quarta-feira, 28 de maio de 2014

CIDADE NUA VII


                                            A  DAMA  DO  ELEVADOR                                 

                                      
                                                                X

                

                 O celular tocou quando estava no ônibus. Afobado, custou a retirá-lo do bolso do casaco.

                 “Oi. Desculpe o mau jeito, querida...”

                 “Não esquenta. ‘Cê tá na condução, né?”

                 “É. Tal o aperto, que fica meio complicado. Mas já tudo sobre controle. E aí?”

                 “Sem novidade. Chamou da primeira parada. Daqui a pouco, chega em São Paulo.”

                 “Daqui a uns vinte, no máximo trinta minutos, tou em casa.”

                 “Quando chegar, deixa tocar três vezes e desliga... depois é só esperar um pouquinho...”

                 E sem esperar que ele responda, cortou a ligação.     

                                                        *

                 No apartamento, Albano optou dar ajeitada na aparência, antes de ligar para Yvone. Tomou o que chamava banho de gato, lavou as axilas, deu escanhoada no rosto, e após borrifar-se com  água de colônia  vestiu o seu melhor conjunto de camisa sport e calça jeans.

                 Liga então para ela, ouve tocar três vezes e, conforme a instrução,  desliga. Só que no nervosismo a chamada ainda terá um quarto toque antes de interromper-se...

                 Inseguro, pensou se deve repetir a operação, para que o código seja respeitado. Acaba achando que aquilo seria um tanto ridículo. Por isso, prefere ficar por ali.

                 Como fizera a sua parte, agora tem de esperar. Afinal, quem corria  riscos era ela. Embora tenha ímpetos de descer e bater na sua campaínha, sabe que pode tudo pôr a perder pela precipitação. Melhor, assim, ter paciência e aguardar a vez.

                                                        *

                 No entanto, os minutos foram passando e nada. Quinze, trinta, quarenta... Aquilo principia a enervá-lo. Por mais que reflita, não logra entender... Não ignora que as mulheres levam mais tempo para se arrumar. Todavia, a própria situação deles exclui a alternativa de jantar fora. Cercados por tantos olhos curiosos, e dada a natureza violenta do marido, seria correr risco estúpido, muito maior do que a rápida passagem por dois lances de escadas e o mergulho no longo corredor do edifício. Naquela hora, os moradores, ou estão jantando, ou acompanham do sofá o Jornal Nacional.

                 Não quero parecer nervoso, pensou, mas não seria talvez o caso de chamá-la outra vez? Aí, olha para o relógio e, como sempre, o tempo do aguardo, quando comparado com a frieza digital de seu cronômetro, não tinha relação com os minutos efetivamente transcorridos.

               Se aquilo o irrita um pouco, também o ajuda a relativizar a coisa. Pelo visto, a demora de Yvone existe mais na sua ansiedade de amante, do que na realidade de tê-la sã e salva dentro do apê com as cortinas cerradas. Dada a cercania dos prédios vizinhos e fronteiros, não havia outro jeito para resguardar-lhes a privacidade. Deixar as janelas abertas era a certeza de que seriam pasto para a alegre indiscrição de estranhos que, à falta de o que fazer, lhes devassariam a intimidade...

              Somente uma poderia ficar aberta. Ficava nos fundos e expunha a mata, que a noite enegrecia, a rocha abrupta, que afastava as invasões, e mais ao longe, luzinhas cintilantes e inconsequentes, na imensidão da paisagem e da abóbada celeste.

              Por isso, foi com certo ímpeto que levantara aquela persiana. Nenhum problema em deixá-la escancarada. Daquele lado teriam a ilusão da transparência, sem as claustrofóbicas barreiras ditadas pela sociedade. A única coisa de que não poderia esquecer seria fechá-la, quando apagassem as luzes. Senão, morcegos viriam visitá-los...    

                                                        *

              Quando voltou a olhar para o relógio, viu que alguma coisa deveria ter saído errado. Não era possível que ela tivesse deixado passar tanto tempo. Algo decerto teria ocorrido, e tão imprevisto que sequer permitira a Yvone usar o celular.

              De qualquer forma, ele não tinha outro jeito senão o de chamá-la outra vez, para por a coisa em pratos limpos.  

               No entanto, por mais que tentasse, o número dela sempre dava ocupado. Como não sabia que diabos estava acontecendo, não achou prudente deixar qualquer    mensagem na caixa postal.

                                                        *

               Já não olhou para o cronômetro quando resolve tentar mais uma vez. Uma sensação que não ousa definir dele se apossa. O celular continua inatingível, mas qualquer coisa que não define bem o impede de atender ao ritual da caixa postal. Será como se o recado fosse a própria admissão do malogro. Albano viveu todas aquelas horas embalado pela visão de um desejo por muito acalentado e mesmo preparado, para que, de repente, tudo se transforme em uma espécie de grito, largado no meio do éter sem qualquer resposta. Até mesmo na nua solidão do deserto, os gritos do viajante são, de certa forma, respondidos pelas pedras inanimadas de grutas e penhascos, pelo monótono escandir de suas palavras, a desfazer-se lentamente na desolação dos elementos...     

 

                                                         X I

 

                 Da noite mal dormida, acordou como se carregasse no corpo a bagagem da véspera, com o peso de suas indefinições e, sobretudo, da longa e inútil espera.

                 No entanto, o fato de estar atrasado para a repartição de alguma forma o ajudou a pôr de lado o sofrido desaponto.

