A Dama do Elevador
IV
A euforia do primeiro
instante logo se evaporou. Não devia dar muito peso à circunstância de que
tivesse ficado com o bilhetinho. Afinal, sua audácia a teria surpreendido e
talvez nem atinasse com o fato de não restituí-lo.
Sendo
o marido quem era, o impulso natural seria o de desvencilhar-se do papel.
De
toda maneira, de nada servia ficar a desfolhar aquele bem-me-quer. A resposta,
se acaso viesse, o surpreenderia sempre.
Pois
estava convencido de que Yvone só se mexeria se quisesse entrar pra valer
naquela dança arriscada.
V
No
dia seguinte, ao regressar da repartição, deu com o Eurípides no saguão do
prédio. Se bem que já tivessem topado várias vezes, nunca fizera qualquer aceno
– sequer um meneio de cabeça – e Albano não tinha outra saída senão agir da
mesma forma.
Desde os primeiros tempos, procurara mostrar um mínimo de civilidade com
os todos os condôminos. Haveria sempre os mais arredios, mas com o seu jeitão
simples vencera as resistências. Diga-se que não fazia grandes esforços, nem
saía do que julgava atitude sóbria, sem
mesuras nem exageros. E, assim, ao cabo de um par de meses, a todos conhecia,
ou pelo menos cumprimentava.
A
única exceção era o Eurípedes, que continuava a tratá-lo como se fosse um
móvel. Ainda que Albano se esforçasse em ignorar a rudeza, o passar dos meses
tendia a exacerbá-la, a ponto de que os circunstantes começassem a se perguntar
que diabos havia entre os dois.
Albano
chegou a perguntar a si próprio se a atitude do marido teria algo a ver com as
suas tentativas de aproximar-se de Yvone. Logo, no entanto, afastou a hipótese,
porque lhe pareceu evidente que um tipo violento como aquele não ficaria, se
soubesse de qualquer coisa, na surda mas inofensiva grosseria.
*
“Será
que dá pra gente conversar?”
Albano
não acreditou no que estava ouvindo. Fazia pelo menos duas semanas do lance no
elevador, e até aquele instante no meio da tarde, ele não recebera qualquer
ligação de Yvone.
“Claro... Qual é a tua idéia?”
“Amanhã, a minha aula vai terminar mais cedo... Assim, nós podemos nos
encontrar num barzinho e bater um papo...”
Embora
estranhasse o tom da voz, que não diferia pela naturalidade de um convite para
jovem amiga, ele preferiu não dar-se por achado.
“E aonde será o nosso encontro?”
Tinha
uma vaga noção da localização da rua. Não possuía, contudo, a mais mínima idéia
onde ficava o tal bar.
Mas ela
parecia do gênero prático, a que não faltam as sinalizações indispensáveis.
Enquanto falava, Albano anotava o que podia. Não seria, porém, a
dificuldade de orientar-se em bairro de que tinha vago conhecimento que iria impedi-lo de vê-la.
“Falta
me dar a hora...”
“Três e
meia está bem para Você?”
Três e meia! Que horário é esse?, pensou
ele. Como é que se arranjaria para marcar encontro no meio do expediente da
tarde?...
“Essa hora
é meio complicada para mim... mas acho que posso dar um jeito...”
“Então,
amanhã nos vemos!”, disse ela, como se não houvesse qualquer problema.
E antes
que ele pudesse aludir a possíveis dificuldades, Yvone encerrou a ligação, com
um tchau!
*
Preferiu deixar para o dia seguinte as gestões junto à chefia.
Pretextaria urgência, para que lhe dessem a permissão. Pela hora e a distância
do destino, tinha que pedir para sair mais cedo. E a coisa se enrolava porque
não haveria condição de retorno. Ainda
bem que o expediente estava em dia. Mas lidava com burocratas, e não há nada
que um chefe de seção mais aprecie que valorizar a própria autoridade.
*
As
mentiras como justificativa têm de ser simples e banais.
