A DAMA DO ELEVADOR
X I I I
Desta feita, os dois
chegaram quase ao mesmo tempo. Como ele vinha do trabalho, a encontrou um
pouquinho mais arrumada. Lá estava ela, na mesinha conhecida, a levantar-se ansiosa.
Em torno, havia menos gente, por causa da hora. E foi com o mesmo ímpeto que os
dois se abraçaram.
“Conta pra mim o que você vai aprontar...”
“Ah,
sou eu então que vou aprontar”, disse, sorrindo. “Mas me deixa o tempo de
molhar a garganta... a minha e a tua.”
Yvone
fez o muxoxo de regra, porém ajudou na chamada do garçom. E para espanto de
Albano, aderiu ao chope.
A
bebida veio quase sem colar, como era do gosto do casal. Mas estava geladinha.
“Temos
de arranjar um esquema que te liberte do terror das incertas do Eurípides.”
“E
como isso seria possível?”
“Simplérrimo. Basta encontrar-nos em horas do dia, nas quais a tua
ausência de casa não pode criar suspeita, mesmo a mais ciumenta das criaturas.”
“Será
que vai funcionar?”, perguntou ela, desconfiada.
“E por
quê não? Há mais de um motel nas cercanias, em que podemos entrar de táxi... E
você, com o celular, poderá engabelá-lo à vontade, se ele voltar de repente
para casa...”
“Hmm, não sei...”
“Tenho
uma sugestão pra te fazer...”, avançou ele.
Yvone,
a quem a aparente simplicidade da solução de não ser apanhada fora de seu apê,
em horas que Eurípides presumiria que ela devesse estar, surgia como demasiado
fácil e por isso enganosa...
“E se
ele chegasse à tardinha, e eu ainda estivesse fora?”
“Uma
coisa seria ele chegar à noite, lá pelas dez, e não te encontrar. Outra é o teu
marido entrar em casa na hora do jantar...”
Enquanto descreve as possibilidades e busca convencê-la da segurança
desta ou daquela hipótese, ele tenta mergulhar nos seus olhos. Por mais prudente
que a idéia lhe pareça, o piscar nervoso ou o rosto mais contraído não lhe dão
a impressão de que ela consiga sequer imaginar qualquer encontro dos dois a
salvo desta tortura. E dele se vai apossando sentimento misto de raiva e
desânimo.
*
Embora
não fosse dado a muitas leituras, outro dia o amigo João lhe passara um livro
de autor pouco conhecido. O que lhe impressionara havia sido o caráter
escorregadio da heroína. Posto que aparentasse interesse pelo jovem a tentar
conquistá-la, nas diversas situações sempre conseguia eludir-lhe os esforços,
recorrendo a complexo jogo de ilusórios afagos e oportunas esquivas.
Sem
saber de suas peripécias sentimentais, João lhe recomendara o romance,
sobretudo pela descrição do caráter da personagem.
“Esse
tipo de mulher é coisa rara hoje em dia. Ai daquele que se interesse por ela!”
“E que
tipo seria?”, perguntou Albano.
“É o que
os franceses chamam de ‘allumeuse’,
vale dizer, aquela que acende.”
Se não
entendera bem de que se tratava, a leitura do romance logo o prenderia, ao ver
o comportamento descrito. Seria uma mulher que se compraz em provocar atenções
e interesses, que teima em deixar insatisfeitos.
E diante das atitudes de Yvone e do seu medo dos ciúmes de Eurípedes,
principiava a perguntar-se se João não tivera a intuição de apresentar-lhe a
personagem, mesmo sem saber de suas aventuras...
*
“Hellow...”
Meio sem
atinar, ele olha para ela.
“Onde
você andava ?...”
“Não
compreendo...”
“Não
sabia que ‘cê tinha o hábito de viajar...”
“Não dá
pra entender...”, diz ele.
“Por uns
instantes, ‘cê me pareceu estar muito, muito
longe daqui...”
“Ah!...
estava pensando...”
“E se
pode saber em quê ?”
“Em que
talvez esteja fazendo papel de bobo.”
“Vamos voltar à mesma estória ?”
“Se não
se encontra saída para um problema que, na verdade, não existe, não há outro
jeito...”
“Você me
dá a impressão de não querer entender...”
“E, além
de sua fobia, há qualquer coisa pra entender ?”
“Me
desculpe, mas assim não dá mesmo.”
