quinta-feira, 13 de junho de 2019

Que símbolo é Hong Kong ?


               
        Para quem teve a fortuna de conhecer o enclave de Hong Kong, enquanto ainda formalmente colônia de Sua Majestade Britânica, não terá decerto perdido a oportunidade de pensar sobre os caprichos de uma das últimas investidas do impe-rialismo ocidental contra o então enfraquecido dragão chinês.

           Naquele tempo, visitar Hong Kong era conhecer um lugar único no mundo, onde o real estate ainda disputava o que restava de espaço para construir arranha-céus arrampicados nos morros, na visita aos mercados da cidade-estado, em que o trabalho frenético e, no entanto, organizado, podia proporcionar ao turista ocasional, mas também àquele com a inteligência de fruir da ocasião única de prover o seu guarda-roupa com camisas custom-made, com eventuais gadgets eletrônicos, e até com ternos, que em condições extremas, poderiam ser entregues, sem os truques usuais, na eventual residência do freguês - demorasse em outro continente ou não - se porventura os prazos não pudessem ser conciliados no tempo hábil  da estada, e sem querer espichar exemplos, numa riqueza de escolhas em que se afirmava a capacidade chinesa para o comércio, mas também um pouco da veia ocidental do capitalismo tão eficaz quanto proficiente.

             A visita àquela Hong Kong trazia não só a lembrança, naquele formigueiro humano da indústria (entendida na sua pluralidade de sentidos) em um ambiente que pelos prazos da diplomacia já estava - e para muitos, com pesar - na quase prorrogação de uma permanência que irrompera da extorsão imperialista e se transformara em uma grácil, atraente e muito especial colonia de Sua Majestade Britânica. Nunca de um propósito tão reprovável e mesmo ignóbil, viera a surgir aquela criatura, filha muito legítima das possibilidades, potencialidades do capitalismo imperialista do século dezenove, quando, com resultados díspares, se lançaram sobre o que pensavam fora a carcaça de um império decadente, os invasores ingleses, alemães, franceses (o colonialismo português já estava em Macau faz muito).
               Sem pendores coloniais, não há negar a contribuição inglesa àquele recanto montanhoso que hoje ainda subsiste, posto que bastante transformado. Passar por Hong Kong  era uma oportunidade para valorizar o contributo inglês para espicaçar, ativar e desenvolver a grande inventiva do povo chinês de Hong Kong. Aqueles que visitavam a colônia, e tinham a fortuna de não se ater apenas às externalidades, senão buscavam também a visão um pouco mais abrangente, em que o figurante chinês, com a liberdade - quase sempre adjetivada - da colônia britânica se torna o personagem real tanto na sua capacidade empresarial, quanto na sua visão mais ampla, e que os gerarcas de Beijing, por mais que se empenhem, não conseguirão ou embaçar ou restringir naquela colônia que se tornaria a epítome da liberdade empresarial, a par da capacidade dessa gente industriosa a que o trabalho ao invés de diminuir, engrandece.

                         Hong Kong não é um palimpsesto - que, como se sabe, é o manuscrito reaproveitado, porque tal designação reduziria o sentido do trabalho - que não é labuta - eis que não embrutece o seu morador chinês, mas o leva a sair de casebre para casas dignas de sua qualidade como trabalhador de incrível produção e também inventiva.

                         Hong Kong se transformou em paradigma democrático pela participação e coragem de seu povo, abraçando a causa da democracia, que internalizou através do exemplo da Inglaterra. Se é uma grande ironia do colonialismo inglês, a encontramos através do secular contacto entre o invasor inglês e o povo chinês que habita esse que se transformou no maior enclave da democracia, e de suas pétreas lições para os opressores do Continente.

                                A gente de Hong Kong - os que ficaram, que são em grande parte a população chinesa, mas não se pode excluir que haja outros que também participem dessa viagem através das contorções do dragão chinês. A democracia, essa grande dádiva da Hellas, na antiguidade helênica, constitui para as ditaduras uma enfermidade de alta periculosidade, pela simplicidade de sua doutrina e sobretudo pelo divino contágio que a liberdade oferece ao ser humano, e que não haverá sapiência capaz de extirpá-la.

                                  Como o povo de Hong Kong vive a democracia, em suas múltiplas existências, será muito difícil a ditadores, como o novo avatar deles, Xi Jinping, conseguir apagar o que ela representa, em termos não só da dádiva sem preço da democracia, mas também de uma existência em que o medo (em todas as suas patológicas reações) não o acompanhe a cada momento.   
    
                                                                                          (a continuar ?)        -

( Fonte: Confesso que a diplomacia além de arte, é profissão e vivência)

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