Ao ouvir Albano falar, alguém poderia até imaginar que estivesse contente com a vida que levava. Ainda não entrara nos trinta, e quem o conhecesse mal, pensaria que tudo andasse bem com ele.
Depois de
dança de empregos, acabara conseguindo trabalho que por ser em órgão público
lhe dava segurança, mas muito pouco prometia em termos de melhoras radicais na
existência.
Via o chefe
da repartição e se perguntava se acabaria daquele modo. Não era perspectiva das
mais alentadoras, mas sendo comodista, procurava não ruminar demasiado no
assunto. Embora não se esforçasse, pensava com os seus botões que de algum modo
encontraria saída para uma vida melhor, e decerto em ambiente não tão medíocre.
A única
vantagem estaria nas poucas exigências da colocação. Contavam-se nos dedos os
dias com maior acúmulo de expediente. Se a modorra prevalecia, e bastante espaçados
os picos de atividade, por que se queixar? Havia trabalhos piores...
Por isso,
passava boa parte da jornada no celular, combinando programas para a noite.
Assim procedia, para evitar o disse-me-disse das vizinhas de mesa – sobretudo
uma baranga cuja especialidade parecia ser intrometer-se na vida alheia, de
preferência sentimental. Como ela fosse mal-intencionada e boa de ouvido, ainda
por cima, Albano se servia do SMS na
armação de seus esquemas.
Dessa maneira,
não dava pasto para fofocas, se bem que camuflasse as suas tentativas
igualmente com o objetivo de ocultar a pobreza dos contatos em matéria
feminina. Como todo baixote, nas saídas espigava-se o mais que podia, além de
empostar a voz e aparentar jeitão de quem se julga em condições de levar a
melhor em tudo.
Não gostou
nada quando uma conhecida – com quem tentara ficar – não só o rejeitara, mas se
atrevera a zombar dele, a ponto de chamá-lo de projeto de lei de gerson.
Convenhamos, nosso herói, a despeito da pretensão, não fazia exatamente o tipo
de galã, mesmo no subúrbio.
Trocando em
miúdos, Albano não se sentia como alguém realizado, e muito menos na esfera
sentimental. Vindo do Nordeste, não tinha família no Rio, excetuada prima com quem, por ser casada e bem mais
velha, só se comunicava em datas formais.
Como não era
dado à leitura, a sua existência não lhe trazia muitos prazeres e satisfações,
por não ter turma com que pudesse preencher o seu tempo livre. Se não lhe
faltassem conhecidos, na verdade só tinha um amigo mais íntimo.
Essa
relação surgira mais por iniciativa de João do que dele próprio. Desconfiado
por natureza, não se abria e nem costumava tratar de assuntos pessoais. Dada a
atmosfera de solidão que o cercava, com pequenos gestos e atenções fazia por
manter o conhecimento. Por vezes até sentia vontade de cultivá-lo mais, embora
o natural arredio não tardasse em prevalecer.
Malgrado não
tivesse pendores intelectuais, por vezes o vazio em que vivia – longe do clã
nordestino cujo valor passara a prezar, e com o disparatado grupo com que se
relacionara, mais cupinchas e colegas do que amigos – sentia pesar mais forte,
a ponto de meter-se em sala de cinema de bairro, querendo manter à distância,
inda que por um punhado de horas a funda solidão que não o largava. E se os
personagens não costumam sair da tela, como na Rosa Púrpura de Woody Allen,[1] ao
voltar à rua redescobriria a solitude, de que imaginara desvencilhar-se no
escurinho da fábrica de sonhos.
*
*
Nos fins de
semana, que aprendera na monotonia do tempo em abominar, as caminhadas lhe
podiam pesar além da conta. Em geral, se fazia ao largo do bairro em que vivia,
pela ambiência suburbana das calçadas malconservadas.
Fora com
quase entusiasmo que tomara o metrô para a Zona Sul, de que ouvia maravilhas.
Estranhou, no entanto, o desconforto que encontrou nas vetustas composições.
Lembrou-se de viagem que fizera ao Rio ainda como turista, e a favorável
impressão dos vagões novos e bem-cuidados. O tempo ali passara depressa, e a descuidada
conservação casava bem com a superlotação e a má-educação, que sequer
respeitava os assentos marcados para idosos.
