

         
          Por outro lado, na guerra larvar contra a Ucrânia, o Kremlin buscou desestabilizar a parte oriental desse país. Dividida entre ocidente que fala ucraniano, e oriente onde predomina o idioma russo, o domínio de Kiev, na sua região oriental, pareceria a um dirigente como Putin (que, em período de vacas gordas,  mandara até elaborar uma ideologia eurasiana para o seu projeto de poder) o alvo ideal para  incursão imperialista modelo século XIX.

         As guerras, mesmo aquelas não-declaradas, têm efeito deletério, não só sobre a vítima da vez, senão no que tange ao agressor. Escritores russos que não rezam pela cartilha de Putin, como Masha Gessen, se reportam abertamente à circunstância de que a sociedade russa vive sob a consciência de estar em guerra. É uma condição naturalmente reconhecida, como um fato do conhecimento geral.

        Os conflitos, além de interferirem nas realidades econômicas dos países envolvidos, têm outra característica que pode ser socialmente bem mais pesada. Dessarte, os voluntários arrebanhados nessa empresa neocolonial podem ser acometidos por circunstâncias que lhes impeçam de voltar ao paraíso russo na condição em foram enviados. Os body-bags[2] que os trazem de volta para a mãe-pátria são de ocultação dificultosa, e portanto um fator de insatisfação permanente.

        A par disso, a invasão e a desestabilização da Ucrânia, ao chocarem a Europa e Estados Unidos – além de reacender o temor nos espaços vizinhos, notadamente os países bálticos – levou mesmo os mais prudentes e moderados à conscientização da necessidade de alguma forma de reação a esse incôngruo e impudente neoimperialismo político.

         Desde algum tempo, os procedimentos autoritários do regime russo têm levado o Congresso americano a medidas pontuais como a Lei Magnitsky, que  impõe sanções a funcionários (russos) direta ou indiretamente envolvidos na morte do auditor Sergei Magnitsky (1972-2009). Qual foi o ‘crime’ de gospodin Magnitsky? Como contador, ele denunciara uma roubalheira generalizada e em milhões de rublos. ‘Culpado’ de apontar desvios de fundos no erário, Magnitsky foi mantido em masmorra sem acesso à qualquer medicação, o que lhe causou a morte por pancreatite.

         O crescente envolvimento de Moscou na subversão do regime na Ucrânia oriental -  intervenção essa que levou, inclusive, ao abatimento de aeronave de passageiros cujo único erro foi atravessar o domínio aéreo ucraniano. Apesar da revolta ocidental, e das autoridades da Holanda e da Austrália, os países com maiores perdas de nacionais, Vladimir Putin, a par do desconforto e das descomposturas sofridas, atravessou indene essa crise humanitária.

         Sem embargo, as inúmeras sanções pontuais aplicadas pelos Estados Unidos e pela União Europeia criam uma série de transtornos e obstáculos sobretudo financeiros para a Federação Russa.

         Se computarmos os custos da aventura imperialista (anexação da Crimeia e ataques aos principais centros industriais e demográficos da Ucrânia oriental), a par dos inúmeros empecilhos criados pelas sanções pontuais, Moscou se defronta, ao ensejo da crise do rublo e da depreciação do barril de petróleo, em um cenário com dificuldades adicionais na obtenção de fundos e de meios para obter melhorias em sua situação econômico-financeira.

             Desse modo, ao empreender uma guerra não-declarada de desestabilização e de eventual conquista (a Crimeia já seria província do Império Russo, legitimada por Duma e Senado), o presidente Vladimir Putin pode estar-se metendo em camisa de onze varas. Nesse contexto, a ambição da conquista pode criar-lhe óbices suplementares no seu intento de reconsolidar os fundamentos da economia russa.

            Por outro lado, o governo do Presidente Poroshenko está empenhado em campanha contra o flagelo da corrupção. Esse problema – de que  o Brasil vem tendo uma experiência bastante informativa nos últimos governos petistas, agora agravada com o chamado ‘petrolão’ – é um velho desafio com que se deparam as antigas repúblicas soviéticas (excetuados, para sua honra, os Estados bálticos).

            Em artigo  publicado pelo New York Times, de Sabrina Tavernise, a nova batalha a ser encarada pela Ucrânia está em empreender reforma que a livre da corrupção. Nesse sentido, Dmytro Shymkiv tem essa missão, ao ser o subchefe da Administração Presidencial. O seu encargo pode ser alentador – ou desalentador -, tudo dependendo do quociente de otimismo com que ele é enfrentado. Se atentarmos para o passado, recente ou não, a presença dos chamados oligarcas e até de políticos com penetração popular, serão necessariamente mescladas e dúbias as esperanças de sucesso em reforma para valer.

             A própria Yulia Timoshenko – que sofreu processo iniquo que a consignara a cerca de três anos de prisão em cárcere interiorano, que findaram apenas com a queda do inimigo Yanukovich  - infelizmente não está livre de suspeitas nesse campo.

             Por isso, o ceticismo é compreensível, tanto mais que em 2005 malogrou um similar intento. Dessa feita, os reformistas na luta contra a corrupção vêm notadamente do meio empresarial. Por outro lado, no gabinete do milionário Poroshenko, apenas dois dos ministros  da nova leva não falam inglês, o inverso oposto do governo Yanukovych em que apenas dois eram fluentes na atual língua franca mundial.

             Para países interessados em pesquisar meios e modos de combater e, eventualmente, desbaratar a corrupção, a Ucrânia pode constituir um modelo sobretudo de o que se deva evitar. As ameaças são tão grandes que podem até servir de estímulo, no sentido de que se outro país eventualmente pensar livrar-se do pesadelo da corrupção, quiçá as condições a enfrentar não seriam tão difíceis quanto as da Ucrânia, em que até a cercania de Putin pode representar um empurrão para continuar no presente chavascal. Assim, segundo Keith Darden, professor de Ciência Política na Universidade Americana, em Washington,  ‘a Rússia seria o diabo cochichando no ouvido da Ucrânia: não dêem importância a essa bobajada da União Europeia. Aceitem os nossos bilhões e estará tudo resolvido.’

 

     
            
( Fontes:  The New York Times, New Yorker -  artigo de Masha Gessen )



[1] A aprovação por parte do governo de Dilma Rousseff da gritante agressão constitui grave erro – e mancha – na política externa brasileira. Bem assinalaram em artigo ‘Os perigos do revisionismo territorial’ de Monica Herz e João Nogueira, publicado em O Globo de três de maio de 2014, ao afirmarem: “A complacência brasileira diante da intervenção na Crimeia em abril (de 2014) compromete a credibilidade de política externa que (...) se pauta pela defesa  dos princípios da igualdade e da não-intervenção.”
[2] Sacos para transportar cadáveres.

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