Que as palavras de Vladimir Putin
tenham sido recebidas com ceticismo, não será difícil de intuir. Depois de
tantas ações de interferência nas questões internas da vizinha Ucrânia, a alegada
súbita metamorfose do presidente russo há de provocar desconfiança
generalizada. E se nos ativermos ao comportamento do passado, seja mediato,
seja imediato, existirão para essa postura sobejos motivos.
Por isso,
conto com a compreensão do leitor se repetir as palavras de Virgílio na Eneida:
“Timeo Danaos, et dona ferentes” (temo os gregos, ainda mais quando dão presentes).
Em
quê implica esse imprevisto aceno de paz de Putin? Ele pede aos separatistas pró-Rússia das
provinciais orientais da Ucrânia que adiem o referendo marcado para este
domingo, onze de maio; anuncia a retirada de suas tropas da fronteira com a
Ucrânia; e deixa entrever condicionado apoio às eleições ucranianas do dia 25
de maio.
O Presidente da
Federação Russa fez esse anúncio após reunião com o presidente da Confederação
Helvética e atual chefe da Organização para a Segurança e a Cooperação na
Europa (OSCE), Didier Burkhalter. Como se
terá presente, oito observadores da OSCE
(de que a Rússia, a Suiça e a Europa ocidental são membros) foram ilegalmente
apreendidos e mantidos em cativeiro por milicianos separatistas, no leste
ucraniano. Enquanto lhe aprouve, o Senhor
do Kremlin não lhes determinou a liberação – como devera – embora não seja
segredo para ninguém que tais formações libertariam de imediato os observadores
da OSCE ao menor sinal do governo
russo.
Sem embargo, gospodin
Putin não desdenha da eventual ajuda da OSCE,
se ela trouxer água para o seu moinho. Com efeito, ele condiciona o seu ‘apoio’
às eleições de domingo, 25 de maio corrente, a que o governo de Kiev federalize
as regiões orientais, dando-lhes autonomia que, na prática, as tornaria dependentes de Moscou, eis que essa
liberdade se estenderia precipuamente à política externa.
Essa opção da
dependência de Moscou mostra, na verdade, que Putin deseja tornar cativa a
política de Kiev dos interesses do Kremlin. Essa federalização das províncias
orientais faria com que se transmutassem em convenientes satélites da Rússia,
em matéria diplomática (leia-se obediência ao vínculo russo), enquanto o poder
central ucraniano continuaria com a obrigação de atender aos dispêndios que
normalmente incumbem ao poder federal nos estados federativos.
Não há constituição séria que assuma esta
dicotomia. Se concordasse em conceder a tais províncias autonomia em
política externa, na prática o governo central da Ucrânia deixa de existir para a parcela oriental do
país. Ao fazer essa brutal concessão,
que transforma o regime federal em confederal, o governo central de Kiev se
descobre manietado a poderes autônomos, virtuais traidores constitucionais.
Tais províncias se veriam na cômoda, mas esdrúxula posição, de receberem dotações tributárias levantadas pelo estado
central, mas não teriam a obrigação no que tange à política externa (leia-se
Federação Russa) de seguir as determinações de Kiev!
Por isso, a ‘oferta
de Putin’ é, na verdade, condição
leonina, em que as províncias do leste se transformariam em ‘quinta coluna’ de Moscou, ao representarem
uma estranha aliança com o Poder imperial. Nessa fortaleza do leste, a ponte
levadiça estaria sempre baixada na direção de Moscou, enquanto ao poder
territorial de Kiev caberia apenas a manutenção dos custos de infraestrutura...
Com essa
exigência, o estado ucraniano ficaria capenga, pois na prática estaria cedendo
a suserania no leste ao Kremlin.
Através dessa ‘oferta’,
Vladimir Putin não está fazendo recuo
algum. Trata de obter pela porta dos fundos, sem os percalços da guerra, o que na prática visa desde o início: a inviabilização da opção
ucraniana pela União Européia e, se tal
não for realizável, limitar a escolha à vertente ocidental, de fala
ucraniana, do governo de Kiev.
Esse suposto ‘recuo’ do Presidente Putin não
passa, portanto, de uma descabelada tentativa
de conseguir, sem o ônus do conflito armado e escapando de ulteriores
sanções do Ocidente, fragmentar na prática o Estado Ucraniano, com a partilha
da região oriental indo para o regaço do velho urso do Império Russo.
(Fonte: O
Globo)
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