Não havia
passado tantos anos assim, para que o serviço antes decantado, a ponto de motivar inaugurações
presidenciais, hoje tivesse decaído tanto. Dentro da deterioração geral e o
desconforto do transporte, lhe era difícil acreditar em tão rápida decadência.
O que admirara nas primeiras estações de mármore branco, hoje mal se distinguia
nas paredes dilapidadas e encardidas, e, em especial, nas velhas composições em
que se refletia a incúria e o abandono do poder público.
Albano
entendeu a revolta que lançara em São Paulo e por esses brasis as passeatas de
protesto. Vindo do Nordeste, não lhe era
difícil sentir a diferença entre o poder e os privilégios dos ricos, e os
espaços da caatinga e do semiárido, aonde não chegam os açudes. Sem embargo, no
incômodo que sentia, via com pesar o retorno dos vagões de terceiro-mundo como
se o decantado metrô de primeiro mundo, de que enchiam a boca os políticos
corruptos, houvesse saído de cena quase como miragem cinematográfica, tão
depressa descambara para a sujeira, o desmazelo e o fundo menosprezo pelo
usuário.
* *
Ao cruzar
o saguão do prédio em que arranjara apartamento de quarto e sala, cujo aluguel
pudesse pagar com o ordenado, ele vinha cansado da longa jornada. Como sombra
se deslocara por Copacabana, Ipanema e Leblon, apanhando o ônibus circular.
Viu as
diferenças na sorte entre os bairros famosos. Copacabana perdera muito da
antiga graça da Princesinha do Mar. Nas calçadas da avenida que se estendia em
paralela da Atlântica, indo do Leme ao Posto Seis, caminhava gente em geral mal
vestida, que pouco tinha a ver com as
descrições trazidas pelos parentes visitantes para o menino nordestino.
Tampouco
o comércio - que é um espelho do público nos passeios à sua volta – nada tinha
a ver com a passada elegância. Farmácias, bancos, lojas de comércio popular se
integravam nas novas condições sociais.
Ipanema
lhe pareceu um bairro em transformação. Copacabana avança até a praça general
Osório e quiçá um pouco além, com as suas farmácias, lojinhas e bancos, muitos
bancos! Mais além, as longas quadras podem guardar um tanto do antigo comércio,
mas lá entreviu tendência para a geral queda de nível, sempre guiado pela inefável
trinca de banco, farmácia e loja de artigos populares.
Por
último, o Leblon, em que viu muitos tapumes temporários, e um resquício dos
ares de bairro, posto que, como as bestas do apocalipse, aí estão as forças do
progresso na sua tristonha marcha.
Assim, ao acercar-se da porta do elevador no
modesto edifício da Zona Norte, Albano chegara carregado das difusas lembranças
da longa trajetória, e não atentou para a moça à sua frente, que acompanhava pelo
modernoso quadro a vinda do ascensor.
* *
Quando a cabine chegou, fazia sempre barulho
como se nele houvesse alguma coisa desregulada.
Foi a
hora em que sacudiu a própria distração e lembrado da lição materna, deu à moça
precedência na entrada.
Após
hesitar por um instante, ela, passando à frente, disse:
“Obrigada.”
Mais
tarde, ele se descobriria a ruminar sobre a cena. Achou engraçado que
desencavasse aquelas fugidias impressões, mas algo lhe tocou no entrecruzar de
olhares. Se bem parecesse um pouquinho arregalado, nela havia toque de
melancolia, que, de forma um tanto sorrateira, iria enternecê-lo.
Será
casada, terá filhos? Ficou de apurar, porque, no seu caso, a curiosidade não
era retórica.
* *
Por ser seu
conterrâneo, o porteiro era um quase amigo. Vários macetes úteis, ele já lhe
tinha passado. Aproveitaria, assim, hora em que estivesse sozinho, para obter a
ficha.
Mal
indagara, José Antônio o fitou inquisitivo.
“Fica ao
largo, porque ela é casada.”
E como o
outro respondesse com olhar entre divertido e maroto, o porteiro acrescentou:
“O marido é
invocado e ciumento.”
“Ela dá razão pra isso ?”
“Que eu
saiba, não.”
“E por acaso
o casal tem filhos?”
“Não.”
“E qual o
nome dela?”
“Epa!,
Albano... veja lá...”