“Tenho
de ir a um cartório para validar procuração.”
“É
aqui perto?”
“Não,
é longe.”
“Longe, onde ?”
“No
Meier.”
Sabia
que o Dr.Américo gostava de valorizar-se. Também sabia que tinha de
conformar-se se não queria problemas no futuro.
“Está
bem, Albano. Mas vê se não abusa.”
“Obrigado, Dr. Américo. Só pedi a licença, porque não havia outro
jeito.”
Afastou-se com um sorriso. Por dentro, a raiva de ter de pedinchar para
aquele careta.
V I
No
caminho, irritado com o encontro em hora de trabalho, e ainda por cima fora de
mão, se sente confuso. Antes desejara muito a oportunidade de estar com Yvone.
Ao enfrentar a má-vontade da chefia na repartição, além das incertezas da
procura em bairro de que tem apenas vago conhecimento, Albano se pergunta se
vale a pena tanto esforço.
Entrementes, perguntando aqui e ali, acaba dando com alguém que lhe
passa a orientação correta. E quem o visse sentiria o andar mais seguro, com a
certeza de que, por fim, está no rumo certo.
Assim, quando deu afinal com o bar, se descobre mais sereno e seguro de
si. Para sua surpresa, tanto as mesinhas na calçada, quanto na sala interna
estão quase todas tomadas, e o vozerio de muitas conversas simultâneas lhe
recorda a ambiência dos bares de Ipanema e Leblon. Muito povo deitando papo em
hora de expediente...
Não desgosta, porém, do que vê, e talvez
influenciado pelo espírito carioca, o olhar não se afoba na busca de Yvone.
Num
canto e sozinha, lá está ela. Sentada em mesinha espremida pelas rodas à volta,
ei-la que lhe manda um tímido aceno.
Ao
avançar no seu encontro, sente que tudo o mais virou cenário para ele.
Esgueirando-se entre as mesas, o barulho das muitas vozes quase não o incomoda.
Não há mais lugar para dúvidas e incertezas. Ao vê-la tão próxima, seus olhos
queimam de alegria.
Há
muitas conversas à volta, mas para ele não passam de som de tarde carioca,
espécie de música de fundo de uma estória de vida. Por isso, esquece a zoeira,
a nuvem invisível de palavras, nomes e risadas. Com a força que lhe vem da
graça de um sorriso, ainda meio sem-jeito, contorna as nesgas de espaço que
teimam em separá-lo da jovem.
Começa
como cena lateral, desimportante para os demais.
Sem
saber da razão, Yvone se põe de pé. Sem hesitar, Albano termina a caminhada com
longo abraço. Enquanto a enlaça pela cintura, as meninas de seus olhos dançam a
ciranda. Na pressa do amor, lábios se procuram e se dão. Na mútua entrega, os
abafados murmúrios gritam para os demais. E o que pensam periférico, vira um
caso à parte.
Ao
redor, as vistas acesas os espiam divertidas. Seria como que no recinto
tão apertado que se derrama pela
calçada, tanto amor fale mais alto que todas as conversas juntas. É grito
diferente que não participa da zoada da tarde e dos papos jogados fora. O
comportamento do casalzinho é a vinheta que enfeita, por momentos, a monotonia
do quotidiano, mesmo nos encontros de bar. Assim, alguns gaiatos batem palmas,
e outros dão vivas. Mas tudo numa boa, antes que a dupla vá inserir o próprio
nicho de felicidade na rotina da tarde.
Como
estão noutra, os dois se deixam resvalar para espaços que estão muito além. De
que, não sabem. Só que é mundo inacessível ao comum dos mortais. Cercados pelo bulício, deixam que o chamego
venha junto. Depois diriam que tudo acontecera depressa demais. Mas a dizer
verdade, nada acontecera. Fulminados pelo amor, jogaram fora a tarde.
Ou
será que não?
Nenhum comentário:
Postar um comentário