A DAMA DO ELEVADOR
X
O celular tocou quando estava no ônibus.
Afobado, custou a retirá-lo do bolso do casaco.
“Oi.
Desculpe o mau jeito, querida...”
“Não
esquenta. ‘Cê tá na condução, né?”
“É.
Tal o aperto, que fica meio complicado. Mas já tudo sobre controle. E aí?”
“Sem
novidade. Chamou da primeira parada. Daqui a pouco, chega em São Paulo.”
“Daqui
a uns vinte, no máximo trinta minutos, tou em casa.”
“Quando chegar, deixa tocar três vezes e desliga... depois é só esperar
um pouquinho...”
E sem
esperar que ele responda, cortou a ligação.
*
No
apartamento, Albano optou dar ajeitada na aparência, antes de ligar para Yvone.
Tomou o que chamava banho de gato, lavou as axilas, deu escanhoada no rosto, e
após borrifar-se com água de
colônia vestiu o seu melhor conjunto de
camisa sport e calça jeans.
Liga
então para ela, ouve tocar três vezes e, conforme a instrução, desliga. Só que no nervosismo a chamada ainda
terá um quarto toque antes de interromper-se...
Inseguro, pensou se deve repetir a
operação, para que o código seja respeitado. Acaba achando que aquilo seria um
tanto ridículo. Por isso, prefere ficar por ali.
Como
fizera a sua parte, agora tem de esperar. Afinal, quem corria riscos era ela. Embora tenha ímpetos de
descer e bater na sua campaínha, sabe que pode tudo pôr a perder pela
precipitação. Melhor, assim, ter paciência e aguardar a vez.
*
No entanto, os minutos foram
passando e nada. Quinze, trinta, quarenta... Aquilo principia a enervá-lo. Por
mais que reflita, não logra entender... Não ignora que as mulheres levam mais
tempo para se arrumar. Todavia, a própria situação deles exclui a alternativa
de jantar fora. Cercados por tantos olhos curiosos, e dada a natureza violenta
do marido, seria correr risco estúpido, muito maior do que a rápida passagem
por dois lances de escadas e o mergulho no longo corredor do edifício. Naquela
hora, os moradores, ou estão jantando, ou acompanham do sofá o Jornal Nacional.
Não quero parecer nervoso,
pensou, mas não seria talvez o caso de chamá-la outra vez? Aí, olha para o
relógio e, como sempre, o tempo do aguardo, quando comparado com a frieza
digital de seu cronômetro, não tinha relação com os minutos efetivamente
transcorridos.
Se
aquilo o irrita um pouco, também o ajuda a relativizar a coisa. Pelo visto, a
demora de Yvone existe mais na sua ansiedade de amante, do que na realidade de
tê-la sã e salva dentro do apê com as cortinas cerradas. Dada a cercania dos
prédios vizinhos e fronteiros, não havia outro jeito para resguardar-lhes a
privacidade. Deixar as janelas abertas era a certeza de que seriam pasto para a
alegre indiscrição de estranhos que, à falta de o que fazer, lhes devassariam a
intimidade...
Somente
uma poderia ficar aberta. Ficava nos fundos e expunha a mata, que a noite
enegrecia, a rocha abrupta, que afastava as invasões, e mais ao longe, luzinhas
cintilantes e inconsequentes, na imensidão da paisagem e da abóbada celeste.
Por
isso, foi com certo ímpeto que levantara aquela persiana. Nenhum problema em
deixá-la escancarada. Daquele lado teriam a ilusão da transparência, sem as
claustrofóbicas barreiras ditadas pela sociedade. A única coisa de que não
poderia esquecer seria fechá-la, quando apagassem as luzes. Senão, morcegos
viriam visitá-los...
*
Quando
voltou a olhar para o relógio, viu que alguma coisa deveria ter saído errado.
Não era possível que ela tivesse deixado passar tanto tempo. Algo decerto teria
ocorrido, e tão imprevisto que sequer permitira a Yvone usar o celular.
De qualquer
forma, ele não tinha outro jeito senão o de chamá-la outra vez, para por a
coisa em pratos limpos.
No entanto, por mais que tentasse, o número
dela sempre dava ocupado. Como não sabia que diabos estava acontecendo, não
achou prudente deixar qualquer mensagem
na caixa postal.
*
Já não
olhou para o cronômetro quando resolve tentar mais uma vez. Uma sensação que
não ousa definir dele se apossa. O celular continua inatingível, mas qualquer
coisa que não define bem o impede de atender ao ritual da caixa postal. Será
como se o recado fosse a própria admissão do malogro. Albano viveu todas
aquelas horas embalado pela visão de um desejo por muito acalentado e mesmo preparado,
para que, de repente, tudo se transforme em uma espécie de grito, largado no
meio do éter sem qualquer resposta. Até mesmo na nua solidão do deserto, os
gritos do viajante são, de certa forma, respondidos pelas pedras inanimadas de
grutas e penhascos, pelo monótono escandir de suas palavras, a desfazer-se
lentamente na desolação dos elementos...
X I
Da noite
mal dormida, acordou como se carregasse no corpo a bagagem da véspera, com o
peso de suas indefinições e, sobretudo, da longa e inútil espera.
No
entanto, o fato de estar atrasado para a repartição de alguma forma o ajudou a
pôr de lado o sofrido desaponto.
E foi
mascando o pensamento de o que não pode ser por ora resolvido, resolvido está,
é que seguiu para o trabalho, na lenta e desconfortável travessia da condução.