“Não sou
louco, Zé... Podia me dizer como se chama?”
“O nome é Yvone.”
*
*
Nos dias seguintes, o ingresso nada lhe
rendia. Embora não quisesse levantar lebre, estava quase a perguntar ao
porteiro por mais detalhes, quando a porta se abre e Yvone entra na cabine.
“Bom dia.”
Os seus
olhos a procuram, e ela não os abaixa, a despeito da intensidade com que ele a encara.
“Bom dia...”
Albano arrisca
um passo na sua direção, e ela parece abrir-se para o seu olhar, nele mergulhando
fundo, no limite do abandono.
No enleio do
momento, tem a impressão de que o tempo é seu cúmplice. Mas a ilusão dura
pouco.
De repente, o elevador para. Entra uma senhora
levando criança pela mão.
Tangidos
pela presença estranha, a tórrida troca de olhares se desfaz. A má-sorte, que
não tem contas a pagar, põe o incoato sentimento, a forte, nascente empatia
para o quarto de despejo das ocasiões perdidas.
Chegados ao
térreo, Yvone, é a própria sisudez. E, com passo ligeiro, se afasta.
*
Mais do que
o interesse, notou a disponibilidade da moça. Para quem está habituado a ver os
seus compridos olhares deslizarem como tênues sombras nas pupilas de tantas
mulheres, que os deixavam escorrer pelo semblante vazio da indiferença, tomou a
reação de Yvone como se fosse porta entreaberta
de incondicional rendição.
Queria
controlar-se, mas o que fazer com aquele rosto a pairar diante dele? E como não
reagir diante do desejo insatisfeito que sentira ferver dentro dela? Para
alguém mais timorato daria medo tanta sede de querer reprimido que nela sentia
morar. Pois intuía consumir-se nas ansiosas, arregaladas vistas a brasa do desejo
mal satisfeito. No letargo do desamor, imaginou, ele prometia no gesto e na
presença o que o companheiro há muito lhe negava, pelo caráter empedernido da
sensibilidade. No calor da pronta
reação, chega a conceber que ali ardesse a chama de mulher reprimida.
Não se
esquecera do aviso do porteiro. Mas o que sentia só lhe aumenta o desejo de
abraçar a moça. Que se danasse o outro. Sabe dos riscos, mas o acalenta meio
doido nas circunstâncias. Pois não é que nele ferve a ânsia de tê-la nos
braços, e envolvê-la no ardor do fortuito e proibido?
Tinha
presente que não podia fiar-se em encontros aleatórios no elevador, demasiado
breves e sujeitos às indefectíveis interrupções. Precisava dar jeito naquilo, e
não via outra saída que colher mais informações do conterrâneo Zé Antonio.
I I
“Ocê não tá entendendo a minha
situação aqui.”
Albano
nunca vira Zé Antonio tão arreliado. A testa vincada, a expressão dura não
escondia a raiva.
“Sou o porteiro do prédio e preciso
do emprego. O cara é proprietário. Ele não é inquilino feito você!”
O outro
sorriu amarelo.
“Quem
ouvir, pode até pensar que eu esteja pedindo a chave do apê, para os meus
encontros... O que eu gostaria de ter de você, não é nada de material, não.
Quero, ô cara, que você me dê a ficha dos horários do casal. Estas informações
são obviamente para meu governo exclusivo. É só pra eu me orientar, ter noção do tempo que eu disponho. É só isso !
Não tô pedindo combinação de cofre, chave de apartamento, ou coisa que o valha...
Respondendo às minhas perguntas, que risco você corre? Nenhum! E nem vou comentar com quem quer que
seja, que tou sabendo isto ou aquilo...”
Aos poucos,
com fala mansa, ele foi acalmando o patrício.
Mas não
seria daquela vez que o porteiro desembucharia algo. Sentiu, no entanto, que estaria prestes a desdramatizar
a coisa. Pelo menos, já não parecia tão nervoso.
Zé Antonio,
no entanto, dissimulava. Mais matutava e mais se convencia de que aquilo só
podia dar em droga. E não precisaria muito para que ele, se o caso fosse
descoberto, passasse por alcoviteiro. Além
de ser conhecido o fato de serem conterrâneos, Albano o tratava de modo amistoso,
quase íntimo, o que não escaparia àquela gente fofoqueira.
