quinta-feira, 25 de setembro de 2014

A antidiplomacia de Dilma


                      
         Mais uma vez a Presidenta Dilma Rousseff mostrou que a diplomacia não é seu forte. À vista d’olhos, falta-lhe sensibilidade, respeito e conhecimento nessa função. Por isso, costuma ou meter os pés pelas mãos, ou desconhecer as práticas usuais nesse mister, e o que é corolário dessa atitude, ignorar na prática as sugestões[1] de seu Ministério de Relações Exteriores. O que me leva a afirmar isto, é a circunstância de não ser crível que o Itamaraty não a informe de o que seria o procedimento usual e recomendável nos diversos casos em tela.

         Com o presidente Lula da Silva, abandonou-se a diplomacia de estado, para abraçarmos a de partido. Tal se viu no caso do Paraguai, quando concedemos ao então presidente guarani, Fernando Lugo, uma compensação absurda ao Tratado de Itaipu, como se já não houvéssemos concedido vantagens além da medida a Assunção. Mais tarde, em 2012, a presidente Dilma se valeu do pretexto do impeachment de Lugo, pelo Congresso paraguaio, decretado na forma da lei (ainda que com grande desenvoltura), para suspender o Paraguai do Mercosul – medida que implementou quase manu militari junto a colegas recalcitrantes.

         A manobra, na verdade, visava a favorecer a Venezuela de Hugo Chávez, eis que o Paraguai era o único membro do Tratado de Assunção a opor-se à adesão de Caracas. A violência da medida – em que a diplomacia de partido se sobrepunha à de Estado – prejudicaria as nossas relações com Assunção. Por outro lado, nas condições da economia venezuelana – pioradas ulteriormente sob Nicolás Maduro – caberia perguntar a quem aproveita o ingresso da Venezuela no Mercosul, se já lidamos com o contrapeso do peronismo kirchnerista na Argentina ?

        Essa atitude dos governos do PT, se evidenciada com Lula de Silva (e a sua aceitação do procedimento ilegal de Evo Morales). A sucursal da Petrobrás na Bolívia lá estava por acordo internacional, e não de forma irregular. Isto pressagiava duas tendências do lulo-petismo: (a) não só passar a mão na cabeça dos ‘irmãos’ do esquerdismo sindical sul-americano, (b) senão prejudicar a maior empresa pública nacional, como o presente o demonstra com excesso de agravos.

        Lula, no entanto, pela simpatia natural, gozou de certa liderança internacional, assim como facilidades de trânsito, inclusive com o republicano George W. Bush.  No entanto, por questão de temperamento, Dilma não logrou ocupar posição similar à Lula.

        Limitar-me-ei a assinalar três episódios que sublinham o seu viés anti-diplomático: asilo do senador boliviano Roger Pinto na embaixada do Brasil; invasão da privacidade pelos programas da NSA e deterioração nas relações com Washington; reação acomodatícia diante da ilegal anexação da Crimeia pela Rússia. Como cereja neste bolo, o peculiar discurso com viés eleitoreiro, uma peça de política interna lançada no grão-salão dedicado às questões da diplomacia mundial.

        No asilo de Roger Pinto, além de mantê-lo em compartimento inadequado para a sua saúde sem a necessária exposição solar, o Brasil de Dilma foi fraco em não exigir o salvo-conduto, que é condição sine qua non do término do asilo diplomático pela sua passagem a asilo territorial em outro país. E foi ainda mais fraco ao consentir em transmitir ao asilado a possibilidade de sua renúncia ao dito asilo. É inaceitável que Evo Morales tenha desrespeitado a soberania brasileira, chegando mesmo a mandar revistar aeronave de Ministro de Estado brasileiro, de passagem por La Paz. Diante disso tudo, a atitude corajosa do Ministro Eduardo Saboia, então Encarregado de Negócios, é a decorrência dessa desídia de Brasília. Saboia não hesitou em por em risco a própria vida ao transportar, por vinte horas, em viatura da Embaixada, o asilado Roger Pinto – cujo principal crime era ser desafeto do homem forte da Bolívia – para a segurança do território brasileiro.  

         Quanto à invasão pela National Security Agency dos Estados Unidos das comunicações oficiais e privadas da Presidente Dilma, trata-se de atitude indefensável e reprovável por todos os títulos. Dilma estava convidada para recepção presidencial em sua honra, com o mesmo alto grau honorífico da que fora prestada a Fernando Henrique Cardoso por Bill Clinton, na Casa Branca.

          Insegura em diplomacia, a minha impressão é de que utilizou mal as cartas de que dispunha. Não há negar de que a Presidente Dilma Rousseff, como a parte ofendida, estava plenamente justificada em formular juízo bastante negativo do episódio. A sua reação, no entanto, caíu  na areia movediça de quem tem demasiada razão e, por conseguinte, carece de modular a própria resposta de modo a paradoxalmente não pôr tudo a perder.