Por um
tempo, Albano ficou bovinamente contemplando a saída de Yvone, em meio ao
burburinho. Depois, esvaziou o copo e, acenando para o garçom, fez sinal de
mais um chope.
X I V
Albano
não era um intelectual. Tampouco se poderia defini-lo como um mané, um
filisteu. Ele mesmo se colocava em um meio-termo. Lia um pouco, mas não muito.
Sem ser cinéfilo, gostava de um bom filme, e não tinha paciência com
chanchadas. Poderia ir a museus, visitar exposições, mas em geral não por
iniciativa própria. Se não se considerava um maria-vai-com-as-outras, admitia
que nesse campo não tinha muita iniciativa. Contudo, se lhe indicassem um
programa cultural e se sentisse convicção em quem recomendava, poderia até ir.
Por que
estava pensando naquilo? Francamente, não sabia...
Nas suas
conversas com Yvone, não dera para determinar-lhe os gostos. Tinha, no entanto,
certeza de que ela não era nenhuma intelectual. Quanto às suas preferências,
não discernia muita coisa, talvez pela simples razão de que não houvesse muito
o que descobrir.
De todo
modo, ao perder a paciência, ele lhe fornecera de bandeja o motivo para
desvencilhar-se de relação que ela desejava e, ao mesmo tempo, pelo medo que o
marido provocava, achava perigosa e angustiante.
Yvone
deveria saber que a probabilidade de ser apanhada por Eurípides não era das
mais altas. Mas o seu temor era demasiado grande para conviver ainda que com a
probabilidade residual de que desse zebra.
Por isso,
malgrado a química entre eles, a sua moça do elevador queria e não queria. Ele
errara, porque se esquecera de que carecia de muita paciência. Como na pescaria
de alto mar, o pescador tem de cansar a presa, antes de içá-la para o barco.
Também naquela relação, o açodamento não levaria a nada, ou antes provocaria a
ruptura.
Foi
justamente o que acontecera... Afobado, desperdiçara a ocasião, ou, pior ainda,
dera à namorada – que outro nome poderia dar-lhe? – uma saída para situação
embaraçosa. Ficara claro que as possibilidades de serem apanhados por Eurípides
eram muito reduzidas, quase impossíveis... Mas no seu pânico, a lembrança do
marido já era suficiente para colocá-la em situação de ameaça. Só com muito
jeito e persistência ele lograria expulsar de sua mente o espantalho do
esposo...
Ao
contrário disso, quisera forçar a situação, mostrar a falta de lógica no temor
de Yvone. Com isso, só conseguira reforçar a imagem do marido e sua implícita
ameaça. Por entrar em argumentação que não a deixava esquecer o próprio medo,
Albano só atiçava um fogo que, no caso, ele deveria ir apagando aos poucos, até
que com sinuosas doses de ternura e carinho, ele amorosamente pusesse para
dormir resistência obstinada, que não mais teria propósito de persistir,
envolvida e de certo modo sufocada pela sua presença. Com isso, sufocaria em
agrados os confusos pavores, como se retirasse o ar remanescente aonde pudesse
ainda permanecer a centelha do medo... Com o abraço do amor, ele a conduziria
para as tépidas aléias onde viaja a voz ciciante das promessas sem termo, e
paira a sensação de um infinito sem barreiras...
“O senhor
quer pagar no cartão ou em dinheiro?”
Ele não
tomara cento e dez chopes, como gritava o bêbado na mítica viagem de ônibus
para a antiga Barra, que hoje não mais existe, enterrada que foi pela
especulação imobiliária.
No
entanto, lá estavam cinco bolachas de chope... Bebera demais e agora, se
arrastaria para casa... Que programa!
X V
“Alô, Yvone, sou eu...”
“...”
“Meu amor, minha querida, atire a primeira pedra quem nunca errou...”
“Que é
que é, Albano ?”
Sentiu a
glacial recepção, mas resolveu ir em frente. Afinal, quem fora grosseiro, fora
ele.
“Meu amor, pisei na bola, é verdade... Será
que não tem perdão?”
“...”
“Bem, eu
só queria conversar com Você...”
“Depois
de ontem, não vejo muito propósito...”
“Pô,
amor, me dá uma chance...”
“Que seria?...”
“Que
tal um passeio a Petrópolis ?”
“Petrópolis!? E como seria tal passeio ?”
“Deixa
por minha conta.”
“Você
poderia especificar um pouquinho mais como seria o passeio ?”
“Pro
dia eu vou alugar um carro...”