Por outro lado, o porteiro não
dissera tudo a respeito de Eurípedes para Albano. Invocado e ciumento dizia pouco de o que lhe chegara aos ouvidos.
Truculento, os seus maus bofes podiam ir muito além da contida violência
doméstica. Ouvira até dizer que uma vez fora parar na delegacia, não sabia bem
se por causa da lei Maria da Penha ou
briga de vizinhos. De todo modo, era
coisa de antes. Salvo uma que outra altercação de que tivesse sabido pela boca
de morador do andar de cima, José Antonio só lia na postura crispada de Yvone
quando junto do marido indícios de um vago temor, que lhe dava a impressão de
tolher a natureza em geral efusiva e mesmo descontraída.
O porteiro hesitava. Irritava-lhe a
insistência de Albano. Batia sempre na mesma tecla: a ficha dos horários de
ambos. Tinha o seu, de funcionário público, e queria saber se teria uma janela
para encontrá-la. Além disso, não podia dispensar das horas de saída e entrada
do marido.
“Ô Zé, abre o jogo! Qualquer um pode
saber dos compromissos do casal...”
José Antonio estava bem-humorado
naquele dia. Por isso, o refrão do outro não o aborreceu como antes. Depois,
pensou, que problema haveria em dizer algo que muita gente já sabia?
“Eurípides sai de casa de manhã bem
cedo, mais ou menos em torno das sete, e só volta à noitinha, quase às oito.
Quando chega, aliás, vareia um pouco, pois depende do trânsito...”
“E ela?”
“O seu
esquema é bem mais complicado. Não tem horário fixo como o marido. Quando sai
de manhã é naquela hora em que você topou com ela no elevador. Já de tarde,
acho que tem compromisso umas três vezes por semana. Lá pelas seis está de
volta.”
Na sua
escrivaninha da repartição, Albano se pilhou a conjuminar esquema que lhe
possibilitasse estar disponível num fim de tarde. Para não perder a
oportunidade daria jeito de largar o expediente um pouquinho mais cedo.
Inventaria para tanto a desculpa do médico.
I I I
Quando chegou no saguão, já a
encontrou esperando o elevador. Por um instante, duvidou da sorte. No entanto,
estavam mesmo sozinhos.
Enquanto chuleava pela sua pronta chegada ao térreo, postou-se ao lado
de Yvone, que permaneceu imóvel.
Entrementes, os andares escorriam devagar pelo mostrador.
Albano até
pensou em dizer-lhe qualquer coisa, mas afinal preferiu esperar pela entrada na
cabine.
A sua
ansiedade, além de dar-lhe a impressão de que tudo se arrastava, ainda o fazia
temer pela chegada de algum importuno, que lhe roubasse a privacidade da sonhada
travessia a sós.
Ao cabo
de o que lhe pareceu uma enormidade, o elevador parou. Apressou-se, então, em
abrir-lhe a porta.
“Obrigada”, disse ela.
“Qual é o
andar da senhorita?”, perguntou solícito.
Até aquele momento ela mantinha a vista
baixa.
“Senhora”, corrigiu, com meio-sorriso. “Décimo, por favor.”
“Veja
só, somos quase vizinhos. Moro no décimo-primeiro.”
Ele a
cerca de atenções, enquanto lhe procura com insistência o olhar. Ao contrário
da vez anterior, ela se esquiva.
Albano
já desespera, quando, não se sabe se por acaso ou de propósito, Yvone deixa
cair no chão um dos pacotinhos que trazia.
Com rápido reflexo, ei-lo com a mão espalmada a
entregar-lhe o embrulho.
Se os
dedos de leve se tocam, o que mais agrada Albano é o reencontro de seus
olhares. No fundo mergulho em que se lança, sente aceno de cumplicidade.
Mas a
meia parada do elevador prenuncia a chegada ao andar.
Nesse
momento, num meio-preparado repente, coloca na palma de sua mão papelzinho com
o número de seu celular.
Com o
rosto crispado, ela volta a encará-lo.
“Isso
não tá certo.”
Confuso, balbucia resposta algo
inaudível, enquanto Yvone se afasta.
Desanimado, está por lamentar a reviravolta, quando se dá conta de um
detalhe. Ela levara consigo o torpedo.
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