           Nesse contexto, semelha interessante comparar -lhe a sua reação com a da Chanceler Angela Merkel. Também invadida na sua privacidade, a Chefe de Governo alemão soube dosar a própria atitude de forma a sublinhar o respectivo desagrado, mas de forma a não comprometer de todo as relações necessárias para que ulteriormente o diálogo fosse mantido em nível em que a sua dignidade fosse respeitada. Essa diplomacia nada tinha de subserviente. A despeito do agravo, dada a importância das relações bilaterais, a parte ofendida dosaria a respectiva resposta, atendendo a duas premissas básicas: o restabelecimento do respeito mútuo, como condição sine qua non, do desenvolvimento da relação oficial; e o avanço gradual nessa linha de concessões pré-estabelecidas, sempre em boa fé, a ser mantida sobretudo pela parte antes transgressora. E, por fim, a regra básica: a altercação, nesse nível, deve proceder de forma secreta, sem qualquer vazamento. A publicidade nesta questão de Estado teria efeito deletério.

             Outro grave erro diplomático, de responsabilidade da Presidenta Dilma Rousseff, foi o de haver associado o nome do Brasil àqueles países que não se opunham, em votação da Assembleia Geral das Nações Unidas ao ato de força da Rússia, apossando-se manu militari da Crimeia.  Tal província no Mar Negro integrava a Ucrânia desde 1954, por determinação do então Primeiro Secretário do PCUS, Nikita Kruchev. Esse ato de força da Federação Russa foi ‘confirmado’ por referendo feito de afogadilho, e sem qualquer cuidado voltado para uma votação livre e regrada dos habitantes da região. Por preceito de nossa Constituição de 5 de outubro de l988, o Brasil democrático e respeitador das liberdades não poderia ter associado o seu nome à coonestação desse desrespeito flagrante do presidente Vladimir V. Putin ao Direito Internacional Público.  O Barão do Rio Branco, patrono de nossa Diplomacia, e o Embaixador Hildebrando Accioly, o nosso maior publicista, pedem vênia para dissociar-se de tal contrassenso.

              Essa singular desenvoltura da Presidente Dilma Rousseff no que tange à diplomacia,– em contraditória ambiguidade em que a depreciação se dá as mãos à valorização – o Itamaraty, na sanha presidencial de poupar o dinheiro do Tesouro para o mais desvairado assistencialismo, é vítima de um corte absurdo dos respectivos fundos, a ponto de não ter dinheiro para exercer as respectivas funções básicas.

               Não se vá pedir, no entanto, à Presidenta que falte à abertura ritual do debate na Assembléia Geral das Nações Unidas. Como se sabe, cabe ao Brasil esta honra desde o início dos trabalhos – marcada para a segunda quinzena de setembro – de pronunciar o discurso inaugural (a que se sucede o dos Estados Unidos). Em consequência desta contiguidade – e estando em New York – é muito raro que as palavras do Chefe da Delegação do Brasil sejam citadas pelo New York Times, que é desde muito o principal periódico americano.

                No início das Nações Unidas – tenhamos presente que naquele tempo pós-guerra o número de países-membros era de 55 – a tradição do Brasil abrir os trabalhos da AGNU cabia ao chefe da delegação brasileira junto às Nações Unidas. Depois, este honroso cargo passou ao Ministro de Estado das Relações Exteriores. Somente com a Constituição de 1988, Fernando Henrique Cardoso aí discursou (falando em inglês), e uma vez descoberto a nova oportunidade, Luis Inacio Lula da Silva e Dilma Rousseff. O fato de falar em português por vezes como no caso do monoglota Lula é inevitável, mas a preferência do inglês, se o discurso for de boa qualidade, ajudaria na sua maior difusão.

                Muita coisa já ocorreu naquela tribuna famosa (talvez a palma esteja com o Primeiro Secretário Nikita Krushev, que retirou o respectivo sapato para enfatizar os próprios argumentos quanto a substituir o Secretário-Geral por uma troika). No entanto, a alocução da Presidenta, com o seu viés local e eleitoreiro, tocou em tecla pouquíssimo utilizada. Já diz o velho ditado que ‘elogio em boca própria é vitupério’.  Ionesco, no seu teatro do absurdo, lamentaria não haver pensado em tal probabilidade, mas não discutiria de quanto poderia aproveitar o ridículo e o farsesco dessa ideia.

                 Destacar feitos do PT a dez dias da eleição – João Santana decerto providenciará um filmete (posto que preferisse fazer um com as usuais mentiras sobre Marina Silva) – é dar prova de total falta de mancômetro (releve-me o leitor a eventual baixaria, mas convenhamos que é para melhor integrar-se ao discurso da Presidenta). O imortal Henfil também gostaria de estar presente com seu Gastão, o vomitador – que infelizmente seria retirado por motivos de saúde pública da Aula augusta da ONU, pelo respectivo serviço de segurança...

                 O mais penoso das brincadeiras é quando elas recobrem, com o diáfano véu da fantasia, uma constrangedora realidade.

 

(Fontes: O Globo, Folha de S. Paulo, Tratado de Direito Internacional Público, de Hildebrando Accioly)              



[1] Malgrado os meus cinquenta anos de serviço diplomático, dada a minha situação de inativo, não me valho de quaisquer indicações internas, não só pela circunstância de não mais recebê-las, mas também pela impositiva discrição que o ofício me ensinou.

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