“Seria
no sábado, então?”, perguntou ela, meio desconfiada.
“Sim!
Marcaríamos um ponto aqui perto, onde eu te apanharia.”
“Tá
bem.”
“Posso
ir em frente?”
“Ok.”
“Pra
amanhã, providencio o carro. Aí te telefono e marcamos o lugar.”
“Tchau,
então”, disse ela e desligou.
As
dúvidas assaltaram Albano depois. Será que ela cumpriria o combinado? Será que
não aprontaria alguma coisa, com medo de Eurípides? De qualquer forma, pensou,
não tinha saída. O jeito era arriscar. Só esperava não gastar o dinheiro à toa.
*
Estava
no ponto de ônibus, conforme prometera. O local distava cerca de 1km do
edifício deles, sem ficar na mesma rua. Arranjara um Volks, mas não dos modernosos. Embora fossem para a serra,
preferira um com ar condicionado.
“Oi! Um
Fusca! Há quanto tempo não andava nele...”
Como
antecipara, Yvone não fizera menção de beijá-lo. Preocupado em tirar o carro do
posto – justo chegava um ônibus -, ele a olhou de relance.
Até
tomarem a avenida Brasil, permaneceram em silêncio.
“O ar
está ok pra você?”
“Tudo
bem.”
Pouco
depois da entrada para a estrada de Petrópolis, ele estendeu a mão, e
acariciou-lhe o braço nu.
“Que
bom que você está comigo.”
Os
olhares se cruzaram. Ela já não lhe parecia tão distante.
“O que
‘cê prefere? Paramos num desses bares de beira de estrada para cafezinho e
biscoitos, ou vamos em frente?”
“Acho
melhor a gente rodar mais. Lá fora tá muito quente...”
Em
breve deixaram para trás o comércio – até por acesso a motel passaram – e
avançaram pela baixada.
“Nunca
gostei muito desse trecho...”, suspirou Yvone.
“É?
Engraçado, eu também...”
“Você tá querendo me agradar...”, disse ela,
sorrindo. Ele não deixou de ver que seu olhar não estava mais tão arisco.
*
Mais
tarde, parou em local onde vendiam
amantegados da serra. Albano logo percebeu que eram do gosto de Yvone.
Achava até graça que ela preferisse não ficar com os pacotinhos. Pela
frequência, porém, com que os pedia, Albano se divertia. E mais ainda com a
mãozinha estendida, que ia depressa apagando os resquícios da carga negativa do
outro dia.
A sua
queda pelos biscoitos caiu bem para quem tratava de apagar as memórias da
rusga. Nisso ele era mestre. Não se afobava. Tudo que lhe viesse a calhar
utilizava como se nada fosse. Sem nunca forçar a barra, com muito jeito ele
tratava de apagar as marcas e a resistência deixada pelo episódio.
Assim,
ao chegarem a Petrópolis, depois do Quitandinha, mostrou-lhe os pontos
principais: casa da família imperial, o Palácio Rio Negro com seus anexos, a
rua Ipiranga e a da Barão do Rio Branco. Ao passarem pelo centro e o rio
Piabanha, sentiu que ela já se fatigara. Tratou, portanto, de estacionar o
carro perto do restaurante que lhe tinham recomendado.
“Penso, meu amor, que você vai
gostar.”
Procurou controlar a expressão, dizendo o meu amor como se fosse algo natural no seu convívio. De esguelha,
buscou no semblante alguma contração ou mostra de estranheza. Como nada visse,
tocou-lhe, de leve, o braço nu, do jeito de quem delicadamente orienta a
companheira para tomar uma certa direção.
Do
canto do olho, viu que ela não reagia. Sentiu, então, que com um pouquinho mais
de paciência ele a teria de volta, virando de vez a página da afoiteza no bar
do Meier.
Por
isso, ao adentrar no restaurante, eludiu a indicação do maître – que lhes queria colocar em mesa com cadeiras separadas – e
a levou para mesinha de canto, com
pequeno sofá para acomodar a dupla.
Ela
não reagiu, nem mostrou desagrado pela circunstância de ficarem muito próximos,
juntinhos mesmo.
Logo
a seguir, por instâncias de Albano, e não sem negacear um pouco, acabou
aceitando a caipirinha que o garçom oferecia.
Mergulhando
nos seus olhos, ele disse, levantando o copinho:
“A
nós!”
“A
nós...”, balbuciou ela, com leve aceno de brilho nas pupilas.
* *
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