*
Sentado na escrivaninha, olhava desconsolado para a caixa de entrada.
Seriam as férias de dois funcionários da sua seção que o tornara responsável
por aqueles expedientes. Habituado às delgadas quotas que vinham dar na sua
mesa, o volume da rotina o irritou. Por isso, a princípio olhou para aquela
maçarocada como se não lhe dissesse respeito.
Foi
nesse momento que tocou a campaínha do celular. Não podia ser em hora mais
desfavorável. Dois de seus vizinhos, se voltaram nas respectivas cadeiras,
enquanto suas vistas, entre curiosas e invasivas, lhe perguntavam por que
diabos não o atendia logo (a chamada era um tanto espalhafatosa).
“Alô ?”
“Oi!”
Inconfundível a voz cálida e descontraída. Apesar de observado, Albano
não conseguiu conter a contração em lábios e rosto.
“Lúcio,
‘pera um pouco que já te ligo.”
A dupla
que o cercava com olhos curiosos – e a fofoqueira Zilah em especial – não
pareceu muito convencida sobre o sexo de quem chamava.
Ele tardaria
um pouco em levantar-se. Imaginariam que dissimulava, quando, na verdade,
depois do logro da noitada, não sentia qualquer urgência em falar com ela.
Chegado
ao WC – ouvira a caminho o sussurro da baranga de que estava ali a serviço - foi logo ligando.
“Então
agora me chama de Lúcio...”
“Gostaria
de saber o que houve... se é que houve algo”, interrompeu.
“Meu
Amor, como você pode ser tão mal pensado? Eurípides me telefonou várias
vezes... Não sei se desconfiou de algo, o fato é que tantas ligações só podiam
me tirar a tranquilidade...”
“Yvone,
esse temor não faz o menor sentido... Você age como alguém que tem um telefone
fixo em casa... Será que não se deu conta de que, com o celular, você leva a
casa junto ?”
“Você não
conhece o Eurípides... Não sei, mas ele me deu a impressão de que tinha alguma
suspeita...”
“Amor, eu
aceito tudo. Já faço idéia do medo que você tem dele.., O que é difícil, nessas
condições, será entender por que não pôde me avisar de que ontem não daria
pé...”
Com a sua
voz envolvente, ela contornava todos os seus reclamos. O tempo, entrementes,
passava.
“Yvone, vou ter de voltar à minha mesa.
Afinal, estou aqui para trabalhar.”
“Tá bem,
meu amor. Não quero atrapalhar...”, disse, num murmúrio.
“E como
é que ficamos?”
“Te
garanto, meu amor, que hoje não
falharei...”
E antes
que ele lograsse arrancar-lhe alguma precisão na promessa, Yvone cortou a
ligação.
X I I
“Oi,
meu querido !”
Por
um instante, ele ficou em silêncio. Não que tivesse qualquer dúvida sobre a
identidade de quem lhe chamava. No visor do celular, além do número conhecido,
aparecia também o nome de quem chamava.
Estava
no ônibus, que, para variar, mal avançava. Na Praça da Bandeira, caíra em um
engarrafamento. Por outro lado, como a antecipada ligação, não viera, Albano já
não mais a aguardava. Afinal, o seu comportamento não mudara.
“Qual é
a tua, Yvone?”
“Amor,
não estou entendendo...”
“Depois do sumiço da noite de ontem, você
me telefona para a repartição, como se nada fosse... Me promete que não vai falhar e, pra variar,
falha outra vez!”
“Benzinho, não esquenta, eu posso
explicar...”
“Não
duvido que você possa... O que eu quero é outra coisa... Gostaria de
reencontrar a moça do bar... O campo está livre, mas você age como se ele não tivesse viajado...”
“Vejo
que você sacou bem o meu medo...”
“Como é que é?”
Surpreendido com o argumento, que levava a
sério o que dissera por deboche. Albano não se conteve e alteou a voz, a ponto
de merecer olhar atravessado do vizinho de banco.
“Não
esquenta, meu amor...”
“Yvone,
o que é que está havendo ?”
“O Eurípides é meio maluco... No
passado, me confessou que pode armar uma jogada desse tipo...”
“Que
tipo ?”
“Montar uma viagem fajuta, só para
testar a minha fidelidade...”
“Isso
não faz sentido...”
“Pra
você, talvez, que não o conhece, mas comigo é diferente...”
“Como
assim ?”
“Tem um
ciúme doentio e é muito violento.”
“Esse
cara viajou, meu amor! Mete isso na cabeça!”
“É a
lógica, que funciona conosco, mas não pra ele!”
“Me dá
um tempo ?”
“Não tou
te entendendo, amor...”
“Benzinho, confia em mim. Em um minuto te chamo.”
*
“Minha querida, grato pelo tempo
que me deu...”
“Um
minuto, hein?”
“Agora, que eu matei a charada, você precisa ter um pouco de
paciência...”
“Agora, quem não tá entendendo sou eu”, replicou ela.
“Tenho uma proposta pra te fazer...”
“O
que é?”, perguntou desconfiada.
“Vamos fazer as pazes no nosso barzinho... lá eu te explico tudo.”
Yvone,
curiosa, queria saber mais. Albano, no entanto, soube interessá-la, sem nada
precisar de concreto. De uma parte, a curiosidade, e de outra, o lugar
conhecido, tornavam o convite irresistível.
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