                E foi mascando o pensamento de o que não pode ser por ora resolvido, resolvido está, é que seguiu para o trabalho, na lenta e desconfortável travessia da condução.

                                                        *    

                Sentado na escrivaninha, olhava desconsolado para a caixa de entrada. Seriam as férias de dois funcionários da sua seção que o tornara responsável por aqueles expedientes. Habituado às delgadas quotas que vinham dar na sua mesa, o volume da rotina o irritou. Por isso, a princípio olhou para aquela maçarocada como se não lhe dissesse respeito.

               Foi nesse momento que tocou a campaínha do celular. Não podia ser em hora mais desfavorável. Dois de seus vizinhos, se voltaram nas respectivas cadeiras, enquanto suas vistas, entre curiosas e invasivas, lhe perguntavam por que diabos não o atendia logo (a chamada era um tanto espalhafatosa).

              “Alô ?”

              Oi!

               Inconfundível a voz cálida e descontraída. Apesar de observado, Albano não conseguiu conter a contração em lábios e rosto.     

              “Lúcio, ‘pera um pouco que já te ligo.”

               A dupla que o cercava com olhos curiosos – e a fofoqueira Zilah em especial – não pareceu muito convencida sobre o sexo de quem chamava.

              Ele tardaria um pouco em levantar-se. Imaginariam que dissimulava, quando, na verdade, depois do logro da noitada, não sentia qualquer urgência em falar com ela.

              Chegado ao WC – ouvira a caminho o sussurro da baranga de que estava ali a serviço -  foi logo ligando.

              “Então agora me chama de Lúcio...”

              “Gostaria de saber o que houve... se é que houve algo”, interrompeu.

              “Meu Amor, como você pode ser tão mal pensado? Eurípides me telefonou várias vezes... Não sei se desconfiou de algo, o fato é que tantas ligações só podiam me tirar a tranquilidade...”

              “Yvone, esse temor não faz o menor sentido... Você age como alguém que tem um telefone fixo em casa... Será que não se deu conta de que, com o celular, você leva a casa junto ?”

             “Você não conhece o Eurípides... Não sei, mas ele me deu a impressão de que tinha alguma suspeita...”

             “Amor, eu aceito tudo. Já faço idéia do medo que você tem dele.., O que é difícil, nessas condições, será entender por que não pôde me avisar de que ontem não daria pé...”

             Com a sua voz envolvente, ela contornava todos os seus reclamos. O tempo, entrementes, passava.

             Yvone, vou ter de voltar à minha mesa. Afinal, estou aqui para trabalhar.”

              “Tá bem, meu amor. Não quero atrapalhar...”, disse, num murmúrio.

              “E como é que ficamos?”

              “Te garanto, meu amor, que hoje não falharei...”

               E antes que ele lograsse arrancar-lhe alguma precisão na promessa, Yvone cortou a ligação.

                                                         

                                                         X I I

           

                “Oi, meu querido !”

                 Por um instante, ele ficou em silêncio. Não que tivesse qualquer dúvida sobre a identidade de quem lhe chamava. No visor do celular, além do número conhecido, aparecia também o nome de quem chamava.

                Estava no ônibus, que, para variar, mal avançava. Na Praça da Bandeira, caíra em um engarrafamento. Por outro lado, como a antecipada ligação, não viera, Albano já não mais a aguardava. Afinal, o seu comportamento não mudara.

              “Qual é a tua, Yvone?”

              “Amor, não estou entendendo...”

              “Depois do sumiço da noite de ontem, você me telefona para a repartição, como se nada fosse...  Me promete que não vai falhar e, pra variar, falha outra vez!”

              “Benzinho, não esquenta, eu posso explicar...”

              “Não duvido que você possa... O que eu quero é outra coisa... Gostaria de reencontrar a moça do bar... O campo está livre, mas você age como se ele não tivesse viajado...”

              “Vejo que você sacou bem o meu medo...”

              “Como é que é?”

                Surpreendido com o argumento, que levava a sério o que dissera por deboche. Albano não se conteve e alteou a voz, a ponto de merecer olhar atravessado do vizinho de banco.

              “Não esquenta, meu amor...”

              “Yvone, o que é que está havendo ?”

               “O Eurípides é meio maluco... No passado, me confessou que pode armar uma jogada desse tipo...”

              “Que tipo ?”

              “Montar uma viagem fajuta, só para testar a minha fidelidade...”

              “Isso não faz sentido...”

              “Pra você, talvez, que não o conhece, mas comigo é diferente...”

              “Como assim ?”

              “Tem um ciúme doentio e é muito violento.”

              “Esse cara viajou, meu amor! Mete isso na cabeça!”

              “É a lógica, que funciona conosco, mas não pra ele!”

              “Me dá um tempo ?”

              “Não tou te entendendo, amor...”

               “Benzinho, confia em mim. Em um minuto te chamo.”

                                                        *

                “Minha querida, grato pelo tempo que me deu...”

                 “Um minuto, hein?”

                 “Agora, que eu matei a charada, você precisa ter um pouco de paciência...”

                 “Agora, quem não tá entendendo sou eu”, replicou ela.

                 “Tenho uma proposta pra te fazer...”

                 “O que é?”, perguntou desconfiada.

                 “Vamos fazer as pazes no nosso barzinho... lá eu te explico tudo.”

                Yvone, curiosa, queria saber mais. Albano, no entanto, soube interessá-la, sem nada precisar de concreto. De uma parte, a curiosidade, e de outra, o lugar conhecido, tornavam o convite irresistível.

 

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